terça-feira, 15 de outubro de 2024


 

 «- Mas estas coisas do amor não são equilibradas nem simétricas como o pretendem determinados tratadistas. Tanto assim é que a mulher sabe perfeitamente melhor o efeito que produz nos homens do que o homem nas mulheres. Porquê? Parece tão parva a pergunta como o de querer saber a razão de ser a mulher mais fraca do que o homem. É assim, e pronto! De modo que, conclusão: aquele que souber melhor o efeito que produz nos outros leva de facto esta vantagem sobre os outros.»

José Almada Negreiros. Nome de Guerra. Livros RTP. Editorial Verbo. p. 55

 XXI

NÃO SABENDO BEM POR ONDE ANDA A REALIDADE,

O PROTAGONISTA COMEÇA A FAZER FOTOGRAFIAS

COM A IMAGINAÇÃO


José Almada Negreiros. Nome de Guerra. Livros RTP. Editorial Verbo. p. 50

O sono para ela era cair fulminada pelo excesso e pela fadiga.

 « A vida para ela era uma luta constante, ofensiva e defensiva, sem tréguas, sem repouso mais do que no dormir. E os seus próprios sonos não eram um repouso, a agitação continuava como se fosse o seu estado normal, como se fosse o próprio bater do coração em sinal de vida. O sono para ela era cair fulminada pelo excesso e pela fadiga. Apenas acordava, tudo lhe era hostil em redor. Os móveis do quarto, o vestido que despira ao deitar e que ficara metade no chão e metade na cadeira. os sapatos distantes um do outro, o chapéu na maçaneta da cama, as recordações da véspera, o sol a querer por força entrar pelas frinchas, o movimento da cidade que se ouvia lá fora, o dinheiro espalhado no mármore do toilette, o estômago, a bronquite, tudo, tudo contra ela, tudo lhe gritava, a uma, a mesma palavra: Guerra!»

 José Almada Negreiros. Nome de Guerra. Livros RTP. Editorial Verbo. p. 48


 

Toward Water

« O Antunes reconhecia que a sua imaginação estava doente. Esta doença era a falta da companheira da sua vida. Era o que lhe dizia hoje a realidade.
 O Antunes decidia fazer convergir todos os seus passos num único fito: a escolha da sua companheira. O motivo desta resolução estava na lembrança do que era a sua vida ultimamente, sem progresso, sem explicação, parada, inútil, nula. A causa desta estagnação era a falta de uma companheira.»


 José Almada Negreiros. Nome de Guerra. Livros RTP. Editorial Verbo. p. 38/9

 XV

CADA QUAL VÊ EVA PELA PRIMEIRA VEZ


«- Ó filho! Já me tiraram o medo há muito tempo!

Esta frase continha para o Antunes uma significação: perder o medo era ganhar o conhecimento da vida.»


José Almada Negreiros. Nome de Guerra. Livros RTP. Editorial Verbo. p. 38

 «Quem pensa sozinho não quer senão a verdade, as justificações são por causa dos outros.»


José Almada Negreiros. Nome de Guerra. Livros RTP. Editorial Verbo. p. 34

Totalitarismo


 The Wishing Tree (1976)
Director: Tengiz Abuladze

“A hora dos zorzais”



"Dá à tua tristeza todo o espaço e abrigo que é devido, pois se todos suportarem a sua tristeza com honestidade e coragem, a tristeza que agora enche o mundo diminuirá.”

Etty Hillesum


Visito os amigos mortos,
Pensando que indo, estão vivos.
Entre a penumbra dos quadros,
Andam eles em sorrisos.
Pronuncio a frase antiga,
E dou comigo sozinha.
Oiço então o dia exacto,
Da estridente campainha.
Volto a casa, fecho o som,
Por dentro da persiana.
E então os retratos andam,
Á volta da minha cama.



Natércia Freire

«Sem lápides, sem chumbo, sem jazigo; | caixão de tábuas, derradeira casa, | onde repousarei, frágil abrigo, | até me libertar num golpe de asa. || Então, quando estiver a sós comigo, | que ninguém chore porque o choro atrasa, | mas que alguém, se quiser, num gesto amigo, | ponha roseiras sobre a campa rasa. || Será medo o que sinto? Não é medo. | Serei, não serei digna do Segredo? | Ah, meu Deus, para lá das nebulosas, || Mereça ou não a expiação, a dor, | entrego-Te a minha alma sem temor. | O que resta, o que sobrar, é para as rosas.»


