Faz-se luz pelo processo
de eliminação de sombras
Ora as sombras existem
as sombras têm exaustiva vida própria
não dum e doutro lado da luz mas no próprio seio dela
intensamente amantes loucamente amadas
e espalham pelo chão braços de luz cinzenta
que se introduzem pelo bico nos olhos do homem
Por outro lado a sombra dita a luz
não ilumina realmente os objectos
os objectos vivem às escuras
numa perpétua aurora surrealista
com a qual não podemos contactar
senão como amantes
de olhos fechados
e lâmpadas nos dedos e na boca.
Mário Cesariny
in Pena Capital
Assírio & Alvim, 1999
quarta-feira, 29 de julho de 2009
Ode à melancolia
Não, não te aproximes do rio Letes, nem queiras
recolher
o vinho venenoso do acónito, cujas raízes estão entrelaçadas;
evita que a tua fonte pálida se deixe beijar
pela beladona, as vermelhas bagas de Prosérpina;
não teças o teu rosário com as sementes dos cipestres,
nem deixes que o escravelho ou a borboleta nocturna
sejam a tua fúnebre Psique, ou que se torne o mocho,
de penugem tão macia, o confidente da tua dor misteriosa
- porque, unida às outras sombras, uma sombra virá
cheia de torpor
e há-de extinguir, dentro da tua alma, uma angústia vigilante.
Mas se, inesperado, o acesso de melancolia descer
do céu, como se fossem as lágrimas de uma nuvem
que reanima as flores, cujas hastes tristemente pendiam,
e as verdes colinas oculta sob um véu primaveril,
então, deixa que se tranquilize a tua dor sobre uma rosa
matinal,
sobre o arco-íris que surge junto às vagas e à areia salgada
ou sobre o esplendor esférico das peónias;
ou se, cheia de delícia, aquela que tu amas se exalta,
pega na sua mão delicada, deixa que ela delire
e bebe nos seus incomparáveis olhos, longamente.
Como ela vive a beleza - a beleza que deve morrer,
e a alegria cuja mão se leva aos lábios
para dizer adeus; e, próximo, fica o doloroso prazer
que se transforma em veneno quando as abelhas dos lábios o
aspiram.
Sim, no interior do próprio templo da alegria
está o altar soberano da melancolia, coberta de véus,
apenas visível para aquele que consegue provar
as uvas da alegria, com um impetuoso e puro desejo;
mas o seu espírito depois há-de sentir amargamente
o poder que ela tem ao ficar entre os seus troféus
nebulosos...
Keats
in Poesia Romântica Inglesa (Byron, Shelley, Keats)
Relógio D'Água, 1992
Trad: Fernando Guimarães
recolher
o vinho venenoso do acónito, cujas raízes estão entrelaçadas;
evita que a tua fonte pálida se deixe beijar
pela beladona, as vermelhas bagas de Prosérpina;
não teças o teu rosário com as sementes dos cipestres,
nem deixes que o escravelho ou a borboleta nocturna
sejam a tua fúnebre Psique, ou que se torne o mocho,
de penugem tão macia, o confidente da tua dor misteriosa
- porque, unida às outras sombras, uma sombra virá
cheia de torpor
e há-de extinguir, dentro da tua alma, uma angústia vigilante.
Mas se, inesperado, o acesso de melancolia descer
do céu, como se fossem as lágrimas de uma nuvem
que reanima as flores, cujas hastes tristemente pendiam,
e as verdes colinas oculta sob um véu primaveril,
então, deixa que se tranquilize a tua dor sobre uma rosa
matinal,
sobre o arco-íris que surge junto às vagas e à areia salgada
ou sobre o esplendor esférico das peónias;
ou se, cheia de delícia, aquela que tu amas se exalta,
pega na sua mão delicada, deixa que ela delire
e bebe nos seus incomparáveis olhos, longamente.
Como ela vive a beleza - a beleza que deve morrer,
e a alegria cuja mão se leva aos lábios
para dizer adeus; e, próximo, fica o doloroso prazer
que se transforma em veneno quando as abelhas dos lábios o
aspiram.
Sim, no interior do próprio templo da alegria
está o altar soberano da melancolia, coberta de véus,
apenas visível para aquele que consegue provar
as uvas da alegria, com um impetuoso e puro desejo;
mas o seu espírito depois há-de sentir amargamente
o poder que ela tem ao ficar entre os seus troféus
nebulosos...
