terça-feira, 8 de dezembro de 2015

João Salaviza: "Se calhar filmei pela última vez esse desejo de cruzar adolescência e Lisboa"




Numa tarde de 2012 pouco tempo depois de João Salaviza ter ganhado o Urso de Ouro de Berlim com a curta-metragem Rafa, o café Vá-Vá, em Lisboa, mitologia fundadora do Cinema Novo português – Os Verdes Anos, de Paulo Rocha, aconteceu ali –, foi o espaço onde o cineasta explicitou o que também tinha sido fundador no seu cinema: a nostalgia, a nostalgia por uma vida de bairro que já não viveu.
João, contou nessa conversa, habitou entre os 10 e os 16 anos aquele território a que se chama as Avenidas Novas, espaço carregado de memórias (ainda por cima o pai, Edgar Feldman, assistiu Paulo Rocha), mas na altura da sua solitária adolescência era já um cenário esvaziado de vida. Filho da classe média, deu por si a desejar viver – isto é, a ocupar intensamente a rua com o futebol, com a música... – como "os miúdos das periferias" faziam, atacando a cidade de skate como os índios investiam sobre Monument Valley. Foi ele próprio, nessa conversa, que deu o exemplo do jovem Martin Scorsese a olhar da janela para a Elizabeth Street, em Little Italy, Nova Iorque, e a ver de longe os rufias que o assustavam e fascinavam, com enorme vontade de descer até à rua e de lhes apertar a mão.
Desse jogo de projecções nasceram Arena (2009, Palma de Ouro em Cannes),Cerro Negro (2011), Rafa (2012, Urso de Ouro em Berlim): três curtas-metragens que se equilibram entre o ardor da projecção emocional e a distância "antropológica" (palavra agora usada por Salaviza nesta entrevista), entre a sua memória construída e o território de experiência dos outros.
Montanha, a primeira longa-metragem do realizador de 31 anos, que sábado, 5 de Setembro, tem a primeira projecção de imprensa no Festival de Veneza (e como não ser um dos títulos mais aguardados deste ano?), continua embalado por esse território, explicitanto a viagem da escuridão para a luz, dos quartos para o exterior – a abertura para outros horizontes como outras tantas hipóteses de fechamento para as personagens de adolescentes que se descobrem adultos.



A Palma de Ouro de Cannes a Arena foi atribuída por John Boorman. Que nos seja permitido delirar com a hipótese de ter havido aí um reconhecimento: a luz como encarceramento, tal como em Point Blank, o filme de 1967 do britânico. No final dessa curta as personagens pareciam peões numa arquitectura distópica. A luz continua a agredir em Montanha. Por isso as personagens – uma hipótese de triângulo amoroso, em que um dos vértices, o jovem interpretado por David Mourato, é personagem em crise: mãe ausente, morte iminente do avô... – transportam consigo a escuridão.
É um filme que continua embalado pela infância e pela adolescência. Mas transcende os circunstancialismos sociais das curtas anteriores, para se elevar e suspender num cume rarefeito – até porque pode ser uma última vez... – de jogos entre a exposição cruel da luz e a protecção das sombras. Salaviza filma como os "antigos", e este é um filme de um sereno esplendor – abstracto, se não tivermos medo da palavra. Utiliza o bairro dos Olivais, em Lisboa, como um Monument Valley para a cavalgada (anti-)heróica da sua personagem, que testa o território em busca do sopro épico que nunca (lhe) acontece.
As personagens de Montanha vivem em ambientes de sombra. Com a exposição à luz tratam de perceber que lugar, afinal, podem ter. Há uma sequência exemplar, belíssima: a corrida da personagem principal por uma rua do bairro dos Olivais. É uma cavalgada, como se tentasse dominar o território, o que nunca acontece  na verdade, todos transportam sempre a sombra com eles.
