sexta-feira, 12 de junho de 2020

Retrato de Pasolini em Nova Iorque

Vejo-o nesta fotografia em Times Square
agitado como era
por desejos, por desesperos em sucessão
diante de uma irónica parede publicitária
com as palavras Castro e Coca-Cola

Vejo-o vestido no modo mais sincero
como um desses miúdos dos College
conscientes da sua elegância
nem ingénua nem mítica:
a camisola vistosa, de uma cor inacreditável
calças de veludo, um pouco estreitas
sapatos de couro perfeito

Quando se encosta à janela onde a luz bate
sobre os olhos lúcidos, dissidentes, provocatórios
sobre a face imutável e emagrecida
percebemos então a idade que tem:
os seus quarenta e quatro anos
a somar aos setecentos que teria hoje Boccacio

Não houve aqui noite passada
que não desse por si sozinho
nas estradas escusas do Harlem, de Greenwich Village ou de Brooklyn
em bares onde nem a polícia entra
à procura daquela América infame
de onde regressava
já quase manhã
com os restos de uma canção
que não queria esquecer
e o corpo derrubado pela surpresa
de estar vivo

No verso desta fotografia
que me acompanha há tantos anos
escrevi também uma frase sua
sobre a blasfémia
que a santidade tem de ser
E ao balcão deste café, não longe de Times Square
dou comigo a pensar
confusamente em tudo isto

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