Keats
in Poesia Romântica Inglesa (Byron, Shelley, Keats)
Relógio D'Água, 1992
Trad: Fernando Guimarães
terça-feira, 21 de julho de 2009
O homem de barbas grisalhas, crespas pela humidade do suor, dos passos chegados do deserto - entrou na taberna.Tirou um banco de uma mesa de madeira e sentou-se a ler a cela ocupada por homens - todos eles finíssimos exemplares de mediocridade. Alguns não eram mais do que avestruzes, com incontinência urinária e escassez existencial. Olhando em redor, ali vagueavam orações tiranas ao sabor de ginja, dos rosés, e água ardente. O homem de barbas, rodou o corpo, dirigiu-se ao balcão e pediu num tom grave, o chamado vinho de mesa. Espreitou os bolsos das calças de linho manchadas de tristeza, a apalpar o dinheiro e encontrou três migalhas de pão. Com um gesto medido deixou as esmolas de pão, ali, naquele balcão barrento e chegaram não pombos, mas animais necrófagos atraídos pelo odor da morte. Essa (a morte) adiantou-se, e veio ver os homens podres dentro da cela. O homem de barbas ouviu com o coração o grito dos corvos - o som do ar assombrado debaixo das montanhas; porém, permutando entre o ar e a luz difusa, os risos zombeteiros, os homens na cela ouviram o rugido do jaguar - o cântico nos olhos daquele Homem e, como que subitamente vexados, verteram-se ao silêncio. Não saberiam dizer, mas todos sentiram a passagem do pó vindo do deserto, e na manhã seguinte urinaram sangue, para espanto das lavadeiras do rio de águas puras e cristalinas.
A melhor maneira de viajar é sentir
Afinal, a melhor maneira de viajar é sentir.
Sentir tudo de todas as maneiras.
Sentir tudo excessivamente,
Porque todas as coisas são, em verdade, excessivas
E toda a realidade é um excesso, uma violência,
Uma alucinação extraordinariamente nítida
Que vivemos todos em comum com a fúria das almas,
O centro para onde tendem as estranhas forças centrífugas
Que são as psiques humanas no seu acordo de sentidos.
Quanto mais eu sinta, quanto mais eu sinta como várias pessoas,
Quanto mais personalidade eu tiver,
Quanto mais intensamente, estridentemente as tiver,
Quanto mais simultaneamente sentir com todas elas,
Quanto mais unificadamente diverso, dispersadamente atento,
Estiver, sentir, viver, for,
Mais possuirei a existência total do universo,
Mais completo serei pelo espaço inteiro fora.
Mais análogo serei a Deus, seja ele quem for,
Porque, seja ele quem for, com certeza que é Tudo,
E fora d'Ele há só Ele, e Tudo para Ele é pouco.
Cada alma é uma escada para Deus,
Cada alma é um corredor-Universo para Deus,
Cada alma é um rio correndo por margens de Externo
Para Deus e em Deus com um sussurro soturno.
Sursum corda! Erguei as almas! Toda a Matéria é Espírito,
Porque Matéria e Espírito são apenas nomes confusos
Dados à grande sombra que ensopa o Exterior em sonho
E funde em Noite e Mistério o Universo Excessivo!
Sursum corda! Na noite acordo, o silêncio é grande,
As coisas, de braços cruzados sobre o peito, reparam
Com uma tristeza nobre para os meus olhos abertos
Que as vê como vagos vultos noturnos na noite negra.
Sursum corda! Acordo na noite e sinto-me diverso.
Todo o Mundo com a sua forma visível do costume
Jaz no fundo dum poço e faz um ruído confuso,
Escuto-o, e no meu coração um grande pasmo soluça.
Sursum corda! ó Terra, jardim suspenso, berço
Que embala a Alma dispersa da humanidade sucessiva!
Mãe verde e florida todos os anos recente,
Todos os anos vernal, estival, outonal, hiemal,
Todos os anos celebrando às mancheias as festas de Adônis
Num rito anterior a todas as significações,
Num grande culto em tumulto pelas montanhas e os vales!
Grande coração pulsando no peito nu dos vulcões,
Grande voz acordando em cataratas e mares,
Grande bacante ébria do Movimento e da Mudança,
Em cio de vegetação e florescência rompendo
Teu próprio corpo de terra e rochas, teu corpo submisso
A tua própria vontade transtornadora e eterna!
Mãe carinhosa e unânime dos ventos, dos mares, dos prados,
Vertiginosa mãe dos vendavais e ciclones,
Mãe caprichosa que faz vegetar e secar,
Que perturba as próprias estações e confunde
Num beijo imaterial os sóis e as chuvas e os ventos!
Sursum corda! Reparo para ti e todo eu sou um hino!
Tudo em mim como um satélite da tua dinâmica intima
Volteia serpenteando, ficando como um anel
Nevoento, de sensações reminescidas e vagas,
Em torno ao teu vulto interno, túrgido e fervoroso.
