Vítor Silva Tavares (n. 1937) já cá anda há muito: fez muitos livros, conheceu muita gente, foi amigo de muitos e desamigo de ainda mais. Gosta de pôr tudo em causa. Mesmo tudo. Reclama para si o direito a escolher os seus ‘albaneses’, ódios de estimação determinados não apenas pelo sentido de justiça, como ele próprio reconhece, deixando transparecer um certo gosto antigo pelo ‘terrorismo cultural’. Faz em Janeiro quatro décadas que deu início à aventura chamada &etc. Começou por ser um magazine e transformou-se na editora que se recusa a ceder ao mercado: nunca reimprimiu um livro, nunca ninguém ali ganhou um tostão. Quarenta anos é um bonito número redondo para celebrar. O editor que não quer que lhe chamem editor garante, no entanto, que não vai comemorar nada. Talvez surja um volume de homenagem mas Vítor Silva Tavares está fora da jogada. Acha até bizarro que já haja quem esteja a preparar uma tese de doutoramento sobre a &etc. Ele, com aquela figura de duplo de César Monteiro, descendo todos os dias ao ‘subterrâneo 3’ da Rua da Emenda, ao Bairro Alto, continua a preferir dar sentido à máxima do amigo: ‘vai e dá-lhes trabalho’.
Alguma vez pôs a hipótese de escrever as suas memórias.
Não, nunca pus essa hipótese.
Nunca lhe sugeriram que se calhar tinha material para isso?
Sugestões, isso sim, têm chovido sugestões. A resposta é sempre a mesma: não.
Porquê?
Não sinto apetência para isso, ponto um. Ponto dois, eu não me coíbo,se estou a falar com A, com B, com C ou com D - se calha na conversa - de referir um sem número de pessoas, de acontecimentos que eu próprio tenha vivido,vivenciado, em que tenha participado. Não me coíbo de me exprimir oralmente.
Não escreve memórias por preguiça, por desinteresse, por razões ideológicas?
Acho que se enfatiza demasiado a cultura escrita e subalterniza-se a cultura oral.
Isso é engraçado vindo de um editor.
Já lá vamos ao editor. Editor está você a dizer, não eu.
Contesta a designação?
Contesto, contesto. Porque, desde logo, é estar-me a enfiar num cacifo corporativo, em que eu necessariamente não entro.
Contesto, contesto. Porque, desde logo, é estar-me a enfiar num cacifo corporativo, em que eu necessariamente não entro.
Mas o VST tem uma vida a editar livros.
Já fiz outras coisas sem ser editar livros. Todos os dias cozinho, por exemplo, e ninguém me chama cozinheiro.
Mas não cozinha para a comunidade. Mas edita livros para a comunidade.
Também não é para a comunidade, havemos de ver. Pode ser contra a comunidade, até.
Já vamos desenvolver isso, então. As memórias.
As memórias. Enfatiza-se demasiado a cultura escrita. Talvez para muscular a chamada indústria editorial. Não sei, não é comigo, saí a cavalo.
Talvez a indústria do livro precise; está pelas ruas da amargura.
Não entra na minha linha de preocupações, nem me tira o sono. Durmo regaladamente. Se a dita indústria editorial, tal como está montada, desabar,pode crer que eu não fico nada constrangido com isso. Até suspiro de alívio.Ainda bem. Pode ser que isso dê azo ao nascimento de uma outra coisa e, como diria o Fernando Pessoa, essa é que é linda. Porque esta não é. Está demasiado ligada ao capitalismo nas suas tácticas e estratégias.
O Vítor Silva Tavares não tem uma ligação especial ao livro?
Sim, começa desde pequenino, por gostar de ler livros, gostar de os ter na mão. Primeiro, eram jornaizinhos de banda desenhada. Comecei a gostar do desenho, disto e daquilo,por ler o Mosquito, depois o Cavaleiro Andante. Ficava muito apelado pelos desenhos, pelas histórias dos desenhos e tal. Como a miudagem. E depois os livros, os livrinhos. Eu tive grandes dificuldades em entrar para a escola, não gostei nada, porque aquilo era para mim uma prisão. Mas tive uma sorte enorme.Eu era filho ilegítimo e portanto tive grande dificuldade em pôr-me numa escola. Nessa altura, o filho ilegítimo queria dizer, mais ou menos, filho da puta. Mas havia duas velhotas que tinham uma escola privada na rua da Lapa.Deviam vir do antigo Magistério Primário da I República. Aceitaram-me como aluno. Faziam leituras de poetas como o Guerra Junqueiro…
Deve ter aprendido O Melro, com certeza.
Aprendi O Melro, A Lágrima... Eu sou apelado para o mundo da poesia e dos livros por essas velhotas republicanas da escola. A partir daí tive sempre uma grande ligação - atenção, como leitor, como leitor! - aos livros. O resto é uma série de circunstâncias, de acasos. Acontece até que a primeira namorada que tive chegou a ser funcionária da Livraria Barateira.
Isso deve ter sido uma sorte para si.
A brincar ou não, costumo dizer que li a Barateira toda. Era à borla.
Levava os livros para casa?
Levava, é evidente. Ainda hoje me espanto, como é que começando a trabalhar tão cedo… eu fui expulso do liceu e como é que começando a trabalhar tão cedo - sei lá, aos doze, treze anos - como é que arranjei tempo para devorar - e o termo era este - devorar tanto livro.
O que é que fazia nesse primeiro emprego, aos doze, treze anos?
O primeiro emprego era praticamente de marçano de um escritório na rua da Boavista. Ia para a alfândega porque aquilo era uma empresa importadora de material cirúrgico. Antes disso, ainda há um primeiríssimo emprego numa oficina no Areeiro, onde está agora a casa das Chaves do Areeiro. Era uma oficina que fazia cromagens para automóveis. Trabalhava lá o meu tio e eu vou para lá.
