domingo, 21 de junho de 2020

«Se estou sozinho
E num beco que me encontro
Vou porta a porta perguntando a quem me viu
Se ali morei, se eu era o mesmo e em que ponto
O meu desejo fez as malas e fugiu»

As Armas do Amor - Sérgio de Godinho



Desarmem
Os campos minados da ignorância
Onde se infiltra friamente
O preconceito, esse sim, fatal, letal, brutal
E não há senso que lhe valha
O preconceito desempalha
Animais incongruentes
Atacando pela trilha
De uma ilha outrora virgem
Aparência de virtude
O preconceito nunca falha
Flecha certeira, na esteira da inocência
Aparência de virtude
E por mais que se escude
Na justificação pseudo-ética
Cosmética, caquética
Do seu valor de guardião das morais
Vitais p'ra lá do ano 2000
O preconceito não tem estado civil
É casado com a morte
Divorciado da vida
É viúvo de si mesmo
É solteiro e por junto separado
Suicida
Desarmem o preconceito
Armem por favor as armas do amor
Amar no sentido primeiro e secular
Armem o mar
Armem o vento p'ro uso depois
Vão e regressem depois
Mas por quem sois
Mas por quem sois
Armem as armas do amor
Armem as armas do amor
Armem as armas do amor
Armem por favor as armas do amor
Desarmem
As metralhadoras côr-de-cinza
Que defendem a condescendência
Cautelosa, lacrimosa
Das decisões oficiais
Carimbadas despachadas
E só por isso legais
Mas que vão milhas atrás
Das atrozes realidades
Que o corpo grita
E a alma berra
A condescendência não desferra
No cofre forte onde se encerra
A planificação ponderada
De um problema complexo
Há soluções de fachada
Dois mil mortos perfilados na parada
Há palestras sobre sexo
É um problema complexo
Não se dane se ninguém resolve nada
Ano após ano
Dois mil mortos perfilados na parada
Um por ano
Nossa escada em caracol para o nirvana
Desarmem a condescendência!
Armem por favor as armas do amor
Amar no sentido primeiro e secular
Armem o mar
Armem o vento p'ro uso depois
Vão e regressem depois
Mas por quem sois
Mas por quem sois
Armem as armas do amor
Armem as armas do amor
Armem as armas do amor
Armem por favor as armas do amor
Desarmem
A pose altiva
Emproada gargalhada
Que veste a incompetência
Incipiência disfarçada de suma
Sabedoria, quem diria
Quem diria que debaixo de uma só alegoria
Tanto exemplo existiria
Exemplos de incompetência
São aos montes, são às serras
Impossíveis de escalar
Passos vãos, inúteis guerras
A incompetência é incapaz de se olhar
O cadáver inocente
É olhado pelo soldado incontinente
Pelo menos é um olhar
A incompetência, nem pensar
Nem pensar em juntar o resultado à vontade
O sonhado à realidade
E do real partir para a utopia
Menos mal, assim seria, menos mal
Desarmem a incompetência!
Armem por favor as armas do amor
Amar no sentido primeiro secular
Armem o mar
Armem o vento p'ro uso depois
Vão e regressem depois
Mas por quem sois
Mas por quem sois
Armem as armas do amor
Armem as armas do amor
Armem as armas do amor
Armem por favor as armas do amor
Desarmem
A boa consciência arrogante
Altissonante, complacente
Da intolerância religiosa, da intolerância civil
Da intolerância, tanto faz
Desdenhosa e incapaz
De intuir na diferença
A trave-mestra desta vida
Sal da vida
A intolerância é uma água envenenada
Rota em jorros mas dos gritos só sai água silenciosa
A mais perigosa
Engrossa rios, traz detritos
Traz a caixa das esmolas
Flutuando já tombada
Penetra casas e escolas
Leva livros ditos sagrados
Mas levados mais à letra
Que a própria letra das suas margens
E assim pondo-se à margem
Dos próprios rios sagrados
Desarmem a intolerância!
Armem por favor as armas do amor
Amar no sentido primeiro e secular
Armem o mar
Armem o vento p'ro uso depois
Vão e regressem depois
Mas por quem sois
Mas por quem sois
Armem as armas do amor
Armem as armas do amor
Armem as armas do amor
Armem por favor as armas do amor
Armem por favor as armas do amor
Compositores: Sérgio Godinho
«Olha os amores são facas de dois gumes
Têm de um lado a paixão, do outro os ciúmes
São desencantos que vivem encantados
Como velas que ardem por dois lados.»