Ocupa de toda a tua força e de todo o teu poder quente
Meu coração a ti aberto!
Como uma espada traspassando meu ser erguido e extático,
Intersecciona com meu sangue, com a minha pele e os meus nervos,
Teu movimento contínuo, contíguo a ti própria sempre,
Sou um monte confuso de forças cheias de infinito
Tendendo em todas as direções para todos os lados do espaço,
A Vida, essa coisa enorme, é que prende tudo e tudo une
E faz com que todas as forças que raivam dentro de mim
Não passem de mim, nem quebrem meu ser, não partam meu corpo,
Não me arremessem, como uma bomba de Espírito que estoira
Em sangue e carne e alma espiritualizados para entre as estrelas,
Para além dos sóis de outros sistemas e dos astros remotos.
Tudo o que há dentro de mim tende a voltar a ser tudo.
Tudo o que há dentro de mim tende a despejar-me no chão,
No vasto chão supremo que não está em cima nem embaixo
Mas sob as estrelas e os sóis, sob as almas e os corpos
Por uma oblíqua posse dos nossos sentidos intelectuais.
Sou uma chama ascendendo, mas ascendo para baixo e para cima,
Ascendo para todos os lados ao mesmo tempo, sou um globo
De chamas explosivas buscando Deus e queimando
A crosta dos meus sentidos, o muro da minha lógica,
A minha inteligência limitadora e gelada.
Sou uma grande máquina movida por grandes correias
De que só vejo a parte que pega nos meus tambores,
O resto vai para além dos astros, passa para além dos sóis,
E nunca parece chegar ao tambor donde parte...
Meu corpo é um centro dum volante estupendo e infinito
Em marcha sempre vertiginosamente em torno de si,
Cruzando-se em todas as direções com outros volantes,
Que se entrepenetram e misturam, porque isto não é no espaço
Mas não sei onde espacial de uma outra maneira-Deus.
Dentro de mim estão presos e atados ao chao
Todos os movimentos que compõem o universo,
A fúria minuciosa e dos átomos,
A fúria de todas as chamas, a raiva de todos os ventos,
A espuma furiosa de todos os rios, que se precipitam,
A chuva com pedras atiradas de catapultas
De enormes exércitos de anões escondidos no céu.
Sou um formidável dinamismo obrigado ao equilíbrio
De estar dentro do meu corpo, de não transbordar da minh'alma.
Ruge, estoira, vence, quebra, estrondeia, sacode,
Freme, treme, espuma, venta, viola, explode,
Perde-te, transcende-te, circunda-te, vive-te, rompe e foge,
Sê com todo o meu corpo todo o universo e a vida,
Arde com todo o meu ser todos os lumes e luzes,
Risca com toda a minha alma todos os relâmpagos e fogos,
Sobrevive-me em minha vida em todas as direcções!
Álvaro de Campos
in "Poemas"
Heterónimo de Fernando Pessoa
Sentir tudo de todas as maneiras.
Sentir tudo excessivamente,
Porque todas as coisas são, em verdade, excessivas
E toda a realidade é um excesso, uma violência,
Uma alucinação extraordinariamente nítida
Que vivemos todos em comum com a fúria das almas,
O centro para onde tendem as estranhas forças centrífugas
Que são as psiques humanas no seu acordo de sentidos.
Quanto mais eu sinta, quanto mais eu sinta como várias pessoas,
Quanto mais personalidade eu tiver,
Quanto mais intensamente, estridentemente as tiver,
Quanto mais simultaneamente sentir com todas elas,
Quanto mais unificadamente diverso, dispersadamente atento,
Estiver, sentir, viver, for,
Mais possuirei a existência total do universo,
Mais completo serei pelo espaço inteiro fora.
Mais análogo serei a Deus, seja ele quem for,
Porque, seja ele quem for, com certeza que é Tudo,
E fora d'Ele há só Ele, e Tudo para Ele é pouco.
Cada alma é uma escada para Deus,
Cada alma é um corredor-Universo para Deus,
Cada alma é um rio correndo por margens de Externo
Para Deus e em Deus com um sussurro soturno.
Sursum corda! Erguei as almas! Toda a Matéria é Espírito,
Porque Matéria e Espírito são apenas nomes confusos
Dados à grande sombra que ensopa o Exterior em sonho
E funde em Noite e Mistério o Universo Excessivo!
Sursum corda! Na noite acordo, o silêncio é grande,
As coisas, de braços cruzados sobre o peito, reparam
Com uma tristeza nobre para os meus olhos abertos
Que as vê como vagos vultos noturnos na noite negra.
Sursum corda! Acordo na noite e sinto-me diverso.