Quantos empregos teve na vida?
Não sei contabilizar, mas muita coisa. Um deles tem graça: em Angola, cheguei a ser examinador de cartas de condução e nunca soube guiar. Nem sei. Essa tem graça.
Examinador, a avaliar a capacidade dos candidatos à carta?
Sim senhor, quem é que passava e não passava, quem é que tinha a carta e quem é que não tinha. Aquilo era um faroeste, só assim é que se podem entender estas coisas.
A sua primeira ligação aos livros, em termos profissionais, foi também em Angola?
Não, a minha ligação aos livros veio daqui. Gostava muito de ler, lia tudo, selvaticamente. Aliás, como hoje. Sou muito disperso nas minhas leituras.
O que está a ler agora?
Acabei agora de ler aquele pequeno livro de oitocentas e não sei quantas páginas que é a biografia do Hitler, do Ian Kershaw. Agora, por acaso,estou a ler um livrinho do Almeida Faria, depois de ter gostado tanto do O Murmúrio do Mundo. Eu nunca estou a ler só um livro. Estou a ler Cama de Gato,do Kurt Vonnegut, que é um autor de que gosto muito. Para agora chega. O resto são os jornais, jornalada e tal.
Porque é que a sua veia literária nunca se desenvolveu no sentido da escrita de um modo mais sistemático?
Tinha mais que fazer. Eu não estava tão-somente circunscrito ao papel impresso. Tenho mais que fazer porque vivo intensamente a noite, vivo intensamente os meus amores, vivo intensamente os meus amigos. Para mim isso é prioritário. A literatura vem depois.
Primeiro a vida, depois a literatura.
Com certeza. Isso é normal. Viver em função da literatura é idiota, é de atrasado mental. Ninguém vive em função da literatura. A gente vive em função da vida.
Com certeza. Isso é normal. Viver em função da literatura é idiota, é de atrasado mental. Ninguém vive em função da literatura. A gente vive em função da vida.
Mas provavelmente conheceu escritores a viveram em função da escrita.
Eu não vivo por causa de influências literárias. Nem teria pedalada para isso. Encontra cá alguém que tenha influência literária capaz de dar a pedalada de um Malcom Lawry ou de um Rimbaud, ou a do Lautréamont, ou de uma coisa assim? Nem um. Não está tudo de cu bem assente na cadeira, a escrever livros? Isso é uma anedota. Primo vivere, mais que fazer. Depois a literatura. Depois, houve esta minha ligação aos surrealistas.Sabe que o surrealismo vem do Dada; o Dada era violentamente anti-literatura,era contra a literatura. O Pedro Oom, sócio do Etc., fundador como eu, tem aquele célebre poema, por mim sempre muito citado, que é: pode-se escrever/pode-se não escrever; querendo dizer exactissimamente a mesma coisa. Quando temos o nosso espírito, a nossa vida, inclinada em determinada orientação, por um lado, sim senhor, intestinamos uma prática de vida, um modo de vida, o viver poeticamente. Depois, pode-se escrever, pode-se não escrever. Além disso, eu não me ia servir dos sítios onde trabalhei, com algumas responsabilidades editoriais - quer na Ulisseia, quer no magazine &etc., no Fundão, quer depois no Diário de Lisboa, quer depois aqui no &etc. - para me salientar a mim mesmo, também, como escritor ou autor ou coisa assim. Isso colidia, como colide, com uma ética minha, muito pessoal. E mais, punha-me fatalmente, nomeio disso tudo, a ser concorrente dos escribas. Eu não sou concorrente de coisa nenhuma.
Mas pode pôr a coisa noutros termos.
Além de que ainda há outra coisa. A consciência que eu tenho, primeiro,é esta: por que raio de carga de água há-de haver gente interessada naquilo que eu escreva ou deixe de escrever? Depois, a mim, o que é que me interessa se aparece gente a dizer: ah, o Vítor escreve muito bem. Para mim isso é igual a zero. Ou: o Vítor escreve muito mal. É-me completamente indiferente. Há quem considere: é uma pena porque ele escreve muito bem. E há quem considere: ainda bem que ele não escreve, porque escreve muito mal. É-me completamente indiferente. Eu escrevo o que me apetece, quando me apetece. E quase sempre não me apetece.
Isso é porque não é intimamente um escritor, naquele sentido de ter a compulsão da escrita.
Não. Há aquela conversa: Ah, soude tal modo tomado, é uma coisa orgânica... Então se é isso vou ali cagar e já venho. Está aí na Contumácia [segunda parte do livro Para já para já]. Eu nunca poderia, nunca, estar metido numa gaiola a escrever livros.
Quando ouve escritores dizerem que têm a urgência e a necessidade da escrita acha normalmente que é isso fita ou acha que é alguém com uma natureza diferente da sua.
A maior parte das vezes é fita. Acho que é fita. Parece-me que é fita.Cheira-me que é fita, na maior parte das vezes.
Conheceu muitos escritores, há-de saber avaliar.
É uma forma de marketing como outra qualquer, uma forma de vender o produto. Enquanto leitor - e fui sempre um leitor compulsivo - posso dizer: e o que é que eu tenho com isso? Nada. Trabalhei durante alguns anos, quando estava nos jornais, no Diário de Lisboa, no &etc., do Fundão, com o Zé CardosoPires.
Um escritor profissional.
Um escritor profissional. Bissexto. A expressão é dele. Nunca, mas nunca, houve uma conversa literária do escritor Cardoso Pires comigo.
Nunca falaram de livros que tinham lido?