Fernanda de Castro, «Testamento», em "70 Anos de Poesia", 1989.


 

Fernanda de Castro, no livro, "África Raiz" (1966):

 

África, no teu corpo rugem feras, uivam fomes e medos ancestrais, no teu sangue há marés, na tua pele há dardos e punhais.

Ventre de Continentes, és mater e matriz.

Ásia é semente, Europa é flor, outros serão essência ou tronco, tu, África, és raiz.

[...]


O África dos dias incendiados, o veneno do sol que te envenena é que te faz assim, bárbara, impura, sanguinária e morena.

Mas tão pura, tão cândida também!

Ó África madrasta, África Mãe! [pp. 9, 99]



«Na Primavera, a Árvore era um ninho de folhas palpitantes como pequenas asas verdes. No Estio, cobria-se de flores, cada ramo era um jardim suspenso. Vinha depois o Outono, as flores mortas eram leitos de pássaros. E as folhas partiam, esvoaçando, tal borboletas de oiro. Por fim, o Inverno; em vez de folhas, braços nus, troncos mortos, desolada solidão.

Mas um dia...

Um dia, a Primavera voltou com as suas folhas palpitantes como pequenas asas verdes. O Estio, com as suas flores, os seus jardins suspensos. O Outono, com os seus pomos e as borboletas de oiro das suas folhas a dançar ao vento.
O Inverno, com os seus musgos, seus descarnados braços nus.

Mas a Árvore, a bela Árvore, era sempre a mesma, na sua ilimitada confiança. Foi então que aprendi, da Árvore, a lição: A vida é uma longa paciência e uma longa esperança.»

Fernanda de Castro, em Asa no Espaço, Edições Ática, 1.ª edição, 1955

país de musas sorumbáticas e de poetas tristes

«…Ela foi a primeira, neste país de musas sorumbáticas e de poetas tristes, a demonstrar que o riso e a alegria também são formas de inspiração, que uma gargalhada pode estalar no tecido de um poema, que o Sol ao meio-dia, olhado de frente, não é um motivo menos nobre do que a Lua à meia noite. Mas foi igualmente uma das primeiras a saber saltar, dentro da mesma estrofe e quase sem transição, do riso para as lágrimas e das lágrimas para o riso, de uma manhã de sol para uma tarde de chuva, de uma atmosfera de sombra para uma exclamação de euforia, de um traço de caricatura para um tom de aguarela, de um «allegro» para um «addagio». Ela foi ainda a primeira que soube ver Lisboa num pé de igualdade, de mulher para mulher, sem demasiados rigores nem exageradas complacências; e a primeira também que soube entender até ao âmago, até à raiz, a alma secreta do continente africano. Ela foi tudo isso e continua a ser tudo isso: aqui, justamente, é que está o milagre!»

David Mourão-Ferreira sobre Fernanda de Castro

Cinerária marítima

«Não poderei dizer quantas vezes abracei e beijei os troncos das árvores. As flores, não tinha a mais pequena dúvida, desabrochavam para mim, e se o espinho de uma rosa me picava, achava sinceramente que a culpa não era do espinho, que a culpa era minha por ter colhido a rosa.»

Fernanda de Castro. "Ao Fim da Memória", 1987
 Não esqueças sobretudo a armadura
da noite,
a aspereza das estrelas
quando os olhos são recentes
e a gravitação é um poder
sucinto nas mãos.

Não esqueças sobretudo como os cereais 
lavram os campos estafados, destilam
prodígio pelos sulcos da memória,
oferecem-te uma vida maior
em troca do sal
das pálpebras.

Não esqueças sobretudo de olhar devagar.


Vasco Gato, ''IMO'' no livro ''Contra Mim Falo''/Poesia Reunida (ed.Imprensa Nacional - Casa da Moeda).

segunda-feira, 14 de outubro de 2024

Tomberlin - unsaid


"Non dite che siamo pochi (“Do Not Say We Are Few”), Umberto Coa
 

Sou invisível | Janet Frame

Sou invisível.
Sempre fui invisível
como a pobreza num país rico,
como os ricos nos seus quartos escondidos nas suas casas com muitos quartos,
como as pulgas, os piolhos, como o que cresce debaixo da terra,
os mundos para além do céu, o vento, o tempo, as ideias -
o catálogo da invisibilidade é inesgotável
e, dizem, não é boa poesia.


Como as decisões.
Como qualquer outro lugar.
Como as instituições afastadas da estrada que se chama Scenic Drive.