Todo o Mundo com a sua forma visível do costume
Jaz no fundo dum poço e faz um ruído confuso,
Escuto-o, e no meu coração um grande pasmo soluça.
Sursum corda! ó Terra, jardim suspenso, berço
Que embala a Alma dispersa da humanidade sucessiva!
Mãe verde e florida todos os anos recente,
Todos os anos vernal, estival, outonal, hiemal,
Todos os anos celebrando às mancheias as festas de Adônis
Num rito anterior a todas as significações,
Num grande culto em tumulto pelas montanhas e os vales!
Grande coração pulsando no peito nu dos vulcões,
Grande voz acordando em cataratas e mares,
Grande bacante ébria do Movimento e da Mudança,
Em cio de vegetação e florescência rompendo
Teu próprio corpo de terra e rochas, teu corpo submisso
A tua própria vontade transtornadora e eterna!
Mãe carinhosa e unânime dos ventos, dos mares, dos prados,
Vertiginosa mãe dos vendavais e ciclones,
Mãe caprichosa que faz vegetar e secar,
Que perturba as próprias estações e confunde
Num beijo imaterial os sóis e as chuvas e os ventos!
Sursum corda! Reparo para ti e todo eu sou um hino!
Tudo em mim como um satélite da tua dinâmica intima
Volteia serpenteando, ficando como um anel
Nevoento, de sensações reminescidas e vagas,
Em torno ao teu vulto interno, túrgido e fervoroso.
Ocupa de toda a tua força e de todo o teu poder quente
Meu coração a ti aberto!
Como uma espada traspassando meu ser erguido e extático,
Intersecciona com meu sangue, com a minha pele e os meus nervos,
Teu movimento contínuo, contíguo a ti própria sempre,
Sou um monte confuso de forças cheias de infinito
Tendendo em todas as direções para todos os lados do espaço,
A Vida, essa coisa enorme, é que prende tudo e tudo une
E faz com que todas as forças que raivam dentro de mim
Não passem de mim, nem quebrem meu ser, não partam meu corpo,
Não me arremessem, como uma bomba de Espírito que estoira
Em sangue e carne e alma espiritualizados para entre as estrelas,
Para além dos sóis de outros sistemas e dos astros remotos.
Tudo o que há dentro de mim tende a voltar a ser tudo.
Tudo o que há dentro de mim tende a despejar-me no chão,
No vasto chão supremo que não está em cima nem embaixo
Mas sob as estrelas e os sóis, sob as almas e os corpos
Por uma oblíqua posse dos nossos sentidos intelectuais.
Sou uma chama ascendendo, mas ascendo para baixo e para cima,
Ascendo para todos os lados ao mesmo tempo, sou um globo
De chamas explosivas buscando Deus e queimando
A crosta dos meus sentidos, o muro da minha lógica,
A minha inteligência limitadora e gelada.
Sou uma grande máquina movida por grandes correias
De que só vejo a parte que pega nos meus tambores,
O resto vai para além dos astros, passa para além dos sóis,
E nunca parece chegar ao tambor donde parte...
Meu corpo é um centro dum volante estupendo e infinito
Em marcha sempre vertiginosamente em torno de si,
Cruzando-se em todas as direções com outros volantes,
Que se entrepenetram e misturam, porque isto não é no espaço
Mas não sei onde espacial de uma outra maneira-Deus.
Dentro de mim estão presos e atados ao chao
Todos os movimentos que compõem o universo,
A fúria minuciosa e dos átomos,
A fúria de todas as chamas, a raiva de todos os ventos,
A espuma furiosa de todos os rios, que se precipitam,
A chuva com pedras atiradas de catapultas
De enormes exércitos de anões escondidos no céu.
Sou um formidável dinamismo obrigado ao equilíbrio
De estar dentro do meu corpo, de não transbordar da minh'alma.
Ruge, estoira, vence, quebra, estrondeia, sacode,
Freme, treme, espuma, venta, viola, explode,
Perde-te, transcende-te, circunda-te, vive-te, rompe e foge,
Sê com todo o meu corpo todo o universo e a vida,
Arde com todo o meu ser todos os lumes e luzes,
Risca com toda a minha alma todos os relâmpagos e fogos,
Sobrevive-me em minha vida em todas as direcções!
Álvaro de Campos
in "Poemas"
Heterónimo de Fernando Pessoa
EPIPSYCHIDION (5)
.............................................