Dele e da sua escrita, do seu romance e tal e tal. Há uma única excepção. É a seguinte. Um dia estou em casa dele, no escritoriozinho dele, e estava numa parede uma espécie de organigrama com cores. Eu então perguntei o que era aquilo. Ele disse-me que era o esquema para um livro: O Delfim. O esquema marcava os vários tempos que se vão entrecruzar, os vários personagens,os pontos de não sei quê. Estivemos a falar ao fim e ao cabo de geometria.
Ele tinha pudor em falar dessas coisas?
Eu também nunca ouvi dizer ao Mário Cesariny: ó Vítor, agora estou aqui com um poema na cabeça. Nunca.
Por pudor?
Sim. Claro que era pudor. São coisas que, realmente, estão tão impregnadas no mais íntimo do escritor, que realmente ele tem pudor. Agora lembrei-me de uns versos do José Régio. “Coisas que terei pudor / De contar seja a quem for”. Está, se não me engano, na Balada de Portalegre.
Há episódios que o Vítor também tem pudor de contar seja a quem for?
Da criação literária? Sem dúvida.
E da sua relação com o meio literário, com os escritores que conheceu?
Aí, pronto. Eu vou dar um exemplo. Na sequência dos documentários sobre o Pacheco - a minha parte foi filmada aqui e isso teve um grande sucesso, as pessoas riram-se muito - os produtores quiseram fazer o mesmo, idem-idem aspas-aspas, com o Herberto.
O Herberto não autorizou.
Também contactaram comigo e eu digo: sim senhor, desde o momento em que… o Herberto está jogada? Está sim senhor, ele não aparece pessoalmente, mas o Manuel Rosa, que era o editor dele... Então está bem, mas nessa condição.Primeiro, que o Herberto esteja no conhecimento, segundo... e é agora que eu digo: Não vou pôr nenhuma cueca em cima da mesa. Quer dizer, pormenores ou questões de ordem pessoal que ligaram as pessoas, não são para programas de televisão, nem para entrevistas nem coisas assim.
Nem para memórias?
Relatadas, não. Não, não. Não me apanha a contar o que quer que seja da intimidade dos inúmeros autores que têm passado, quer pela Ulisseia, quer aqui,na &etc. Oiça lá, a mesma coisa faz um médico, faz um advogado.
Segredo deontológico.
Faz parte da ética, como é evidente.
Em Para já para já escreve a certa altura: não quero ter nada a ver com isso do meio literário, pisga-te. A &etc foi uma forma de se pisgar desse meio?
Sem dúvida. O etc. desde que nasceu é uma casa muito livre, libertária,até. Da porta para dentro. Depois é evidente que, com tantos autores, cada um é como é. E se é verdade que alguns têm uma vida mais recatada, mais pudor de aparecer nalgumas coisas, outros não. Isso é lá com eles. Eu, enquanto factotum...
Estava a verse ia dizer editor.
Aqui não. De resto, continuo a ser leitor. Também leio a revista LER,os prémios, o Jornal de Letras e Artes. Só gostam de prémios. Muitos prémios.Muitos almoços e jantares. Faz parte. É com eles, são profissionais, façam lá pela vidinha. Eu é que não tenho nada a ver com isso. O etc. não tem nada a ver com isso. Têm dito: aqui o Vitor, o etc. é contra isso. Não senhor, não sou contra. Tenho dito isso mais do que uma vez, volto a dizer. O que eu sou, isso sim, e a pequena editora também, é paralelo. O que é que quer dizer ser paralelo? Quer dizer que não que não há ponto de encontro.
São duas rectas simétricas que só se encontram no infinito.
Aqui nem no infinito. Seja ele qual for. Portanto, é paralelo. Se fosse contra, já eu estava, ou já a editora poderia estar, ela própria, absorvida. Pregava-se-lhe com o carimbo de alternativo, marginal, coisas assim.
Se calhar já disseram isso várias vezes.
Pois. As pessoas são livres de entenderem o que muito bem entendem.Agora, eu não assumo nada disso. Marginal? Porque é que hei-de ser marginal.Marginal a quê? Alternativo a quê? Entre a merda e o cagalhão? Entre a merda e o cagalhão não tenho opção. Sou alternativo coisa nenhuma. Agora, a editora tinha de ser fatalmente paralela e eu também. Se não, está a ver, não comprava livro nenhum, nem lia livro nenhum de outras editoras. Você perguntou o que é que eu agora estou a ler. Respondi-lhe: um dos livros é da D. Quixote, o outro, doAlmeida Faria, é da Tinta-da-china, lindo livro, com os bonequinhos porreiros,pinturas da Babá.
Da BárbaraAssis Pacheco.
O outro, o Kurt Vonnegut, é da Bertrand. Se eu fosse assim tão radical dizia:eu não compro esses livros dessas editoras comerciais. Não, não, ora essa, essa é que era boa. Eu já fui editor, editor, sim, na Ulisseia. Embora tivesse feito o gosto ao dedo. Fui eu que publiquei o Boris Vian, o Queneau. Fiz o gosto ao dedo.
Se tivesse oportunidade de voltar a fazer o gosto ao dedo…
Não.
Nunca mais lho propuseram?
Não. Até porque era escusado. Não esquecer que isto começou com a revista e a revista em si foi muito clara e emblemática de uma posição, mesmo no interior da república cultural, chamemos-lhe assim: não dava, de modo nenhum, para ser absorvido.
Existe essa coisa a república cultural?
Existe, claro que sim. A revista LER não faz parte? Os suplementos não fazem parte? Hoje já não há suplementos culturais, mas enfim.
Exacto, a questão é essa.
As secções culturais dos jornais não fazem parte? A quantidade de prémios,assim e assado, as instituições culturais propriamente ditas não fazem parte?Claro que sim. Agora está tudo a discutir o quê? Dinheirinho, falta de dinheiro,crises e merdas.