Chega de comparações. Sou invisível.
Num mundo cheio de gente com visão binocular feitas as contas faço parte da maioria
enquanto tu e eu caminhamos com a nossa pequena lua crescente visitando a nossa obscuridade pessoal
através de um mundo no qual as decisões de ser ou não ser
são controladas pela luz
assistidas pelas lágrimas e o sonho da desatenção ou a morte.


Sou invisível.
Os amantes atravessam a minha vida para se tocarem,
a chuva que cai sobre mim atravessa-me como sangue sobre a terra.
Nenhuma cabeça me concebe como conhecimento.
Para dizer a verdade,
outorgo liberdade àqueles que dançam.
Assim é. Não há ninguém aqui para observar nem escutar dissimuladamente,


e então aprendo mais do que tenho direito a saber.


(Versão aqui partir do original e da tradução espanhola de Irene Artigas incluída em Sueños de lirios - Antología de poetas locos; selecção de Óscar Ayla; introdução de María Castrejón, Huerga & Fierro, Madrid, 2018, pp. 199-200).

O palhaço


A sua cara está manchada por lágrimas maquilhadas.
Eu e os outros aplaudimo-lo, sabendo
que é de bom tom aprovar quando um palhaço chora
e de mau tom quando o faz uma cara persistentemente
dorida sejam ou não pintadas as suas lágrimas.


Também é de bom tom, entre guerras,
dizer que o ódio é amor e o amor é ódio,
argumentar que tudo é mais complexo do que sonhámos
e depois dizer que não o sonhámos
sempre o soubemos e somos sensatos.


Caro palhaço choroso caro velho infantil
caro assassino gentil caro e inocente culpado
cara simplicidade odeio-vos por causarem que eu finja
que há vários mundos para uma verdade quando
eu sei, eu sei que não há. Pessoas como eu e vocês, meus caros,
que têm mau hálito, que adormecem e de intestinos
ruidosos que controlam a fé
que chegam à casa vazia ou entre a família,
cara família, caro homem solitário no mundo despedaçado de nin-
guém,


será para essa desolação que acumulámos palavras durante tantos
milhões de anos, desde o primeiro, gememos
e olhamos para as estrelas. Oh oh o céu é demasiado amplo para
dormir debaixo!

janet frame
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
tradução de josé alberto oliveira
assírio & alvim
2001

domingo, 13 de outubro de 2024

Unhas Negras

 Livro de João da Silva Correia 

Bowery Electric - Passages

Mia Couto, in "Tradutor de Chuvas", 2013

 



''Algumas memórias nunca curam. Em vez de desaparecerem com o passar do tempo, essas memórias se tornam as únicas coisas que sobram quando tudo o mais é desgastado. O mundo escurece, como lâmpadas elétricas apagando uma a uma. Estou ciente de que não sou uma pessoa segura.''

Hang Hang 

''O tempo era uma onda quase cruel por ser tão implacável.''

Han Kang

A Flor Cadáver e outros poemas

Jorge Sousa Braga

''O jornalismo é a arbitragem da política.''

 Humorista Ricardo Araújo Pereira

ferida narcísica

quinta-feira, 10 de outubro de 2024



Gordes, 1955.
Photo by Willy Ronis



 Demócrito: “A amizade de um único ser humano inteligente é melhor do que a amizade de todos os insensatos.”

“Tenho muitas alegrias através da cor preta. Às vezes, por isso, é como se fosse encarnado.”

Amália Rodrigues

 “Amália” significa em árabe “trabalho de Deus”

malmequeres


“Na brancura da cal o traço azul / Alentejo é a última utopia. // Todas as aves partem para o sul / todas as aves: como a poesia”

 Manuel Alegre.


quarta-feira, 9 de outubro de 2024

terça-feira, 8 de outubro de 2024

 "Para cada um de nós e — em algum momento perdido na vida — anuncia-se uma missão a cumprir? Recuso-me porém a qualquer missão. Não cumpro nada: apenas vivo."