Existia um Ser que o meu espírito
tantas vezes encontrava, lá no alto, entre os sonhos
ao despontar a manhã clara e dourada da juventude;
sobre as ilhas encantadas, com luminosas clareiras
entre montanhas maravilhosas, e as cavernas
do sono divino; sobre a ondulação aérea
de sonhos cheios de prodígio, cujo oscilante chão
suportava os seus ligeiros passos, e numa margem
imaginada sob a pálida falésia de qualquer promontório,
-esse Ser vinha ao meu encontro, vestido de tal esplendor
que se tornava para mim invisível. Com a solidão,
a sua voz veio até mim dos bosques sussurrantes,
chegou com o canto das fontes, com o profundo aroma
das flores, como se os próprios lábios do sonho
murmurassem os suaves beijos que a adormecem
e, na atmosfera enamorada, apenas falassem do seu nome;
chegou com o maior ou menor rumor das brisas,
com as chuvas que caem de todas as nuvens,
com a harmonia dos pássaros do estio,
com todos os sons, e o silêncio. Nas palavras
de poemas antigos e de lendas - na sua forma,
sonoridade, cor - , em tudo o que pacifica aquela
Tempestade
que sufoca o passado com o presente destruído,
nesta suprema filosofia, cujos indícios
são o destino que conduz a nossa dolorosa vida
a um glorioso, ardente martírio,
ficava o seu espírito, a harmonia da verdade.
Erguia-me das cavernas onde sonhava a minha juventude
e encaminhava-me, com sandálias de fogo,
em direcção ao astro do meu único desejo,
voava perturbado como uma falena, cujo movimento
é igual a uma folha morta numa luz crepuscular
quando vai procurar junto de Vésper
uma morte luminosa, um radioso sepulcro,
como se fosse a lâmpada duma chama terrestre.
Shelley
in Poesia Romântica Inglesa (Byron, Shelley, Keats)
Relógio D'Água, 1992
Tradução de Fernando Guimarães
Existia um Ser que o meu espírito
tantas vezes encontrava, lá no alto, entre os sonhos
ao despontar a manhã clara e dourada da juventude;
sobre as ilhas encantadas, com luminosas clareiras
entre montanhas maravilhosas, e as cavernas
do sono divino; sobre a ondulação aérea
de sonhos cheios de prodígio, cujo oscilante chão
suportava os seus ligeiros passos, e numa margem
imaginada sob a pálida falésia de qualquer promontório,
-esse Ser vinha ao meu encontro, vestido de tal esplendor
que se tornava para mim invisível. Com a solidão,
a sua voz veio até mim dos bosques sussurrantes,
chegou com o canto das fontes, com o profundo aroma
das flores, como se os próprios lábios do sonho
murmurassem os suaves beijos que a adormecem
e, na atmosfera enamorada, apenas falassem do seu nome;
chegou com o maior ou menor rumor das brisas,
com as chuvas que caem de todas as nuvens,
com a harmonia dos pássaros do estio,
com todos os sons, e o silêncio. Nas palavras
de poemas antigos e de lendas - na sua forma,
sonoridade, cor - , em tudo o que pacifica aquela
Tempestade
que sufoca o passado com o presente destruído,
nesta suprema filosofia, cujos indícios
são o destino que conduz a nossa dolorosa vida
a um glorioso, ardente martírio,
ficava o seu espírito, a harmonia da verdade.
Erguia-me das cavernas onde sonhava a minha juventude
e encaminhava-me, com sandálias de fogo,
em direcção ao astro do meu único desejo,
voava perturbado como uma falena, cujo movimento
é igual a uma folha morta numa luz crepuscular
quando vai procurar junto de Vésper
uma morte luminosa, um radioso sepulcro,
como se fosse a lâmpada duma chama terrestre.
Shelley
in Poesia Romântica Inglesa (Byron, Shelley, Keats)
Relógio D'Água, 1992
Tradução de Fernando Guimarães
Radiohead - Where I End And You Begin
There's a gap in between
There's a gap where we meet
Where I end and you begin
And I'm sorry for us
The dinosaurs roam the earth
The sky turns green
Where I end and you begin
I am up in the clouds
I am up in the clouds
And I can't and I can't come down
I can watch but not take part
Where I end and where you start
Where you, you left me alone
You left me alone
X'll mark the place
Like the parting of the waves
Like a house falling in the sea
In the sea
I will eat you alive [x4]
There'll be no more lies [x4]
I will eat you alive [x4]
There'll be no more lies [x4]
I will eat you alive [x4]
There are no more lies [x4]
I will eat you alive [x3]
A vasta procura
Anterior ao tempo ou fora do tempo (ambas
as frases são vãs) ou num lugar que não é do espaço,
há um animal invisível, e talvez diáfano,
que nós homens procuramos e que nos procura.
Sabemos que não pode ser medido, Sabemos que
não pode ser contado, porque as formas que o
somam são infinitas.