As secções culturais dos jornais não fazem parte? A quantidade de prémios,assim e assado, as instituições culturais propriamente ditas não fazem parte?Claro que sim. Agora está tudo a discutir o quê? Dinheirinho, falta de dinheiro,crises e merdas.
Tem a suarelevância, apesar de tudo.
Deve ter. Mas devo dizer que fico muito mais preocupado com a maltamais nova que não encontra emprego do que com essas coisas. Que eu saiba já nãohá nenhum Luiz Pacheco, na miséria, a pedir esmola. Não há nenhum. Isso não metira o sono. Se o sector está em crise, eu sou paralelo, não sou do sector.
O LuizPacheco não viveu essa situação de miséria também por opção?
Não, claro que não. Lembro-me de… agora perdi esse papel, não sei ondeele está. Um dia, no restaurante Treze, onde nos últimos tempos, até ao 25 de Abril, a gente comia e estava, o tal da D. Felicidade – é engraçado que estávamos sempre a chamar pela Felicidade -, um dia, o Pacheco aparece muito triste - normalmente ele era folgazão, ria-se muito - e obriga-nos, a mim, aoAntónio José Forte e outros que estavam lá, a responder a uns quesitos, umas perguntas, que ele tinha escrito num papel. Eu até guardei esse papel. As perguntas eram estas: tenho ou não tenho direito a ter os meus filhos comigo? A malta dizia: tens direito, não tens direito. Tenho ou não tenho direito a comerpelo menos uma sopa por dia? Tenho direito de poder dormir sem ser à chuva? Coisas assim, elementares, da mais comezinha sobrevivência, se tinha ou não tinha direito. E é na sequência deste tinha ou não tinha direito que ele vem a escrever, e eu a publicar, no Diário de Lisboa, em dois números do suplemento literário, o texto O que é um escritor maldito. Para o Pacheco. Para resumir e concluir o seguinte: ele não há escritores malditos, o que há é escritores mal escritos.
Qual foi o livro mais importante que editou, aquele a que atribui mais valor?
Isso é irrespondível. Não faço a mínima ideia. Nunca, ao publicar o livro A ou B... Não me passam coisas dessas pela cabeça.
A posteriori, há certamente livros que gostou mais de editar.
Agora tocou num ponto que é esse a posteriori. Ora, acontece uma coisa, eu não sei o que é isso do a posteriori e vou-lhe já dizer porquê: eu não olho a vida com o olho do cu. Não vejo nada. Para trás, eu não vejo nada, pá.
Está semprea contar histórias do passado.
Da produção das coisas, do fazer das coisas, do viver das coisas. Quando eu vivo uma situação, faço um livro, está feito.
Nunca se nenhum livro que tenha feito?
A minha preocupação é outra: a seguir. É sempre assim. Por isso não guardei nem portfólios nem nada. Não quis nem quero deixar obra. Nunca quis.
Nunca se arrependeu de ter feito um livro: ah, eu não devia ter feito aquela merda!
Já fiz merda e sei. Isso até é um slogan da casa. Tenho dito a alguns dos meus colaboradores mais próximos e mais queridos: podemos fazer merda, sim senhor, é merda mas é nossa. Isto para não confundir com a merda alheia. Mesmo na merda própria, há-de haver algumas características que a torna efectivamente com direito de autor.
Por alguma razão estamos programados para que a nossa merda não nos cheire demasiado mal.
Exactamente, é nossa. Vou-lhe contar uma coisa: mais do que um livro, um título ou um autor, já foram aqui feitos livros - não lhe digo é quais - não por eu achar que aquilo tinha interesse literário ou por causa da literatura ou por me dar gozo. Esses livrinhos, são pelo menos dois, impediram dois suicídios. Isto foi verdadeiro. Não eram falsos arremedos de suicídios. A aventura foi trabalhar em textos de pessoas que estavam de tal modo perturbados que a saída para elas era o suicídio. Então fizeram-se aqui pelo menos dois livrinhos com os quais se salvaram duas vidas. Não é isto mais importante do que a qualidade literária? Com certeza. Por outro lado: ó Vítor, tens publicado livros só porque és amigo de A e de B? Digo eu: «Claro que sim. Não é uma boa razão?
Exactamente, é nossa. Vou-lhe contar uma coisa: mais do que um livro, um título ou um autor, já foram aqui feitos livros - não lhe digo é quais - não por eu achar que aquilo tinha interesse literário ou por causa da literatura ou por me dar gozo. Esses livrinhos, são pelo menos dois, impediram dois suicídios. Isto foi verdadeiro. Não eram falsos arremedos de suicídios. A aventura foi trabalhar em textos de pessoas que estavam de tal modo perturbados que a saída para elas era o suicídio. Então fizeram-se aqui pelo menos dois livrinhos com os quais se salvaram duas vidas. Não é isto mais importante do que a qualidade literária? Com certeza. Por outro lado: ó Vítor, tens publicado livros só porque és amigo de A e de B? Digo eu: «Claro que sim. Não é uma boa razão?
Publica-os mesmo não os achando grande coisa?
Nunca tenho a certeza. E às vezes os autores também não. E grande coisa junto de quem? Para ser apreciado por quem?
Em primeiro lugar por si.
Comigo é diferente. Quando chegam, os autores querem saber a minha opinião. Isso eu dou. Claro que sim. Para fora daqui, fora da produção, juro-lhe, é-me completamente indiferente se qualquer Pedro Mexia ou o caraças, pensa assim ou assado. Nas tintas.
Porquê o PedroMexia, em particular?