CHANTAL AKERMAN

 “Faço cinema porque não tenho coragem de cumprir a escrita”, diz na sua LETTRE D’UNE CINÉASTE (1984). “Acredito mais nos livros que nas imagens. A imagem é um ídolo num mundo idólatra. Num livro não há idolatria, ainda que queiramos idolatrar as personagens. Quando imergimos num grande livro, experimentamos um acontecimento, um acontecimento extraordinário”
If you come as softly
As the wind within the trees
You may hear what I hear
 See what sorrow sees.

Audre Lorde 

“arqueologia da percepção”

 Foucault – leituras da história da loucura

obra foucaultiana

a análise do fascínio exercido pelos textos literários na obra foucaultiana:

 “é, sobretudo, uma bibliofilia: um amor – borgiano – às bibliotecas, a seus textos que subvertem datas e enquadramentos”


“O discurso diferente”, de Renato Janine Ribeiro (in: RIBEIRO, R.J. (org.), Recordar Foucault. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985).
C O N S O L O
Chegarão as horas
em que as velhas feridas,
essas que esquecemos em tempos,
ameaçarão consumir-nos.
Chegarão os dias
em que nenhuma balança
da vida e das tristezas
poderá inclinar-se para um ou outro prato.
Transcorrerão as horas
e passarão os dias.
Mas um desejo permanecerá:
a mera persistência.
Hannah Arendt, Poemas | Fulgor - Quotidiano 
(...)

«Meu amor eu gosto tanto
Da forma como tu gostas
Mas por favor anda buscar
As tuas unhas às minhas costas.»

Sérgio Godinho
“O principal nesta minha obra da Casa Verde é estudar profundamente a loucura, os seus diversos graus, classificar-lhes os casos, descobrir enfim a causa do fenômeno e o remédio universal.” 

(MACHADO DE ASSIS, O alienista)
“O alienado mais violento e mais temível se tornou, por vias suaves e conciliatórias, o homem mais dócil e digno de interesse por uma sensibilidade tocante.”

(Dr. Ph. PINEL, Tratado médico-filosófico sobre a alienação mental)

2º Andar Direito - Sérgio Godinho

Ele vinte anos, e ela dezoito
E há cinco dias sem trocarem palavra
Lembrando as zangas que um só beijo curava
E esta história começa no instante
Em que o homem empurra a porta pesada
Entra no quarto onde a mulher está deitada
A dormir dum sono ligeiro
A dormir dum sono ligeiro
E no quarto, às cegas
O escuro abraça-o como que a um companheiro
Que se conhece pelo tocar e pelo cheiro
E é o ruído que o chão faz que lhe traz
O gosto ao quarto depois duma rutura
Faz-lhe sentir que entre os dois algo ainda dura
Dos dias em que um beijo bastava
Dos dias em que um beijo bastava
E agora, da cama
Vem uma voz que diz sussurrando, és tu?
E a luz acende-se sobre um braço nu
E a mulher pergunta, a que vens agora?
É que não sei se reparaste na hora
Deixa dormir quem quer dormir, vai-te embora
Amanhã tenho de ir trabalhar
Amanhã tenho de ir trabalhar
Não fales, que o bebé ainda acorda
Não grites, que o vizinho ainda acorda
E não me olhes, que o amor ainda acorda
Deixa-o dormir, o nosso amor, um bocadinho mais
Deixa-o dormir, que viveu dias tão brutais
E o homem, de pé
Parece um rapazinho a ver se compreende
E grita e diz que ele também não se vende
Que quer a paz mas de outra maneira
E nem que essa noite fosse a derradeira
Veio afirmar quer ela queira ou não queira
Que os dois ainda têm muito a aprender
Que os dois ainda têm muito a aprender
Se temos, diz ela
Mas o problema não é só de aprender
É saber a partir daí que fazer
E o homem diz, que queres que responda?
Não estamos no mesmo comprimento d'onda
Tu a mandares-me esse sorriso à Gioconda
E eu com ar de filme americano
E eu com ar de filme americano
Somos tão novos, diz o homem
E agora é a vez de a mulher se impacientar
Essa frase já começa a tresandar
É que não é só uma questão de idade
O amor não é o bilhete de identidade
É eu ou tu, seja quem for, ter vontade
De mudar e deixar mudar
De mudar e deixar mudar
Não fales, que o bebé ainda acorda
Não grites, que o vizinho ainda acorda
E não me olhes, que o amor ainda acorda
Deixa-o dormir, o nosso amor, um bocadinho mais
Deixa-o dormir, que viveu dias tão brutais
E assim, se ouviu
Pela noite fora os dois amantes falar
E o que não vi só tive que imaginar
É preciso explicar que sou eu o vizinho
E à noite vivo neste quarto sozinho
Corpo cansado e cabeça em desalinho
E o prédio inteiro nos meus ouvidos
E o prédio inteiro nos meus ouvidos
Veio a manhã e diziam
Telefona ao teu patrão, diz que hoje não vais
Que viveste uns dias assim tão brutais
E que precisas de convalescença
Sei lá, inventa qualquer coisa, uma doença
Mete um atestado ou pede licença
Sem prazo nem vencimento, se preciso for
Sem prazo nem vencimento, se preciso for
(Espero que não seja preciso
Porque não sei como é que eles vão viver sem os dois salários)
Vá fala que o bebé está acordado
O vizinho deve estar já acordado
E o amor, pronto, também está acordado
Mas tem cuidado, trata-o bem muito bem, de mansinho
Que ainda agora vai pisar outro caminho