Há quem o tenha procurado num pássaro, e
feito de pássaros; há quem o tenha procurado numa
palavra ou nas letras dessa palavra; há quem
o tenha procurado, e o procure, num livro anterior
ao arábico em que foi escrito, e anterior ainda a todas
as coisas; há quem o procure na frase Sou O Que Sou.
Como as formas universais da escolástica ou os
arquétipos de Whitehead, costuma descer, fugazmente.
Dizem que habita os espelhos, e quem se olha O olha.
Há quem o veja ou entreveja na formosa memória
de uma batalha ou em cada paraíso perdido.
Conjectura-se que o seu sangue lateja no teu
sangue, que todos os seres o engendram e foram
engendrosos por ele e que basta inventar uma
clepsidra para medir a sua eternidade.
Espreita nos crepúsculos de turnos, no olhar de
uma mulher, na antiga cadência do hexâmetro,
na ignorante aurora, na lua do horizonte ou da metáfora.
Fogem-nos de segundo a segundo. A frase
do romano gasta-se, as noites roem o mármore.
Jorge Luis Borges (1985)
in Os conjurados
Editora Difel, 2ª ed.
Tradução de Maria da Piedade M. Ferreira e
Salvado Teles de Meneses
*
as frases são vãs) ou num lugar que não é do espaço,
há um animal invisível, e talvez diáfano,
que nós homens procuramos e que nos procura.
Sabemos que não pode ser medido, Sabemos que
não pode ser contado, porque as formas que o
somam são infinitas.
Há quem o tenha procurado num pássaro, e
feito de pássaros; há quem o tenha procurado numa
palavra ou nas letras dessa palavra; há quem
o tenha procurado, e o procure, num livro anterior
ao arábico em que foi escrito, e anterior ainda a todas
as coisas; há quem o procure na frase Sou O Que Sou.
Como as formas universais da escolástica ou os
arquétipos de Whitehead, costuma descer, fugazmente.
Dizem que habita os espelhos, e quem se olha O olha.
Há quem o veja ou entreveja na formosa memória
de uma batalha ou em cada paraíso perdido.
Conjectura-se que o seu sangue lateja no teu
sangue, que todos os seres o engendram e foram
engendrosos por ele e que basta inventar uma
clepsidra para medir a sua eternidade.
Espreita nos crepúsculos de turnos, no olhar de
uma mulher, na antiga cadência do hexâmetro,
na ignorante aurora, na lua do horizonte ou da metáfora.
Fogem-nos de segundo a segundo. A frase
do romano gasta-se, as noites roem o mármore.
Jorge Luis Borges (1985)
in Os conjurados
Editora Difel, 2ª ed.
Tradução de Maria da Piedade M. Ferreira e
Salvado Teles de Meneses
*
segunda-feira, 20 de julho de 2009
O Material das Coisas mão
«As coisas tinham - Levy sentia-o - uma actividade voluntária, e tal amedronta: se o atrito ganha vontade própria o mundo humano treme e ele, Levy, era, naquele momento (completamente só, em casa) o representante do mundo humano - e perdia, estava a perder; e começava a ter medo.
(...)
Como que vivo, o atrito, emitia ruídos, interrompia a linguagem que o corpo de Levy se habituara a utilizar em conversa física com os móveis, com os pequenos objectos domésticos: copo, candeeiro, livro.
Levy sentiu tonturas - se ele não queria tremer, se ele não dera ordens para aquele desacerto entre os seus pés, a sua verticalidade e o chão, se aquilo não partia da sua vontade: quem mandava ali? E havia ainda a dor.
Porque as dores de cabeça eram mesmo na cabeça, Levy não tinha, digamos assim, qualquer dúvida geográfica - mas essas dores influenciavam tudo o resto: a dor localizada na cabeça interferia no modo de a sua mão agarrar nas coisas. E um copo caiu, partiu-se, um vidro saltou; não o atingiu; porém, ele desiquilibrou-se, colocou instintivamente a mão direita no chão, a mão entrou no vidro, e de repente ele era capaz de jurar que o vidro tinha sangue lá dentro.
Decidiu sentar-se no chão, num local seguro, observando os vidros partidos do copo e a sua mão, que sangrava incivilizadamente - como ele naquele momento pensou - e assim terão pensado, primeiro, alguns minutos, depois muitos, depois talvez horas - que pode fazer o homem que acabou de ser abandonado pela mulher, tem a mão direita a sangrar e em nenhum sítio consegue adormecer?.»
(...)
Como que vivo, o atrito, emitia ruídos, interrompia a linguagem que o corpo de Levy se habituara a utilizar em conversa física com os móveis, com os pequenos objectos domésticos: copo, candeeiro, livro.