Porque na linha sequencial, por exemplo, do Eduardo Prado Coelho, aí temos o comum intelectual institucional. Está em todas. Depois temos, mais atrás- eu sou mais antigo -, o Gaspar Simões. Por outro lado, porque ele é um dos meus albaneses.
O que é que isso quer dizer?
É uma coisa de um conto do Cortázar, se não me engano. Quer dizer o seguinte: nós precisamos de inimigos. O que é o albanês? Há um escritor de peças radiofónicas que tem de andar a fugir por todo o vasto território dos Estados Unidos, nas inumeráveis estações de rádio, porque nas peças que escreve põe sempre os albaneses pelas ruas da amargura, com as coisas mais horríveis que se podem dizer. Ele di-las dos albaneses. E isto é contado por um rapazinho que admira muito o gajo.
Isso não é do Cortázar, é do Vargas Llosa, n’A Tia Júlia e o Escrevedor.
Ora nem mais. E depois a certa altura: mas porquê os albaneses? Ele nem sabia o que eram os albaneses.
Tinha de ter um inimigo.
Um inimigo. Aqui não é bem o caso, mas pode servir também. O Gaspar Simões: eu tinha uma antipatia pessoal pelo homem? Claro que não. E pelo Prado Coelho? Também não. E pelo Mexia também não. Não é por aí. Agora atenção, no caso do Mexia há uma particularidade. É que no Diário de Noticias, pouco tempo depois da morte do César Monteiro, ele escreveu sobre um livrinho da Adília Lopes aqui publicado, e advertia a poetisa por estar finalmente na área, e agora cito, de uma família devassa da subcultura lisboeta, de que faziam parte o Luiz Pacheco, o Vilhena, o Manuel João Vieira, o João César Monteiro e eu.
Isso até podia ser elogioso.
Eu assim o li. E até me senti ali ligado ao Vilhena. O Vilhena foi o autor português com mais livros retirados, durante todo o tempo do fascismo. Mas não foi com esse sentido que ele o disse. Quanto à subcultura lisboeta, assumo completamente. De onde eu venho, a minha condição de classe nunca me permitiu entrar para a grande cultura lisboeta universal. A minha anda ali entre a Rua das Madres, aqui este buraco, não sai daqui. É realmente uma subcultura. É evidente que perante a ideia que ele faz de cultura, eu vomito. Não é a minha. Mas não guardo… porque é que havia de guardar? Porque ele escreveu uma crítica? Estou-me cagando, não me interessa absolutamente nada.
Tem mais albaneses?
No decorrer de tantos anos, arranjam-se sempre uns albanesezitos. A gente precisa de albaneses. Então no tempo da revista, com certeza. Se a revista era uma revista polémica, uma revista interventiva, não raro exagerada, radical, a gente precisava de uma data de albaneses.
E alguma vez disse ou escreveu coisas de que se arrependeu mais tarde?
Não. Não sou muito de…
Não é muito de quê, de arrependimentos?
Embora no tempo do PREC me tenha saído com uma frase - mas aí era boutade - que era: só a intriga é revolucionária. Porque a intriga mexe tanto com as pessoas que lhes provoca, fatalmente, uma revolução lá dentro. No entanto, por feitio, maneira de ser, ou pelos sítios que eu ocupava no meu trabalho, nunca fui dado às maledicências, às intrigas.
Mas o meio literário fervilha de intriga.
Claro. Então nas boémias com os surreais, era um vê se te avias permanente. Mas essa má-língua não era de carácter especificamente pessoal.
Era grupal?
Grupal, sim. A má-língua entre os surrealistas não era por causa do Namora ser ciganão a vender a obra ou fazer negócios e tal. Por exemplo, eu sempre tive uma pedra no sapato, um Everest no sapato, relativamente à publicidade.
O O’Neill andou na publicidade.
O O’Neill? Todos. Era mais fácil dizer quem é que não entrava na publicidade. Eu não entrei nunca na publicidade. Mas o meu dedo espetado não é um revólver. Ou seja, não sou juiz nem sou padre.
Não andava a apontar o dedo.
A ninguém. Mas há uma recusa radical relativamente ao mundo da publicidade. A mim fazia-me muita espécie que escritores situados na esquerda portuguesa, digamos assim, contra o regime, escritores com uma certa pedalada de preocupações de ordem política e de ordem social, trabalhassem na publicidade porque a publicidade pagava muito bem. Para mim a publicidade é o emblema por excelência da sociedade capitalista e da sociedade de consumo.
Alguma vez teve discussões a esse respeito?
Tive, ai, sim. O argumento de que aquilo era muito bem pago e de que as pessoas precisavam de ganhar dinheiro, para mim não era argumento. Os agentes da PIDE também precisavam de ganhar dinheiro, tinham família e filhos.
Só lhe davam esse argumento ou havia outros?
Não, era esse. Era um trabalho amável. E havia superdotados. O O’Neill,o Ary dos Santos, o Sttau Monteiro eram superdotados a criar metáforas, brincadeiras de palavras. Há bar e bar, há ir e voltar. Bosh é brom. Coisas assim.
O ‘Bosh ébrom’ foi publicado?
Claro que não. Nesse tempo não havia sequer sabonete Rexona, era Rexina. Recordo uma conversa com o Redol, num dos aniversários do Jornal do Fundão, numa passeata a butes que faço com ele o Redol e com a Fiama Hasse PaisBrandão, o Redol já com uma bengalinha, e lembro-me dele muito triste a dizer para nós: todos os dias digo para mim mesmo que nunca mais ponho o pé naquele trabalho, nunca mais; estou a fazer a barba, tristíssimo e digo nunca mais, e depois vejo-me a descer a Almirante Reis. O homem dizia aquilo com uma tal tristeza que me tocou. Eu, adolescente, que tinha chorado baba e ranho a ler o Gaibéus, Marés e Avieiros. O Redol, que eu não conhecia e não me passava pela cabeça que pudesse vir a conhecer, era um dos meus heróis literários, naquela altura. Sofri muito com aqueles personagens, sentia-me muito próximo daquilo, tenho uma família muito pobre. Então, alguma vez eu ia dizer o que quer que fosse a um homem como o Redol por ele me estar a fazer aquela confissão? Nem pensar. No entanto, para mim, pessoalmente, jamais eu meti no meu espírito, mesmo que estivesse muito à rasca, pactuar com isso. Não, senhor.