Compositores: Sérgio Godinho

domingo, 14 de junho de 2020

'' perdido em colecções de amorios até ao fastio''


Urbano Tavares Rodrigues. Bastardos do Sol. Prefácio de Claude Michel Cluny. Círculo de Leitores, 1974., p. 72

«Estragado com facilidades, desde a infância pródiga (...)»


Urbano Tavares Rodrigues. Bastardos do Sol. Prefácio de Claude Michel Cluny. Círculo de Leitores, 1974., p. 72

Não, não eram dele


«Não, não eram dele aqueles cabelos penteados para a fotografia, com uma carapaça de fixador correctíssima, que lhe acentuava o feitio triangular do rosto, nem o botão de ouro na camisa de lavrador e a jaqueta espartilhada, que ele já só vestia ultimamente «para se mascarar», em dias consagrados ao clã familiar.»

Urbano Tavares Rodrigues. Bastardos do Sol. Prefácio de Claude Michel Cluny. Círculo de Leitores, 1974., p. 71

«(...) com a testa  inundada de caracóis suados, negros como serpentes negras.»

Urbano Tavares Rodrigues. Bastardos do Sol. Prefácio de Claude Michel Cluny. Círculo de Leitores, 1974., p. 70

''o jogo da dureza tem os seus atractivos.''


Urbano Tavares Rodrigues. Bastardos do Sol. Prefácio de Claude Michel Cluny. Círculo de Leitores, 1974., p. 69

bioco

 /ô/
bi.o.co
ˈbjoku
nome masculino
1.
mantilha usada para cobrir a cabeça e parte do rosto
2.
figurado hipocrisiafalsa modéstia
3.
figurado gesto ameaçadorameaça

BIOCO



Raul Brandão escreve a propósito do bioco no seu livro "Os Pescadores", em 1922:Biocos.jpg (102891 bytes)
" Ainda há pouco tempo todas (as mulheres de Olhão) usavam cloques e bioco. O capote, muito amplo e atirado com elegância sobre a cabeça, tornava-as impenetráveis.
É um trajo misterioso e atraente . Quando saem, de negro envoltas nos biocos, parecem fantasmas. Passam, olham-nos e não as vemos. Mas o lume do olhar, mais vivo no rebuço, tem outro realce... Desaparecem e deixam-nos cismáticos. Ao longe, no lajedo da rua ouve-se ainda o cloque-cloque do calçado - e já o fantasma se esvaiu, deixando-nos uma impressão de mistério e sonho. é uma mulher esplêndida que vai para uma aventura de amor? De quem são aqueles olhos que ferem lume?... Fitou-nos, sumiu-se, e ainda - perdida para sempre a figura -, ainda o som chama por nós baixinho, muito ao longe-cloque..."

“A gente segue pelas ruas desertas, e, de quando em quando, irrompe duma porta um fantasma negro e disforme, de grande capuz pela cabeça. São quase sempre as velhas que o usam, mas as raparigas, metidas na concha deste vestuário, que pouco varia de ilha para ilha, chegam a comunicar encanto ao capote monstruoso. (…) Começo a achar interesse a este fantástico negrume e resolvo que devia ser o único trajo permitido às mulheres açorianas.”