CLARICE LISPECTOR



 ANTÓNIO LOBO ANTUNES, in AS CRÓNICAS (D. Quixote, 2022)

NÃO ENTRES POR ENQUANTO NESSA NOITE ESCURA
Fosse qual fosse a idade que tinhas eras tão nova ainda. Não sei bem o que dizer do teu sorriso porém, quando me olhavas, dava-me ideia de principiar na minha boca e estender-se depois pelas paredes da casa, até iluminar a tua como certos freixos, certas crianças, certas rosas. Ou pássaros. As cotovias por exemplo, em Abrigada, atrás de quem corrias sempre, segura de voar. Tão poucas chaminés, tão poucos telhados então, e tantas árvores na serra, comovidas com o cheiro das giestas, árvores que à noite ladravam como cães, espreitando-te em cada porta, correndo no quintal, escondendo-se do que a lua consentia na grande paz da horta. Nem todas as coisas possuíam um nome nesse tempo: faltavam páginas no dicionário do avô e existia um espaço sem copos no aparador para a sede esquiva do gato. Moravam grandes mistérios nas gavetas: a irmã que não chegaste a conhecer, selos, herbários, lâmpadas fundidas, olhos murchos de cegos que iluminavam o escritório. A estatuazinha de gesso no muro que a cada inverno ia perdendo dedos. O piloto da barra dos Açores de que ouvias falar, enchendo de naufrágios o teu espanto. E de alciões pairando sobre a espuma. O tio José nas Caldas da Rainha com as algibeiras gordas de migalhas para os cisnes do parque, o bigode que impedia a ternura e as palavras. Fosse qual fosse a idade que tinhas eras tão nova ainda: o gosto das amoras depois da chuva sabia sempre a manhã e, às vezes, chegavam cartas de Lisboa e o jornal do meio-dia com as espantosas políticas do mundo, acontecimentos da outra margem da tristeza, palavras cujo sentido ignoravas dado que o vento detinha o exacto tamanho do teu corpo e não consentia qualquer sombra no sangue, qualquer inquietação que desviasse os dedos do caminho do sol. As pedras sim. As ervas sim. E tu de pé, na brancura de março das acácias. Se eu pudesse falar-te. Se as minhas mãos, se a minha voz te tocasse: não me escutas, é ainda demasiado cedo para que saibas que existo. Só conheces o sol e poucas vozes, alguns rumores essenciais, a água, as folhas do ulmeiro às seis da tarde, a volta dos rebanhos confundida com o peso do silêncio do teu pai.
Faltavam no relógio as horas de seres grande. Nunca serias grande mesmo depois dos filhos dado que a cada filho recomeçava a tua vocação de amora sangrando para dentro e os domingos alongavam-te os braços. Pintavas as pálpebras da mesma forma que em pequena acrescentavas pestanas ao desenho do sol. E bochechas. E cabelo. E uma nuvem repleta de cerejas. Por ser assim de facto a íntima verdade: não existe sol sem pestanas nem nuvens sem cerejas. Nuvens com cerejas sim: de qualquer nuvem
(toda a criança o explica e é natural)
podemos retirar o necessário para habitar a terra pelo lado da pele. No outro lado mora o feio baldio do que ignoramos: entulho como pátria, como ossos, como os amargos cadáveres da inveja, tudo aquilo em que nunca tropeçaste, de que nunca adivinhaste, por um momento, o rastro: eras tão nova ainda, serás sempre tão nova mesmo agora que em redor do teu nome é tudo cinza e ninguém se demora junto a ti. Mas agrada-me pensar que continuas a crescer nos limoeiros de outro verão e te debruças em Angola para escutar a terra. Lembras-te? Usavas o cabelo muito curto um vestido de chita e as pessoas paravam para olhar-te: não as vias, tão atenta ao coração da terra, ao lume no capim, à tua filha. E os teus ombros, ao andar, assemelhavam-se aos ombros dos navios.
Assim te foste embora mas não entres, não entres por enquanto nessa noite escura, não nos deixes aqui onde estes cardos até o mar magoam. E as lágrimas, compreendes, espinhos também. A única forma de te ser fiel é costurar a vida, lentamente, do avesso da dor, inventar um peito onde possas deitar-te, cobrir com lenços grandes os espelhos a fim de que nada impeça o teu regresso. Como não quis ver-te partir estarei aqui no dia da chegada. Também eu vim da guerra quando ninguém sabia dos meus passos. Em novembro, de manhã, tão de manhã que os mortos do meu sangue nem sequer tiveram tempo de acordar. Dormiam como dormes.
E cá estão. Fazem parte de ti, de mim, do mundo. De onde tornas a renascer.
Imensamente.
*
“Um texto belo, poético e comovente. A imensa saudade da Zé, sua primeira mulher.”
Nota de Emília Vicente
*
Fotografia: António Lobo Antunes e a mulher, Maria José Xavier da Fonseca e Costa, pais de Maria José Lobo Antunes.
*