Ainda tem hoje heróis literários?
Não tenho heróis literários, mas tenho alguns escritores que admiro. Não vou falar de nenhum do etc. Não quer dizer que vá falar em autores portugueses. Mas não custa nada dizer que, dos vivos, tenho pela literatura do Herberto Hélder a maior das admirações. Acho mesmo que ele é o melhor português. Mesmo em prosa. O melhor escritor de língua portuguesa, o melhor português da língua portuguesa. Quando o Herberto escreve, é do Herberto. Isto porque já morreram muitos outros: o Cesariny, o Almada, etc. Mas há escritores que sempre admiro. Este Kurt Vonnegut, por exemplo, gosto muito dele.
As relações pessoais com os autores são importantes para si ou admite editar um grande filho da mãe?
Sim, isto aqui não é nenhuma sacristia, não estou a fazer julgamentos dessa ordem. É evidente que a casa tem a sua ética, mas essa ética não passa pela moral comum. Se passasse pela moral comum, eu não teria tido a ligação que tive ao Luiz Pacheco, ao Mário Cesariny - que era uma autêntica serpente -, ao Herberto. São autênticos monstros. Monstros literários e não só. Aí, a literatura é o reflexo ou o espelho de personalidades complexas que podem entrar em colisão com as ideias feitas de ordem moral.
A minha dúvida é se o seu relacionamento pessoal é relevante para os editar.
Em alguns casos eu faço o editing. A primeira leitura que faço, é aquela leitura da curiosidade – deixa lá ver o que é que ele escreveu desta vez. A segunda já não é só da curiosidade. Já pego no lápis.
Vai interrogar porque é que está ali aquela palavra.
Há em que eu escorrego. Estou a ler e de repente há qualquer pequena nota dissonante e eu aponto logo com uma cruzinha. É sinal de que no fluxo em que estou a ler, alguma coisa me surgiu ao espírito que me pareceu dissonante. E, com o autor, vamos ver a propriedade ou não dessas minhas anotações. Por quê aquilo ali, não entendo. Sou burro, sou estúpido, não percebi. Pronto, o autor explica-me. E eu digo: agora já percebi, mas quem manda aqui é o texto. O que é que interessa, eu pessoalmente perceber, se no momento em que a gente publica um livro, ele salta da mão do autor para passar a ser automaticamente um objecto social? Nem que a tiragem seja só de um exemplar ou dois. Explique isso no texto. Então ele vai trabalhar. Vai e dá-lhes trabalho - João César Monteiro. Criam-se aí relações de proximidade, de afinidade.
E de tensão, também?
Sim. Na Ulisseia tive fricções maiores. Não vou dizer o autor. Um dia chega à minha mão uma proposta para publicar coisas nos jornais, etc. etc. Ora, eu torci, ainda torço, o nariz a coisas que já saíram nos jornais. Não é a mesma coisa de um tipo que está a escrever com o intuito de que aquilo vá sair num livro. Digo: não quero. Eh pá, e o autor começa-me com um choradinho maluco, das dificuldades da vida, das filhas na escola, as férias. Coisas que entendi perfeitamente, a vida está difícil para tanta gente. Disse: está bem, com certeza, mas note, o que é que o livro tem a ver com isso? E o leitor? Nada. Lamento muito. Se vamos trocar confidências sobre a dificuldade de vida, você nem faz ideia. Eu sou filho da miséria total, daquela real, não precisa sequer de neo-realismo, nem de adjectivos. A miséria de onde eu venho é substantiva.
Acha que isso lhe deu uma intransigência de base?
Há certas coisas em que tenho de ser intransigente. Se determinou em mim alguma coisa? Determinou. Vou-lhe dizer: a partir do 25 de Abril, quando há determinadas conquistas sociais, quando o Estado passa a ter determinadas preocupações de ordem social, os salários, os sindicatos, essa coisa toda que não havia e tudo mais, vai tudo a correr muito alegremente para uma sociedade de consumo. Tenho ou não tenho o meu popó, se os outros têm? Tenho. Tenho ou não tenho direito ao meu frigorífico, ou televisor? Ora bem, o meu ADN de origem…
É o de não ter.
…isso calafetou-me relativamente a todas essas tentações. Vivo muitíssimo bem em paralelo à sociedadede consumo e aos seus benefícios, que eu ponho em dúvida. A crise que estamos a atravessar alimenta esta dúvida. Estamos a pagar muito caro a abundância de tralhas que a sociedade de consumo e a máquina de produção capitalista criou. Eu não sou adicto disso. A minha condição de classe, como eu nasci e cresci, salvou-me disso. Ah, fiquei sem dinheiro para pagar a prestação do meu automóvel!
Não tem automóvel.
Não.
Não há nenhum computador nesta sala.
Não. Há uma frasesinha do Karl Marx, acho que ainda não é proibido citá-lo, que diz: a cada um segundo a sua necessidade.
De cada um segundo a sua possibilidade.
Nem mais. Aí, na batatolina! Eu não me limito a fazer citações, está a ver? Não gosto de citações que são bengalas. Ou bem que eu intestino qualquer coisa que tenho na minha cabeça, podem ser até versos de canção, e então torno-os meus. E portanto não vou botar ciência: como disse este, como disse aquele. Não sou o Ramalho Eanes, não sou o Cavaco, não é Kierkegaard para aqui e para ali, não preciso de bengalas para coisa nenhuma.