Sobre o trabalho da luz e das formas, por muito que a primeira leitura possa ser plástica, tento sempre que se ligue às formas da vida. Neste filme aconteceu uma coisa inesperada com um dos descontrolos que o filme teve, caminhos que ganhou. Montanha foi pensado inicialmente de forma mais solar e com uma presença mais quente do Verão – não só no sentido da temperatura, também no sentido dos afectos. Começámos a filmar e a primeira semana foi catastrófica – não deve haver um único plano que sobreviveu na montagem. Eu estava perdido, porque estava a achar muito contraditório o encontro destes dois desejos que era fazer um filme de Verão com imensa vida dos corpos e de alegria, apesar do lado meio loser do miúdo, apesar de uma morte que se anuncia, a do avô, apesar do primeiro amor falhado. O contraponto seria o Verão em Lisboa, a pele, o suor. Fizemos a pausa na primeira semana de rodagem, estava perdido, fui beber copos para o Bairro Alto e encontrei os três miúdos à noite [David Mourato, Rodrigo Perdigão, Cheyenne Domingues]. Havia ali uma tensão, levemente erótica, entre os três, uma promessa de triângulo amoroso – isso não estava sequer no guião – e houve uma revelação: a escuridão dá uma protecção que, afinal, revela mais do que a luz.
É como se a escuridão se passeasse com as personagens  há sequências de moto em que o veículo parece não descolar da câmara, como se não se conseguisse afastar, autonomizar, de um casulo.
E em todos os travellings isso acontece.
Excepto na tal cavalgada, que parece tentativa de conquista, de experimentar território...
Tinha a referência do Fúria de Viver [Nicholas Ray, 1955], ideia de uma adolescência perdida – pensei também nos Verdes Anos [Paulo Rocha, 1963] e no Sangue [Pedro Costa, 1989] –, em que há aquele elemento clássico na passagem para o terceiro acto, que é sempre uma corrida de motos ou de carros desesperada. Filmei muitas corridas durante a rodagem sem saber para o que serviriam. Interessava-me esse elemento de fôlego, até porque o filme acaba com um suspiro, o culminar de um cansaço que aquele miúdo vai acumulando. Filmei sempre muitas corridas, ficou essa, até pela relação intemporal com aqueles prédios dos Olivais, com aquela rua que remete para uma arquitectura de Inglaterra.
Inicialmente o filme foi pensado nos sítios da minha adolescência – entre os 10 e os 16 anos vivi num prédio de militares nas Avenidas Novas, andei muito por aquelas traseiras de prédios, onde também se filmaram muitas cenas dosVerdes Anos [Paulo Rocha, 1963]. Queria ter filmado aí, mas por uma série de constrangimentos fomos para os Olivais. A ideia de um miúdo a correr numa cidade vazia, onde desapareceram os vestígios de outras infâncias, pareceu-me uma coisa profundamente solitária, que me lembrou a minha adolescência naqueles prédios enormíssimos da Av. dos Estados Unidos da América e da Av. de Roma. Apesar de ser uma tentativa de filmar uma memória minha da adolescência, não é uma projecção, porque os Olivais estão mais envelhecidos do que o bairro onde cresci e vivi – na cena em que os miúdos conversam nas piscinas destruídas dos Olivais: já foram um ícone de uma fase de Lisboa; vi fotos daquelas piscinas com três mil pessoas nas bancadas a assistirem a provas de natação e de saltos para água.



Voltando ao encontro com os miúdos no Bairro Alto... teve de reescrever a história?
Houve muitas coisas que mudaram nesse dia. Houve logo uma reescrita, e não necessariamente no papel, a repensar as cenas. É um filme rarefeito, com poucos elementos cénicos...
...é um filme que se respira, mais do que se agarra...
... sim, três ou quatro personagens, centrado num miúdo, numa casa, no hospital. Tratou-se de repensar todo o filme a partir desses elementos – houve personagens que desapareceram. Nessa semana, filmei corridas, filmei o miúdo sozinho, coisas que não sabia que lugar teriam na narrativa, mas que queria filmar. Estávamos em Setembro, filmei as cenas de dia nesse final do Verão, e deixei as cenas de noite para os dias de Inverno, com chuva e frio. A casa transformou-se numa espécie de estúdio protegido e muito íntimo onde pudemos reconstruir o filme com os miúdos.



MIGUEL MANSO
O que acabou por carregar o filme dessa sensação de que a escuridão é maior protecção do que a luz...
Sim, comecei a sentir que a casa era um refúgio.
Em sequências de exteriores a forma como a luz define a arquitectura é o oposto desse conforto da sombra: é tão límpida, tão evidente, é cruel. Isso leva-me a perguntar-lhe sobre um lado abstracto de Montanha: quem vir o filme daqui a uns anos, não terá elementos para o datar – por exemplo, nenhum miúdo tem telemóvel ou troca mensagens pelo telemóvel.