 The secret of a full life is to live and relate to others as if they might not be there tomorrow, as if you might not be there tomorrow. It eliminates the vice of procrastination, the sin of postponement, failed communications, failed communions. This thought has made me more and more attentive to all encounters. meetings, introductions, which might contain the seed of depth that might be carelessly overlooked. This feeling has become a rarity, and rarer every day now that we have reached a hastier and more superficial rhythm, now that we believe we are in touch with a greater amount of people, more people, more countries. This is the illusion which might cheat us of being in touch deeply with the one breathing next to us. The dangerous time when mechanical voices, radios, telephones, take the place of human intimacies, and the concept of being in touch with millions brings a greater and greater poverty in intimacy and human vision. ~Anaïs Nin

Book: The Diary of Anaïs Nin

 “I can never read all the books I want; I can never be all the people I want and live all the lives I want. I can never train myself in all the skills I want. And why do I want? I want to live and feel all the shades, tones and variations of mental and physical experience possible in my life. And I am horribly limited.”

― Sylvia Plath, The Unabridged Journals of Sylvia Plath

segunda-feira, 7 de outubro de 2024


                                                   Francesca Woodman, Untitled, New York, 1979-1980

O Poema Pouco Original do Medo



O medo vai ter tudo 
pernas 
ambulâncias 
e o luxo blindado 
de alguns automóveis
Vai ter olhos onde ninguém os veja 
mãozinhas cautelosas 
enredos quase inocentes 
ouvidos não só nas paredes 
mas também no chão 
no tecto 
no murmúrio dos esgotos 
e talvez até (cautela!) 
ouvidos nos teus ouvidos
O medo vai ter tudo 
fantasmas na ópera 
sessões contínuas de espiritismo 
milagres 
cortejos 
frases corajosas 
meninas exemplares 
seguras casas de penhor 
maliciosas casas de passe 
conferências várias 
congressos muitos 
óptimos empregos 
poemas originais 
e poemas como este 
projectos altamente porcos 
heróis 
(o medo vai ter heróis!) 
costureiras reais e irreais 
operários 
(assim assim) 
escriturários 
(muitos) 
intelectuais 
(o que se sabe) 
a tua voz talvez 
talvez a minha 
com certeza a deles
Vai ter capitais 
países 
suspeitas como toda a gente 
muitíssimos amigos 
beijos 
namorados esverdeados 
amantes silenciosos 
ardentes 
e angustiados
Ah o medo vai ter tudo 
tudo
(Penso no que o medo vai ter 
e tenho medo 
que é justamente 
o que o medo quer)

O medo vai ter tudo 
quase tudo 
e cada um por seu caminho 
havemos todos de chegar 
quase todos 
a ratos

Sim 
a ratos


Há palavras que nos beijam


Há palavras que nos beijam
Como se tivessem boca,
Palavras de amor, de esperança,
De imenso amor, de esperança louca.
Palavras nuas que beijas
Quando a noite perde o rosto,
Palavras que se recusam
Aos muros do teu desgosto.
De repente coloridas
Entre palavras sem cor,
Esperadas, inesperadas
Como a poesia ou o amor.
(O nome de quem se ama
Letra a letra revelado
No mármore distraído,
No papel abandonado)
Palavras que nos transportam
Aonde a noite é mais forte,
Ao silêncio dos amantes

Everybody's Gotta Learn Sometime

 

Project: To the unpopular girls
Iben Gad
2021

“A reaction. That’s probably what we were looking for. Depending on your reaction, we indirectly evaluated whether it was worth continuing or not. When you responded like you did, we evaluated that you were an easy victim.”


Through conversations with the bullies of my early teenage years, I’m trying to get a better understanding of a time period of my life. The project is driven by my curiosity to get to know what drove my bullies and how they reflect on that time period, and I’m seeking answers to the questions I’ve been asking myself throughout the years.

‘To the unpopular girls’ (2021) is a personal project about identity that explores social dynamics in my childhood. For this project I asked eight of my bullies if they wanted to meet me for a conversation and for a photo session too. The project takes form as a book and is built of interviews, portraits and archive material such as screenshots, photographs and paintings. Today the bullies are not involved in my life but I’m still sometimes nervous that they will start commenting on my photos or show up when I have to talk in groups. I spend a lot of time wondering who they are and what they come from. And do they remember me?

As a documentary photographer I’m interested in social dynamics and power structures in society and everyday life. I’m often pointing my attention towards eyes, hands and silent people, and both as a photographer and a person I find it interesting to visit places I’ve been before to see how things and our perceptions changes during time.

Antipersona

Caruncho

Layla Martínez

É tão curto o amor, tão longo o esquecimento. 