Mas as bengalas às vezes dão jeito.
Isto para dizer, eu não lhe chamo intransigência. Eu entendo que esta minha posição é natural.
Não é natural as pessoas quererem ter aquilo que lhes parece possível terem?
Não. As pessoas foram induzidas nesse sentido. Aí, no livrinho ['Para já para já', que está em cima da mesa, ao lado do gravador] está uma frase que eu tenho dito muito: a um tempo vítimas e actores. Ao mesmo tempo. Ou seja, na sociedade de consumo, eu, consumidor, sou ao mesmo tempo vítima porque fui conduzido por tudo, pela propaganda, pelo facto de os outros terem; tudo me induziu nesse sentido. E ao levar-me nesse sentido e não tendo eu capacidade crítica para desde logo detectar isso, então passei a ser actor daquilo que me oprime.
Posso concluir que o Vítor está imune a esta crise de que se tem falado tanto?
Do ponto de vista estritamente pessoal, estou imune, tanto me faz. A minha sensibilidade de pessoa humana leva-me a estar muito preocupado, a estar também eu passado aferro com a situação que estamos a viver. Claro que sim. Não me lembro de andarna rua, no ar, uma tão grande opressão. Mesmo nos tempos lá dos fascismos e tal, não me lembro de uma situação tão aguda. Ao fim e ao cabo tão dramática. Tem de se pôr tudo em equação. Por exemplo, no meu caso, malgré tout, eu considerei-me sempre não apenas um patriota, até decerto modo nacionalista. Sim, senhor. Desde miudinho, andei na mocidade portuguesa, as minhas velhotas republicanas induziram-me o amor à pátria, naquele tempo, como também me induziram o amor aos jardins. O amor à bandeira e tal e tal.
E isso ficou-lhe inculcado?
Claro que quando eu vou para Angola todos estes conceitos tiveram de levar uma volta. Porque também acreditei que os portugueses não eram racista e depois, vou ver, ó meu deus. Nesse aspecto ainda me penalizo por perdermos cada vez mais a nossa soberania. Pior do que a dita soberania, que é uma questão política, estamos perdendo as nossas próprias raízes. Por desconhecimento cultural e por uma descrença brutal até do ser português. Recordo-me de um verso do Almada, de outro contexto, mas que talvez se possa aplicar aqui: é fado nosso, é nacional, não há portugueses, só há Portugal. Dito agora, eu até o ‘só há Portugal’ tenho de retirar.
Não há portugueses nem há Portugal?
Nem há Portugal. Ele também dizia no Manifesto contra o Dantas: se o Dantas é português, eu quero ser espanhol. Eu não tenho esse refúgio. Não quero ser espanhol só porque Portugal está como está. Isso dói-me um bocadinho. Claro, eu estou no fim da vida, tenho 75 anos, nada fanático nem nada disso, mas fui um bocadinho enformado por uma língua - aí percebo muito bem o Pessoa: a minha pátria é a língua portuguesa. Eu venho da arraia-miúda. Embora seja citadino, sou lisboeta mas já andei um bocadinho pelo meu país, pelo meu país mais profundo. Fui o pisteiro do César Monteiro nos filmes de Trás-os-Montes.
A fazer repérages?
Fiz. E antes disso fui pisteiro porque fiz com o Manuel Costa e Silva, antes do 25 de Abril, um documentário etnográfico, antropológico, o que quiser, chamado Festa, Trabalho e Pão em Grijó de Parada. Percorremos centenas e centenas de quilómetros no nordeste transmontano. Tive, portanto, ocasião de mergulhar fundo num outro Portugal, num outro mundo de portugueses. Extraí daí lições extraordinárias de dignidade humana. Uma coisa é a pobreza e outra coisa é a miséria moral. São coisas distintas.
Foram essas experiências que o levaram a relativizar a importância da literatura?
Sim. Pode achar que é um bocadinho contraditório, admito. Mas note, até aí na contumácia [segunda parte de Para já para já], eu começo por dizer: das duas uma ou prezo em demasia a literatura – mas nesse caso tenho de rejeitar a maior parte das coisas que por aí se publicam –ou então fatalmente tenho de relativizar. Atendendo sobretudo a que a produção romanesca é feita nitidamente também já em função da máquina editorial que a produz, isso deixa-me, sim senhor, de pé atrás e deixa-me lateral a isso tudo.Não frequento. Ah, mas o Lobo Antunes é um grande escritor. Não lhe posso dizer, não leio.
Não vai espreitar, nem por curiosidade?
Ó Carlos, eu não tenho dinheiro para comprar livros. Tenho até uma certa retracção a entrar numa livraria. Porquê? Porque posso ter tentações. Ainda hoje, das coisas que eu mais prezo é quando um amigo me oferece um livro. Fico: porreiro, um livrinho. Mas também lhe digo uma coisa: mesmo que tivesse dinheiro para comprar livros, esses livros eu não ia comprar. O eu não frequentar um sem número de autores, provavelmente muito importantes, com muitas estrelas e tudo, não me afecta em nada no meu background cultural.Enquanto ser cultural, eu posso prescindir completamente. Desinteressa-me a produção romanesca. Para que é que eu hei-de ir agora ler o Lobo Antunes se já li o Faulkner?
Acontece-lhe recorrer àquela fórmula do ‘não li e não gostei’?
Sim, é evidente. Mas aí entram os albaneses. É o gajo com aquela tromba…
Mas julga pela tromba?