  
«Só depois de a haver beijado e desvendado e de a ter perturbado e revolvido como ninguém até então, com gestos novos e macios, é que ele - só então - se ilhara dela a fumar, resserenado, »

Urbano Tavares Rodrigues. Bastardos do Sol. Prefácio de Claude Michel Cluny. Círculo de Leitores, 1974., p. 55
I had a friend one time, at least I thought he was my friend
For he came to me, said "I ain't got no place to go"
I said "take it easy man, you can come home to my house,
I'll get you a pillow where you can rest your head"
Took him home with me, let him in my house,
Let him drive my Cadillac that I could not afford
When I found out he'd been messin' around with my baby
You know I'm mad like Al Capone (I'm burnin' up)
I said I'm mad (I'm burnin' up)
Like Sonny Liston yeah (I'm burnin' up)
You know baby I'm mad (I'm burnin' up)
Like Cassius Clay (I'm burnin' up)
You know I'm mad (I'm burnin' up) you know I'm mad
Yeah baby, alright baby (I'm burnin' up)
I'm mad, come on (I'm burnin' up)
Took him home with me, introduced him to my baby,
He began to talk to her, made her think the moon was blue
You know I think I ought to tell you daddy
I'm mad, I said I'm mad with you
I don't know what I'm gonna do to you
I might drown you, I might shoot you
I just don't know because I'm mad
I said I'm mad (I'm burnin' up)
You know I'm mad (I'm burnin' up)
I don't have to tell you I'm mad (I'm burnin' up)
I'm mad with you yeah (I'm burnin' up)
I said I'm mad (I'm burnin' up)
Yeah yeah yeah (I'm burnin' up)
I said I'm mad (I'm burnin' up)
You know I'm mad, oh baby I'm mad
Oh I said I'm mad, you know I'm mad, oh baby I'm mad

Compositores: John Lee Hooker


«Quando as rosas se acabavam, arranjava outras flores, mensagens de segundo grau (do tempo intervalar que menos lhes pertencia), mas onde ainda pudessem encontrar alguma sugestão de carne, ou mesmo de ferida, e de paixão.»


Urbano Tavares Rodrigues. Bastardos do Sol. Prefácio de Claude Michel Cluny. Círculo de Leitores, 1974., p. 53

«À entrada desta rua,

À saída desta estrada,
Terás a rosa de sangue
Qu'inda não foi desfolhada.»


Urbano Tavares Rodrigues. Bastardos do Sol. Prefácio de Claude Michel Cluny. Círculo de Leitores, 1974., p. 53
dar às palhetas
andar depressa
dar de palheta
trabalhar
passar as palhetas a
esgueirar-se a, suplantar
popular ter palheta
ter conversa, ter palavreado, ter lábia



«; e a vila, que não tinha por costume festejar o filho pródigo, a ele, sim senhor, rendia-se-lhe à sua madracice fantasista, ao seu instinto da gentileza com um grão de insolência.

- Toma, mandei-a vir de Lisboa. Como agora não há rosas... - dizia, com uma suavidade experiente e ambígua de menino de coro, estendendo-lhe a caixa de plástico transparente em cujo fundo dormia uma orquídea roxa e amarela.» 
 Tinha uma palheta de ouro no fundo dos olhos pretos. E era esse  misto de candura e cinismo, só para ela, o que mais a prendia àquele rapaz confessamente egoísta e leviano »

Urbano Tavares Rodrigues. Bastardos do Sol. Prefácio de Claude Michel Cluny. Círculo de Leitores, 1974., p. 50

''vaidade ferida''


Urbano Tavares Rodrigues. Bastardos do Sol. Prefácio de Claude Michel Cluny. Círculo de Leitores, 1974., p. 46

''Já a geada lhe picava as mãos.''