Levy sentiu tonturas - se ele não queria tremer, se ele não dera ordens para aquele desacerto entre os seus pés, a sua verticalidade e o chão, se aquilo não partia da sua vontade: quem mandava ali? E havia ainda a dor.
Porque as dores de cabeça eram mesmo na cabeça, Levy não tinha, digamos assim, qualquer dúvida geográfica - mas essas dores influenciavam tudo o resto: a dor localizada na cabeça interferia no modo de a sua mão agarrar nas coisas. E um copo caiu, partiu-se, um vidro saltou; não o atingiu; porém, ele desiquilibrou-se, colocou instintivamente a mão direita no chão, a mão entrou no vidro, e de repente ele era capaz de jurar que o vidro tinha sangue lá dentro.
Decidiu sentar-se no chão, num local seguro, observando os vidros partidos do copo e a sua mão, que sangrava incivilizadamente - como ele naquele momento pensou - e assim terão pensado, primeiro, alguns minutos, depois muitos, depois talvez horas - que pode fazer o homem que acabou de ser abandonado pela mulher, tem a mão direita a sangrar e em nenhum sítio consegue adormecer?.»
Gonçalo M. Tavares
«Todos os impulsos, as emoções, as manifestações de vontades imagináveis, todas estas contingências da alma humana lançadas pela razão na imensidade negativa da noção de «sentimento», podem ser expressas por meio da multidão infinita das melodias possíveis, mas sempre exclusivamente na generalidade da forma pura, sem a substância, sempre somente como coisa em si, e não como aparência, de algum modo como a alma da aparência, incorporalmente. Esta relação íntima, que existe entre a música e a verdadeira essência de todas as coisas, explica-nos também por que, quando com pretexto de uma cena, de uma acção, de um evento, de um ambiente qualquer, ressoa uma música adequada, esta parece revelar-nos a significação mais secreta e afirmar-se como o mais exacto e mais luminoso dos comentários; compreendemos igualmente como é que aquele que se abandona sem reservas à impressão produzida por uma sinfonia julga ver desenrolar-se perante os seus olhos todos os acontecimentos imagináveis da vida e do mundo.»
Nietzsche, 1872
in A Origem da Tragédia
Guimarães Editores, p.130
Nietzsche, 1872
in A Origem da Tragédia
Guimarães Editores, p.130
Endymion
...
Quem, entre os homens, pode dizer
que se abririam as flores ou os frutos verdes se
arredondariam
numa polpa macia, os peixes teriam as suas brilhantes
escamas,
a terra receberia o seu dote de rios, bosques e vales,
os prados os seus ribeiros, os ribeiros os seus seixos,
a semente as colheitas ou o alaúde a sua música
se nunca se reunissem e beijassem as almas humanas?
Keats
Quem, entre os homens, pode dizer
que se abririam as flores ou os frutos verdes se
arredondariam
numa polpa macia, os peixes teriam as suas brilhantes
escamas,
a terra receberia o seu dote de rios, bosques e vales,
os prados os seus ribeiros, os ribeiros os seus seixos,
a semente as colheitas ou o alaúde a sua música
se nunca se reunissem e beijassem as almas humanas?
Keats
Sobre os poetas....
Keats, que pertenceu à segunda geração dos poetas românticos ingleses, ao longo de uma das suas cartas, diz o seguinte: « Um poeta é o ser menos poético que existe, porque não possui nenhuma identidade. Encontra-se constantemente na eminência de se tornar ou ser uma outra personalidade. O sol, a lua, o mar, os homens e as mulheres, todos estes seres submetidos aos seus próprios impulsos, são poéticos e mantêm um atributo qualquer imutável; o poeta não tem nenhum, permanece sem identidade.»
sábado, 18 de julho de 2009
quarta-feira, 15 de julho de 2009
Flower Seller
The barren concrete is
bedecked with fast waning flowers.
In the beeless shady stall
she paces the concrete sidewalk
with a bunch of flowers
in her gaunt hands.
Only faint whiffs of aroma
escape from the coloured flowers
and mingle with the spreading
fumes of the afternoon traffic.
Her coarse and mournful voice is
lost amid the roaring traffic
as she cries aloud,
hard-eyed,
with a sad and sun-splashed face
that depletes her poor business:
'Flowers here, seventy-five cents a bunch!'
When the traffic subsides,
her rage unfurls like a flower:
she loses her sweetness
faster than the flowers in her hand.
James Twala
bedecked with fast waning flowers.
In the beeless shady stall
she paces the concrete sidewalk
with a bunch of flowers
in her gaunt hands.