Sim! A certa altura, eu chamo o João César Monteiro para fazer terrorismo no Diário de Lisboa. Crítica de cinema do César Monteiro sobre o Alfredo Tropa: os filmes do senhor Tropa são iguais à tromba que ele tem. Correctíssima crítica, não era preciso dizer mais nada. Na sequência, ou na passada, uma autora publicada pela Europa-América tinha na contracapa uma fotografia. Crítica literária na revista &etc: publicar-lhe a fotografia. Não era preciso dizer mais nada, pá.
Mas isso é o princípio da frenologia.
É, é. E é altamente injusto, pois é.
Pode ser altamente erróneo.
É, exactamente, pode. Das duas uma: ou bem que isto era uma revista de ataque e intervenção, ou bem que não era. Estamos aqui a discutir o quê? Chá e simpatia?
Não, o sentido de justiça.
Sentido de justiça? Como ter sentido de justiça no campo literário quando vivemos nestas condições económicas, políticas, sociais e tal. Porquê?
Porque é a ideia da frase que citou de que cada um se esforça na medida das suas possibilidades.
Oiça lá. Então eu puxo um bocadinho o cordel. O que é que levava um autor ou uma autora dentro de um livro a pôr lá carinha? Puxe lá o cordel, a guita. O que é que leva um autor a pôr, ou a exigir pôr, ou a permitir que alguém lhe ponha lá a carinha? Quem anda à chuva molha-se. Portanto, aquilo que à primeira vista poderia parecer puro e simples terrorismo, eu digo: mas o terrorismo é legítimo. Quando o Almada ataca o Dantas? O Dantas até escrevia à brava bem. E quando os surrealistas franceses publicam o panfleto «Un cadavre», sobre o Anatole France? O Anatole também era o protótipo do grande escritor e tal e tal. Estas coisas podem ter - porque são da polémica, do tempo - esta componente.
Admite que pode ser uma componente de injustiça?
Há uma primeira análise. Depois temos de ver o porquê das coisas. Temos de puxar. Vamos lá a esse novelo e temos de puxar a guita. O que é que leva um autor a deixar que a tromba lhe apareça no livro. É a tromba do autor que vai contribuir para o que quer que seja?
A “tromba” do Alfredo Tropa também aparecia nos filmes dele?
O César só disse: os filmes do senhor Tropa são iguais à cara que ele tem. A gente depoisolhava para a cara, nas entrevistas que ele dava, e dizia: realmente, os filmes são iguais à cara que ele tem.
Tem um certo gosto por esse lado terrorista.
Não é bem gosto. Está no feitio. Gosto de mexer ou fazer mexer.
Um bocadinho à semelhança do César Monteiro: há aí uma fraternidade.
Havia. E uma consonância completa, claro. Aí está um dos casos em que um autor e eu nos ligámos por uma amizade muito funda. De tal modo funda que ultrapassa os conceitos normais de amizade e coisas assim. Nós tínhamos uma afinidade muito forte.
Ao ponto de haver semelhança até na própria figura física.
No último filme do César, no 'Vai e Vem', ele já estava de tal modo depauperado, fisicamente, que para a preparação dos planos, não raro apareci eu, para preparar o plano. Caminha assim, caminha assado. Para que quando entrasse ele, luz e não sei quê, já estivesse tudo preparado.
Não o perturba essa semelhança física?
Não, porque é que havia de perturbar? Conheci o César há muitos anos.
Já eram parecidos na altura ou foi a confraternização que vos assemelhou?
Chegámos a ter grandes fricções. E se ele tinha aquela linguinha, a minha é pior. Ele era, enfim, uma pessoa... Podia ser violento nas expressões e tal, mas deparou com alguém capaz de lhe dar troco em tal matéria. E até de passar por cima, se fosse necessário.
É difícil lidar com os egos dos autores?
É especialmente difícil. Sobretudo quando alguns egos assim tão inchados ultrapassam a formulação do acto criativo e passam a imperar, não só sobre o acto criativo, como a submergir o outro nesse seu gigantismo.
Aconteceu-lhe isso? Sim. O meu ego é muito escasso. Julgo ter, por isso, alguma capacidade de compreensão e de assimilação dos egos alheios.
A gerir relações.
Justamente por não ter um ego assim e por não o pôr em cima da mesa. Não me dou assim tanta importância como isso. Não me acho representativo disto ou daquilo. Fico sempre muito surpreendido quando me dizem isso: uau, por que raio de carga de água. Não pensei nisso. Sinal de que o meu ego não é assim. Eu não o cultivo. Talvez seja por isso que tenha a tal capacidade, que julgo ter, de arranjar relações empáticas com pessoas até com egos exagerados.
A literatura torna as pessoas melhores?
Naquele ponto em que eu digo ‘prezo em demasia a literatura’, nesse, em demasia, a resposta é sim. Tenho uma noção até orfeica da própria literatura.
É a ideia de que se vive poeticamente?
Viver poeticamente e fazer da vida uma espécie de exegese: exegese espiritual, exegese ética. E aí, sem dúvida nenhuma que a literatura é um esteio, uma alavanca forte, fortíssima, para essa exigência, para essa elevação. Só nesse sentido. Só aí, nesse ponto extremo do espírito. Em tudo quanto seja abaixo disto, a literatura corrompe. Abaixo disto, seja em que caso for, sob que prisma se queira encarar, a literatura é corruptora.
Corruptora no sentido de piorar em vez de melhorar?
Sim. Pode fazer vir ao de cima o pior que a pessoa tem. A imolação, a inveja, a raiva, o choque de interesses, eu sei lá.
Nesse sentido é um perigo, então.
É, nesse sentido é. É uma esterqueira, não aguento, pisga-te.
[Entrevista a Carlos Vaz Marques, publicada no número de Dezembro de 2012 da revista LER. Fotografia de Pedro Loureiro.]
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