Pablo Neruda

quarta-feira, 2 de outubro de 2024

Don't Explain

''plastic bitches''

A voice comes to one in the dark

Imagine.

S. Beckett

"Ashes of the Arabian Pearl" de Valentin Joseph Valette

 


 2

a escrita é a minha primeira morada de silêncio.

Al Berto.

"Quando eu morder
a palavra,
por favor,
não me apressem,
quero mascar,
rasgar entre os dentes,
a pele, os ossos, o tutano
do verbo,
para assim versejar
o âmago das coisas."


Conceição Evaristo, escritora brasileira, in "Da calma e do silêncio".

domingo, 29 de setembro de 2024

''aparições do meio-dia''

Gabriel García Márquez. Doze contos peregrinos. Conto ''Surpresas de Agosto (1980)''  Tradução Miguel Serras Pereira. Publicações Dom Quixote, 1992., p. 121

''uma velha guardadora de gansos''

Gabriel García Márquez. Doze contos peregrinos. Conto ''Surpresas de Agosto (1980)''  Tradução Miguel Serras Pereira. Publicações Dom Quixote, 1992., p. 121

Tindersticks - New World

 SEIS POEMAS CONFIADOS À MEMÓRIA DE NORA MITRANI - VI

A que vens, solidão, com teu relógio
de ponteiros de visgo, de bater de feltro?
Ombro nenhum ao meu ombro encostado,
a que vens, ó camarada solidão?


Companheira, amiga, até amante,
até ausente, ó solidão, te amei,
como se ama o frio até o frio dar
a chama que tu dás, ó solidão!

A que vens, enfermeira? Não sabes que estou morto,
que se digo o meu sim ou o meu não
é só para que os outros me julguem mais um outro,
é só para que um morto não tire o sono aos outros?

A que vens, solidão? Vai antes possuir
os que amam sem esperança e sem saber esperam,
dá-lhes o teu conforto, encosta-lhes ao ombro
o teu ombro nenhum, ó solidão!

Alexandre O'Neill
(1924-1986)
In "Poemas com Endereço"
(1962)

A Dança dos Animais, Fernando Lemos,1949


 



''Era uma época em que tudo cheirava e sabia a ranço, em que o amor era vigiado e mal tolerado, em que um jovem não era senhor dos seus passos (errados ou certos, não interessa).''

Alexandre O'Neill

derrames sentimentais

daydreams

POEMA À MÃE

 No mais fundo de ti,
eu sei que te traí, mãe.

Tudo porque já não sou
o menino adormecido
no fundo dos teus olhos.


Eugénio de Andrade, ''Os Amantes sem Dinheiro

Maria-sem-vergonha (Impatiens walleriana)


 

Um Adeus Português





Nos teus olhos altamente perigosos
vigora ainda o mais rigoroso amor
a luz dos ombros pura e a sombra
duma angústia já purificada

Não tu não podias ficar presa comigo
à roda em que apodreço
apodrecemos
a esta pata ensanguentada que vacila
quase medita
e avança mugindo pelo túnel
de uma velha dor

Não podias ficar nesta cadeira
onde passo o dia burocrático
o dia-a-dia da miséria
que sobe aos olhos vem às mãos
aos sorrisos
ao amor mal soletrado
à estupidez ao desespero sem boca
ao medo perfilado
à alegria sonâmbula à vírgula maníaca
do modo funcionário de viver

Não podias ficar nesta casa comigo
em trânsito mortal até ao dia sórdido
canino
policial
até ao dia que não vem da promessa
puríssima da madrugada
mas da miséria de uma noite gerada
por um dia igual

Não podias ficar presa comigo
à pequena dor que cada um de nós
traz docemente pela mão
a esta pequena dor à portuguesa
tão mansa quase vegetal

Mas tu não mereces esta cidade não mereces
esta roda de náusea em que giramos
até à idiotia
esta pequena morte
e o seu minucioso e porco ritual
esta nossa razão absurda de ser

Não tu és da cidade aventureira
da cidade onde o amor encontra as suas ruas
e o cemitério ardente
da sua morte
tu és da cidade onde vives por um fio
de puro acaso
onde morres ou vives não de asfixia
mas às mãos de uma aventura de um comércio puro
sem a moeda falsa do bem e do mal

Nesta curva tão terna e lancinante
que vai ser que já é o teu desaparecimento
digo-te adeus
e como um adolescente
tropeço de ternura
por ti