Urbano Tavares Rodrigues. Bastardos do Sol. Prefácio de Claude Michel Cluny. Círculo de Leitores, 1974., p. 41

''vespeiro de grevistas''


Urbano Tavares Rodrigues. Bastardos do Sol. Prefácio de Claude Michel Cluny. Círculo de Leitores, 1974., p. 40
assinar a rogo
assinar por quem não sabe escrever



Angie, Angie
When will those dark clouds all disappear
Angie, Angie
Where will it lead us from here
With no lovin' in our souls
And no money in our coats
You can't say we're satisfied
Angie, Angie
You can't say we never tried
Angie, you're beautiful
But ain't it time we say goodbye
Angie, I still love you
Remember all those nights we cried
All the dreams were held so close
Seemed to all go up in smoke
Let me whisper in your ear
Angie, Angie
Where will it lead us from here
Oh, Angie, don't you wish
Oh your kisses still taste sweet
I hate that sadness in your eyes
But Angie
Angie
Ain't it time we said goodbye
With no lovin' in our souls
And no money in our coats
You can't say we're satisfied
Angie, I still love you baby
Everywhere I look I see your eyes
There ain't a woman that comes close to you
Come on baby dry your eyes
Angie, Angie ain't good to be alive
Angie, Angie, we can't say we never tried


Compositores: Keith Richards / Mick Jagger
Childhood living is easy to do
The things you wanted I bought them for you
Graceless lady you know who I am
You know I can't let you slide through my hands
Wild horses couldn't drag me away
Wild, wild horses couldn't drag me away
I watched you suffer a dull aching pain
Now you've decided to show me the same
No sweeping exit or offstage lines
Could make me feel bitter or treat you unkind
Wild horses couldn't drag me away
Wild, wild horses couldn't drag me away
I know I've dreamed you a sin and a lie
I have my freedom but I don't have much time
Faith has been broken tears must be cried
Let's do some living after we die
Wild horses couldn't drag me away
Wild, wild horses we'll ride them some day
Wild horses couldn't drag me away
Wild, wild horses we'll ride them some day

Compositores: Keith Richards / Mick Jagger
“carregando consigo o manto negro que é a dor, perdeu o instinto do sexo; é já somente o suporte dos atos humanos de um eu empírico; um reflexo, uma coisa-em-si passada. Um sem futuro”

João Miguel Fernandes Jorge

 “Há muito que são velhas, vestidas / de preto até à alma. / Contra o muro / defendem-se do sol de pedra; / ao lume / furtam-se ao frio do mundo. / Ainda têm nome? Ninguém / pergunta, ninguém responde. / A língua, pedra também”

Eugénio de Andrade
 “Estás sentada no jardim / as mãos no regaço cheias de doçura, / os olhos pousados nas últimas rosas / dos grandes e calmos dias de setembro.''

Eugénio de Andrade

As Mães

Elas são as Mães, essas mulheres que Goethe pensa estarem fora do tempo e do espaço, anteriores ao Céu e ao Inferno, assim velhas, assim terrosas, os olhos perdidos e vazios ou vivos como brasas assopradas. Solitárias ou inumeráveis, aí as tens na tua frente, graves, caladas, quase solenes na sua imobilidade, esquecidas de que foram o primeiro orvalho do homem, a primeira luz. (p. 95)

Eugénio de Andrade

“o pastor, a criança e a mulher de negro”

O artista plástico Jorge Pinheiro, numa conversa informal com Eugénio de Andrade, perguntou-lhe quais eram os seus “fantasmas”. Desassombradamente, o poeta respondeu: “o pastor, a criança e a mulher de negro”.
“Penso na morte da raça humana. A longa e estranha viagem do macaco nu. Não quero soar ligeiro, leve, mas a vida de toda a gente é tão transitória. Todos os seres humanos, não importa quão fortes ou poderosos sejam, são frágeis relativamente à morte. Penso isso em termos gerais, não de uma forma pessoal”.

Bob Dylan em entrevista

A infância de Herberto Helder


No princípio era a ilha
embora se diga
o Espírito de Deus
abraçava as águas

Nesse tempo
estendia-me na terra
para olhar as estrelas
e não pensava
que esses corpos de fogo
pudessem ser perigosos

Nesse tempo
marcava a latitude das estrelas
ordenando berlindes
sobre a erva

Não sabia que todo o poema
é um tumulto
que pode abalar
a ordem do universo agora
acredito

Eu era quase um anjo
e escrevia relatórios
precisos
acerca do silêncio

Nesse tempo
ainda era possível
encontrar Deus
pelos baldios

Isto foi antes
de aprender a álgebra

Os dias de Job

Às vezes rezo
sou um cego e vejo
as palavras o reunir
das sombras

às vezes nada digo
estendo as mãos como uma concha
puro sinal da alma
a porta

queria que batesses
tomasses um por um os meus refúgios
estes dedos
inquietos na ignorância
do fogo

pois que tempo abrigará
os anjos
e que dia erguerá todo o sol
que há nas dunas

por isso
às vezes chove quando rezo
às vezes quase neva
sobre o pão

A casa onde às vezes regresso

A casa onde às vezes regresso é tão distante
da que deixei pela manhã
no mundo
a água tomou o lugar de tudo
reúno baldes, estes vasos guardados
mas chove sem parar há muitos anos