Only faint whiffs of aroma
escape from the coloured flowers
and mingle with the spreading
fumes of the afternoon traffic.
Her coarse and mournful voice is
lost amid the roaring traffic
as she cries aloud,
hard-eyed,
with a sad and sun-splashed face
that depletes her poor business:
'Flowers here, seventy-five cents a bunch!'
When the traffic subsides,
her rage unfurls like a flower:
she loses her sweetness
faster than the flowers in her hand.
James Twala
segunda-feira, 13 de julho de 2009
Encostei-me
Encostei-me para trás na cadeira de convés e fechei os olhos,
E o meu destino apareceu-me na alma como um precipício.
A minha vida passada misturou-se com a futura,
E houve no meio um ruído do salão de fumo,
Onde, aos meus ouvidos, acabara a partida de xadrez.
Ah, balouçado
Na sensação das ondas,
Ah, embalado
Na idéia tão confortável de hoje ainda não ser amanhã,
De pelo menos neste momento não ter responsabilidades nenhumas,
De não ter personalidade propriamente, mas sentir-me ali,
Em cima da cadeira como um livro que a sueca ali deixasse.
Ah, afundado
Num torpor da imaginação, sem dúvida um pouco sono,
Irrequieto tão sossegadamente,
Tão análogo de repente à criança que fui outrora
Quando brincava na quinta e não sabia álgebra,
Nem as outras álgebras com x e y's de sentimento.
Ah, todo eu anseio
Por esse momento sem importância nenhuma
Na minha vida,
Ah, todo eu anseio por esse momento, como por outros análogos —
Aqueles momentos em que não tive importância nenhuma,
Aqueles em que compreendi todo o vácuo da existência sem inteligência para o
compreender
E havia luar e mar e a solidão, ó Álvaro
Álvaro de Campos
E o meu destino apareceu-me na alma como um precipício.
A minha vida passada misturou-se com a futura,
E houve no meio um ruído do salão de fumo,
Onde, aos meus ouvidos, acabara a partida de xadrez.
Ah, balouçado
Na sensação das ondas,
Ah, embalado
Na idéia tão confortável de hoje ainda não ser amanhã,
De pelo menos neste momento não ter responsabilidades nenhumas,
De não ter personalidade propriamente, mas sentir-me ali,
Em cima da cadeira como um livro que a sueca ali deixasse.
Ah, afundado
Num torpor da imaginação, sem dúvida um pouco sono,
Irrequieto tão sossegadamente,
Tão análogo de repente à criança que fui outrora
Quando brincava na quinta e não sabia álgebra,
Nem as outras álgebras com x e y's de sentimento.
Ah, todo eu anseio
Por esse momento sem importância nenhuma
Na minha vida,
Ah, todo eu anseio por esse momento, como por outros análogos —
Aqueles momentos em que não tive importância nenhuma,
Aqueles em que compreendi todo o vácuo da existência sem inteligência para o
compreender
E havia luar e mar e a solidão, ó Álvaro
Álvaro de Campos
Um dia de chuva
Um dia de chuva é tão belo como um dia de sol.
Ambos existem; cada um como é.
Alberto Caeiro
Ambos existem; cada um como é.
Alberto Caeiro
in-so-lú-veis as mãos que cobrem o rosto, e deformam as linhas suaves das faces rosadas. O fogo
em redor da boca entreaberta reduz-se a uma morte quebrada; a navalha cortante, chega como uma serpente, desliza até ao oceano, acaricia a embriaguez da saliva - e, no deserto do porvir da paixão - pergunta-me «acaso tentas assemelhar-te ao solstício de verão?».
em redor da boca entreaberta reduz-se a uma morte quebrada; a navalha cortante, chega como uma serpente, desliza até ao oceano, acaricia a embriaguez da saliva - e, no deserto do porvir da paixão - pergunta-me «acaso tentas assemelhar-te ao solstício de verão?».
Apuntes
Me fotografían en un galpón
como a un objeto,
una, dos, tres veces,
de perfil, de frente,
confeccionan mi ficha con esmero:
“soltero, estudiante, 17 años,
peligroso para la Seguridad del Estado”.
Miran de reojo:
Quieren mis huellas dactilres.
Un sudor helado
inunda mis mejillas.
No he comido.
Creo que hay una tormenta.
Me engrillan nuevamente.
Tengo náuseas.
Empiezo a ver que todo gira
a mil kilómetros por hora.
Se estrellan sus puños
en mis oídos.
Caigo.
Grito de dolor.
Voy a chocar con una montaña.
Pero no es una montaña.
Sino barro y puntapiés,
y un ruído intermitente
que se mete en mi cérebro
hasta la inconciencia.
Aristóteles España