Sonny Boy Williamson I`m A Lonely Man


Há palavras que nos beijam


Há palavras que nos beijam
Como se tivessem boca,
Palavras de amor, de esperança,
De imenso amor, de esperança louca.
Palavras nuas que beijas
Quando a noite perde o rosto,
Palavras que se recusam
Aos muros do teu desgosto.
De repente coloridas
Entre palavras sem cor,
Esperadas, inesperadas
Como a poesia ou o amor.
(O nome de quem se ama
Letra a letra revelado
No mármore distraído,
No papel abandonado)
Palavras que nos transportam
Aonde a noite é mais forte,
Ao silêncio dos amantes



*



O amor é o amor


O amor é o amor - e depois?!
vamos ficar os dois
a imaginar, a imaginar?..

O meu peito contra o teu peito,
cortando o mar, cortando o ar.
num leito
há todo o espaço para amar!

Na nossa carne estamos
sem destino, sem medo, sem pudor,
e trocamos - somos um? somos dois? -
espírito e calor!
o amor é o amor - e depois?!

Alexandre O'Neill

ETÉREA ALTERIDADE

 Como esta gaivota que, voando, parece 
democraticamente livre
e quando aterra, urbana, fuça em contentores
e pasce lixo vulgar, e é enxotada
pelo guarda-chuva do mundo,
assim como a escuna, bico ufano avançando
por massas de água limpa,
e num estaleiro torpe, romba, é aviltada
por toda a sorte de mãos indignas
desse corpo belo e inalcançável,

assim te crês de Reia e Cronos filho,
e sobrinho de Oceano,
mas és de Andreia e Joaquim nascido
e o teu tio é um tal Ribeiro,
fulanos benzidos por sacerdotes comuns.
Assim do empíreo desces, em que te crias,
e vens por vão de escada à terra, abrupto,
um anjo que acorda num desmaio
e extinta vê a luz do seu fanal,
ante um aptério edifício de escritórios.

Porém, coragem, tu, e entesa a fibra de titã.
Para ter o Olimpo há que vomitar filhos
servidos em refeição como Tântalo,
beber das tetas caprinas como Zeus,
servir pedras aos pares.
E assim etéreo andes e soes como a lira pura
num ar tão rarefeito quanto irrespirável.
Se os deuses têm histórias de vergonha,
os anjos têm guelras para habituar a um céu
de etérea e rude humanidade.


Daniel Jonas. Cães de Chuva. Assírio & Alvim, Porto Editora.2021 , p. 116/7

''musgo na boca''

Daniel Jonas. Cães de Chuva. Assírio & Alvim, Porto Editora.2021 , p. 114

sábado, 28 de setembro de 2024

Leave Me Alone



                                                           Jing Huang, Pure of Sight



 

cansando-me do cansaço da vida

 «O burguês divide o parque com o louco.
Insalubre, reato relações com a natureza mediada da cidade
e, cansando-me do cansaço da vida, miro cisnes
assomando o seu periscópio, noivos de noiva nenhuma.»


Daniel Jonas. Cães de Chuva. Assírio & Alvim, Porto Editora.2021 , p. 113
 «Deuses precisam por vezes de se sentir vivos.
A crise da meia-idade gera
incontinentes e continentes
e tu, matrona, com as tuas colinas cansadas
olharás com acinte a ninfa: o teu espelho passado.
Aproxima-te. Eu sou um touro.
Eu sou um touro, belo, manso, branco.»

Daniel Jonas. Cães de Chuva. Assírio & Alvim, Porto Editora.2021 , p. 112

 «Quando voltares às raízes
estarás morto.
Atenta ao que te digo.»


Daniel Jonas. Cães de Chuva. Assírio & Alvim, Porto Editora.2021 , p. 108

''Quando Marga amou Juan Rámon''

Daniel Jonas. Cães de Chuva. Assírio & Alvim, Porto Editora.2021 , p. 106



Konstantin Kalynovych - Winter IV

''Fáctico medo de.''

Daniel Jonas. Cães de Chuva. Assírio & Alvim, Porto Editora.2021 , p. 103

 Escrevo a gelo sobre a pedra.
As cadeiras abraçam a mesa e isso é Púchkin
redundando-se, cadeia de ouro sobre o tronco.
A obra pende da parede,
o criador está morto, o curador vivo.
A cebola é uma orbe de lágrima sobre lágrima,
mudando-se o fuso
como um pião sem a corda emocional
que o fez rodopiar e sumindo-se o parou.
O amor é a sonata da chuva
crepitando na vidraça -
o samovar absolutamente central
como um totem de prata
para uma ausência -
Eu vejo os seus pequenos dedos percutindo
a trasparência da lágrima, neutro vidro,
límpida rede sobre a falta,
branca página da noite.
Tudo na saleta ou no salão,
as efígies arremedando
a pura obsidiana da ausência.
E estas palavras que eu cravo na terra
desprendem-se do seu orbe
como moscas viajando para a noite.