Durmo no mar, durmo ao lado de meu pai
uma viagem se deu
entre as mãos e o furor
uma viagem se deu: a noite abate-se fechada
sobre o corpo

Tivesse ainda tempo e entregava-te
o coração
A presença mais pura

Nada do mundo mais próximo
mas aqueles a quem negamos a palavra
o amor, certas enfermidades, a presença mais pura
ouve o que diz a mulher vestida de sol
quando caminha no cimo das árvores
«a que distância da língua comum deixaste
o teu coração?»

A altura desesperada do azul
no teu retrato de adolescente há centenas de anos
a extinção dos lírios no jardim municipal
o mar desta baía em ruínas ou se quiseres
os sacos do supermercado que se expandem nas gavetas
as conversas ainda surpreendentemente escolares
soletradas em família
a fadiga da corrida domingueira pela mata
as senhas da lavandaria com um «não esquecer» fixado
o terror que temos
de certos encontros de acaso
porque deixamos de saber dos outros
coisas tão elementares
o próprio nome

Ouve o que diz a mulher vestida de sol
quando caminha no cimo das árvores
«a que distância deixaste
o coração?»


Os amigos

Esses estranhos que nós amamos
e nos amam
olhamos para eles e são sempre
adolescentes, assustados e sós
sem nenhum sentido prático
sem grande noção da ameaça ou da renúncia
que sobre a luz incide
descuidados e intensos no seu exagero
de temporalidade pura

Um dia acordamos tristes da sua tristeza
pois o fortuito significado dos campos
explica por outras palavras
aquilo que tornava os olhos incomparáveis

Mas a impressão maior é a da alegria
de uma maneira que nem se consegue
e por isso ténue, misteriosa:
talvez seja assim todo o amor
A noite abre meus olhos

Caminhei sempre para ti sobre o mar encrespado
na constelação onde os tremoceiros estendem
rondas de aço e charcos
no seu extremo azulado

Ferrugens cintilam no mundo,
atravessei a corrente
unicamente às escuras
construí minha casa na duração
de obscuras línguas de fogo, de lianas, de líquenes

A aurora para a qual todos se voltam
leva meu barco da porta entreaberta

o amor é uma noite a que se chega só


O esterco do mundo

Tenho amigos que rezam a Simone Weil;
Há muitos anos reparo em Flannery O’Connor

Rezar deve ser como essas coisas
que dizemos a alguém que dorme
temos e não temos esperança alguma
só a beleza pode descer para salvar-nos
quando as barreiras levantadas
permitirem
às imagens, aos ruídos, aos espúrios sedimentos
integrar o magnífico
cortejo sobre os escombros

Os orantes são mendigos da última hora
remexem profundamente através do vazio
até que neles
o vazio deflagre

São Paulo explica-o na Primeira Carta aos Coríntios,
«até agora somos o esterco do mundo»
citação que Flannery trazia à cabeceira


O poema

O poema é um exercício de dissidência, uma profissão de incredulidade na omnipotência do visível, do estável, do apreendido. O poema é uma forma de apostasia. Não há verdadeiro poema que não torne o sujeito um foragido. O poema obriga a pernoitar na solidão dos bosques, em campos nevados, por orlas intactas. Que outra verdade existe no mundo para além daquela que não pertence a este mundo? O poema não busca o inexprimível: não há piedoso que, na agitação da sua piedade, não o procure. O poema devolve o inexprimível. O poema não alcança aquela pureza que fascina o mundo. O poema abraça precisamente aquela impureza que o mundo repudia.
Os justos

Começam o dia louvando o imperfeito:
o tempo que se inclina para o lado partido
as escassas laranjas que se tornam
amarelas no meio da palha
as talhas sem vinho

Olham por dentro a brancura da manhã
e em tudo quanto auxilia um homem no seu ofício
louvam o vulnerável e o inacabado

Estão sentados à soleira dos espaços
trabalhados devagar pelo silêncio

Quando Deus voltar
não terá de arrombar todas as portas

sexta-feira, 12 de junho de 2020

Retrato de Pasolini em Nova Iorque

Vejo-o nesta fotografia em Times Square
agitado como era
por desejos, por desesperos em sucessão
diante de uma irónica parede publicitária
com as palavras Castro e Coca-Cola