Isso também acontece no Arena. Por muito que existisse essa intenção prévia, acho que há uma dificuldade do cinema em lidar com a imaterialidade das coisas – mais do que com a espiritualidade. O [Robert] Bresson, o Apichatpong [Weerasethakul], o [Andrei] Tarkovsky filmam o invisível, mas a imaterialidade numa conversa, através de uma troca de mails ou de mensagens, ainda não consegui perceber como pode ser transformada em imagens.
A força de um email pode ser devastadora, como uma carta ou como uma despedida numa ponte num filme dos anos 50. Ao mesmo tempo, o meu fascínio pelo David teve que ver em reconhecer nele uma resistência, ingénua e inconsciente, a esta forma de comunicação que os miúdos hoje têm: não usava Facebook, esquecia-se do telemóvel, tinha uma relação muito mais física e corpórea com as coisas. É um miúdo com uma relação incrível com o corpo. Aquela cena em que ele está a fazer uma beat box com a cadeira de rodas aconteceu porque no dia em que estávamos a filmar num hospital ele estava aborrecidíssimo, à espera da luz, e pegou numa cadeira de rodas e em duas horas aprendeu a equilibrar-se, para se entreter e passar o tempo. Decidi filmá-lo a fazer isso depois numa outra cena.
O filme tornou-se mais negro...
Percebi que o filme era isso.
Foi o resultado de um dos descontrolos...
Foi duríssimo.
Achou que não ia conseguir?
[Pausa]. Durante a rodagem das curtas, todos os dias antes de dormir via o filme: são 15 minutos, estava sempre a ver o filme, a reconstruir plano a plano. Na longa-metragem senti o contrário, senti aquele cliché que os realizadores dizem: que o filme ganha vida por caminhos imprevistos. Isso aconteceu de facto. O desejo de ter o filme permeável à realidade e aos imprevistos, aproximando-se da natureza da realidade e da natureza das pessoas que tenho à frente da câmara, por quem sinto uma sensação de paixão, faz com que o processo seja muito menos lúcido. Mas já percebi – por isso espero que nos próximos não me venha a sentir perdido – que é possível filmar uma sequência inteira pensando apenas na energia dessa sequência, que pode ter vida própria.
Quando senti que não sabia para onde o filme estava a ir, agarrei-me ao miúdo, filmar coisas que me apetecia filmar com aquele corpo, aquela casa, os vestígios.
Ser a primeira longa, e devido à expectativa criada pelas curtas e pelos prémios, pesou nessa sensação?
Não. Cheguei à conclusão que uma pessoa faz os filmes que consegue fazer. Não conseguiria fazer o filme de outra forma. O que sei e o que me interessa está no filme. Portanto, a dificuldade é principalmente comigo próprio. Essa coisa de fazer os filmes para as pessoas... não tenho vergonha de dizer que o impulso para fazer o filme, numa fase inicial, é profundamente egoísta. Ninguém precisa mais deste filme do que eu. Depois, a forma como ele ecoa nas vidas de outras pessoas transcende-me. Não consigo antecipar as reacções das outras pessoas. É verdade que o dinheiro e o tempo que se tem para os filmes se baseiam num sistema que tem que ver com o sucesso anterior – isso para mim, como para todos os realizadores, com tudo o que de perverso esse sistema tem.
Numa conversa que tivemos, estava ainda numa fase inicial da escrita, falou do filme como um corte com o que estava para trás. Não o é. Acaba por se manter na adolescência e na infância. Há uma sequência em que a personagem parece ser embalada numa rede, é alguém que quer continuar a manter-se junto ao tempo da infância. O que é que o fez a si continuar a querer ser embalado, como cineasta, por este universo?
Não é um corte radical com as minhas curtas. Mas se calhar filmei pela última vez isso – esse desejo de cruzar Lisboa e a adolescência que existia nas curtas e que se materializou de forma mais complexa agora. Durante a montagem e a mistura de som, em Paris, comecei a pensar noutras ideias e noutros lugares que me interessam. Sinto que este filme da adolescência do David é um paralelo com a minha adolescência cinematográfica enquanto realizador...
... acaba aqui?