Daniel Jonas. Cães de Chuva. Assírio & Alvim, Porto Editora.2021 , p. 102
 «A dado momento começou uma vida mental.
Em mente sem lar
é-se feliz em qualquer lugar.»

Daniel Jonas. Cães de Chuva. Assírio & Alvim, Porto Editora.2021 , p. 101

 «Num asilo de Northampton se pôs o filho de Helpston,

consumido por anos de prosa poética,

o poeta cigano de musa rural,

mar vivi de sonhos despertos.»


Daniel Jonas. Cães de Chuva. Assírio & Alvim, Porto Editora.2021 , p. 101
 «Casaste com Patty mas achavas-te casado com Mary.
Isso acontece muito.»


Daniel Jonas. Cães de Chuva. Assírio & Alvim, Porto Editora.2021 , p. 101

Don't Hurt Yourself


 

'' Oh quando poderei eu viver mais do que a vida?''

Daniel Jonas. Cães de Chuva. Assírio & Alvim, Porto Editora.2021 , p. 99

''A misantropa musa''

Daniel Jonas. Cães de Chuva. Assírio & Alvim, Porto Editora.2021 , p. 87

''Amaste o gelo, os sóis, os poços fundos''

Daniel Jonas. Cães de Chuva. Assírio & Alvim, Porto Editora.2021 , p. 93

''E cães, archeiros, cântaros, galácticos,''

Daniel Jonas. Cães de Chuva. Assírio & Alvim, Porto Editora.2021 , p. 93

OUTROS CÃES

 Espantoso como um mulherengo
enlouquecido pela sífilis
no estertor venéreo dos seus dias
se torna a Pietà da rapariga que
seduz - corre derradeira - às pias lágrimas
e isso é-nos mostrado no quadro de 
Hogarth 
para estudo e consolo.


Ele era, a bem dizer, um satirista.


À parte isso, retratou

outros cães.


Daniel Jonas. Cães de Chuva. Assírio & Alvim, Porto Editora.2021 , p. 88

 


 ''Os sapos, bem, expludam! São trapos.''

Daniel Jonas. Cães de Chuva. Assírio & Alvim, Porto Editora.2021 , p. 86

''álgida noiva''

Daniel Jonas. Cães de Chuva. Assírio & Alvim, Porto Editora.2021 , p. 81

''Não singraste, sangraste.''

Daniel Jonas. Cães de Chuva. Assírio & Alvim, Porto Editora.2021 , p. 80

''As mães são mais difíceis no Outono.''

Daniel Jonas. Cães de Chuva. Assírio & Alvim, Porto Editora.2021 , p. 79

A PROKOFIEV

 Morrer não é boa ideia. Morrer no mesmo dia de Estaline, pior.
Assim que, Serguei, fosses um grande ulmeiro 
tombando, abafado sob a grande sombra
(e o som tem a sua sombra) de tortuoso carvalho.
Naquele 5 do 3 de 53, a plaina irracional da vida
levou um compositor e um ditador
que até na morte esmagou o primeiro
e o abafou abrupto como um estampido do tampo
sobre as cordas, martelo sobre martelos.
Assim as delicadas nervuras, caneluras, tessituras
das tuas tocatas batessem mais uma vez
contra o tecto baixo de um ditado rítmico,
arranhadas pelos plectros do titânico bigode.
E uma sombra póstuma, mais uma vez, Serguei,
te viste esmagado pela bruteza de um estado policial
que esqueceu o músico e honrou o assassino.
Diz-se que uma humilhação mais se quis póstuma:
que o teu corpo ficasse retido na casa funerária
na hora de ponta fúnebre que congestionou a tua última marcha.
E agora, não só a notícia ou a memória ou a opressão,
também na morte te ensurdeceu e obnubilou 
o ditador em esquife saindo abafando
com estrondo a tampa meio aberta do pianista.
E cá para nós, Serguei, o artista fará sempre vénia ao opressor.
Já para não falar de Joseph tinha mais dedos do que tu.


Daniel Jonas. Cães de Chuva. Assírio & Alvim, Porto Editora.2021 , p. 78

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