Vejo-o vestido no modo mais sincero
como um desses miúdos dos College
conscientes da sua elegância
nem ingénua nem mítica:
a camisola vistosa, de uma cor inacreditável
calças de veludo, um pouco estreitas
sapatos de couro perfeito

Quando se encosta à janela onde a luz bate
sobre os olhos lúcidos, dissidentes, provocatórios
sobre a face imutável e emagrecida
percebemos então a idade que tem:
os seus quarenta e quatro anos
a somar aos setecentos que teria hoje Boccacio

Não houve aqui noite passada
que não desse por si sozinho
nas estradas escusas do Harlem, de Greenwich Village ou de Brooklyn
em bares onde nem a polícia entra
à procura daquela América infame
de onde regressava
já quase manhã
com os restos de uma canção
que não queria esquecer
e o corpo derrubado pela surpresa
de estar vivo

No verso desta fotografia
que me acompanha há tantos anos
escrevi também uma frase sua
sobre a blasfémia
que a santidade tem de ser
E ao balcão deste café, não longe de Times Square
dou comigo a pensar
confusamente em tudo isto

Voto de pobreza

Escolheram viver em casas frias
com enfermos, bêbados, criminosos
e podem descrever muitos tipos de piolhos do corpo
Deixam que os olhos se mortifiquem
na visão de excrementos e membros mutilados
bocas, narizes, olhos
(não são pecadores decentes
os receptores do amor de Cristo)

A frugalidade alumia neles o que vem
a escassez interpreta a oferenda
mas tendo esvaziado assim os seus celeiros
ainda dizem
«nada entreguei»

pois a pobreza verdadeira não é essa:
é aceitar que depois de tudo
o pai do filho pródigo não queira saber
porque se parte
ou porque se regressa
[A tua sede]

A tua sede peregrino
não se aplaca na água
mas pela pedra
«O sujeito clássico tradicional é um sujeito unário; o sujeito modernista é um sujeito vário; e o sujeito do classicismo modernista é um sujeito binário, lugar tenso e intenso de uma conflitualidade interna» 

(Luís Adriano Carlos, «O Classicismo Modernista de José Régio», Línguas e Literaturas, vol. VIII, Porto, 1991, p. 129).  
''Só depois de reconhecido um autor como personalidade própria, ou uma obra como realidade objectiva, se poderá criticá-lo ou criticá-la, e dentro da sua esfera. Então se achará que a sua órbita não é tão apertada como de princípio nos parecera. Então se pensará que a alma dum criador sempre é mais rica, mais diversa, do que a imagem que, no geral, a consagração pública emoldura, para em sossego a contemplar. ''

JOSÉ RÉGIO 

sexta-feira, 5 de junho de 2020

quinta-feira, 4 de junho de 2020

E dói-me esse rio de já me não amares
de já me não quereres assim como eu te quero
de não sobressaltares porque sou eu que te espero
em esquinas de lágrima ou sorriso
foi-se o amor chegou o siso
e eu
que não nasci para ter juízo

E dói-me o teu ventre que não afago
como quem depois de amanhã se afoga
e hoje apenas está, dê para o que der
e doa a quem doer

Passam sanguessugas pelos trilhos da memória
umas são mortas, outras são vivas,
outras são glória
de já não existir e teimar em persistir
e eu vou ao vento, sou palmeira seca,
sou teimoso sou frágil sou de teca de cetim
sou uns dias teu, outros assim assim

E dói-me o teu ventre que não afago
como quem depois de amanhã se afoga
e hoje apenas sente, e já pouco quer
para além de seres mulher

E sei que já não sinto o que senti nem sei quem sou
mas seja eu quem for fazes-me falta, ainda és música
perdi a pauta, nada sei cantar, acho que esta conversa
é coça umbigo, vai ter que parar

Mas dói-me o teu ventre que não afago
como quem não sabe nadar
e hoje é de festa, amanhã é de mar
é de mar

Manuel Cintra
in Não sei nunca por onde,
Quasi Edições

Canja de Galinha (com Miúdos)


Luís Miguel Cintra: "Há uma vontade do sistema político de estupidificar as pessoas"

O encenador serviu uma Canja de Galinha (com Miúdos) para aliviar a azia provocada pelos males da sociedade contemporânea.