Não sei se acaba, mas tão cedo não voltarei a filmar adolescentes em Lisboa. Há um tempo para tudo. Acho que o Larry Clark [cineasta americano, autor de Kids] deixou de conseguir filmar os adolescentes, porque também envelheceu. Dei por mim com uma sensação estranha: estava muito próximo e muito distante da adolescência do David. Já tenho 30 anos, não tenho idade para ser pai dele, mas não partilho uma série de vivências dele que já vivi de outra forma.
Esta adolescência não é uma adolescência do século XXI, contudo. Há um perfume da adolescência. Mais do que retratos de personagens e das suas circunstâncias sociais, como nas curtas, que, aí sim, estão objectivamente distantes de si, aqui há uma elevação em relação aos circunstancialismos. 
Quando comecei a pensar o filme, antecipava-se a crise. E eu tinha o desejo de tentar materializar o contexto do Portugal da crise, do que se está a passar agora e se antecipava na altura. E como é que um miúdo de 15 anos vivia essas mudanças. Era um desejo de incorporar estes factos. Conforme fui preparando, e depois de ter conhecido o David, comecei a achar que o mais forte era filmar não o país, mas o terreno da adolescência deste rapaz, que é completamente desligado e desinteressado do que está a acontecer.
Venho de uma família de esquerda, politizada, desde novo que tenho consciência do que se passa social e politicamente e descobrir isso foi um choque. Mas se calhar há uma ideia política na forma como estes miúdos viram as costas a um país tal como ele é mostrado nas televisões, pelas instituições, pela escola. É uma coisa quase punk, niilista. A adolescência sempre foi representada no cinema através dos seus antagonismos históricos e sociais e desta vez não havia forças de antagonismos, eram coisas mais interiores e espirituais que se materializavam. Comecei a interessar-me por fazer um filme que rejeitava uma ideia de país: estão a marimbar-se para os telejornais e para o país.
Uma dissidência...
Sim, e uma vez que não percebem, que não participam, viram as costas. Há uma ideia quase religiosa: eles propõem a salvação através da intimidade. Fiquei fascinado por fazer um filme que se passa em vãos de escada, em camas desfeitas, com mesas com a louça do dia anterior. Isso aconteceu por me sentir socialmente mais próximo do David do que das personagens das curtas, em que havia um sentimento mais antropológico. Não me interessava que o filme tivesse uma visão sociológica, jornalística. A intimidade é a zona que permite às personagens ligarem-se.
Vamos voltar à sequência da corrida à luz...
Ele corre sem rumo, deambula o filme inteiro, coisa que já acontecia às personagens dos filmes anteriores.
O que é bonito e aquilo que não acontece: é um movimento épico, de procura...
Como num western...
... exactamente, um pedaço dos Olivais como Monument Valley. Mas à personagem é-lhe negada a realização épica, a euforia. O final é o oposto disso, aliás... nem sequer é o drama.
... é o esvaziamento. A frase final do miúdo [dita à mãe] é: “Dorme, dorme, ainda é cedo.” A sensação de que é um filme, como disse, que se respira mais do que se agarra, tem que ver com o facto de propor uma suspensão do espaço e do tempo. Tentei filmar à procura dessa energia. O filme é concentrado, passa-se em três ou quatro dias, parece que o miúdo nunca chega a dormir, há sensação de cansaço, na primeira cena não se percebe se está a dormir ou se está acordado, se é um sono preocupado, nunca o vemos a deitar-se e a acordar. Esta ideia de filmar no último andar de um prédio, de haver cenas em passagens aéreas, em espaços suspensos, tentei que isso se articulasse com esta ideia de dias nebulosos e muito densos, em que o miúdo parece estar pouco lúcido. É uma sensação que recordo da adolescência, dias muito intensos em que o tempo se torna pouco linear. Essa sensação que o filme propõe tem que ver com ideias de cinema, mas fundamentalmente com ideias da adolescência, com coisas que identifiquei na minha adolescência e que procurei transformar em cinema.
Este miúdo é levado, mais do que se conduz a si próprio. Essa corrida é o momento em que ele parece correr de forma deliberada, para acompanhar qualquer coisa. Nos outros momentos ele está em transportes públicos, no carro com a mãe a ser levado, está a ser embalado pela rede na varanda – parece sempre caminhar sem saber. Estas ideias todas são mais do que ideias de cinema... para mim a dificuldade, mas também o prazer de filmar tem que ver com o entender a natureza das pessoas.»
Ver entrevista aqui







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