sexta-feira, 31 de dezembro de 2010
DORA'S PAPERS
Dora's cahier, or diary, missing for almost 50 years, was uncovered, along with 15 letters to Marthe Robert, Kafka's French translator, written between 1951-1952, in Paris. Two years later, a second diary was discovered by Klaus Wagenbach, which had laid forgotten in archive in Berlin. These diaries, written in the last year of her life, represent Dora's attempt to "say once what is necessary to say about Kafka. Everything. Without reservation." In January 2000, working with professional archival researchers, Dora's secret 35-page file from the Comintern in the Central Archives of the Communist Party in Moscow was obtained
Page 9 of Dora's cahier, her Kafka diary, begun on her birthday in 1951, when she learned she was dying. © Diamant Family
Page 9 of Dora's cahier, her Kafka diary, begun on her birthday in 1951, when she learned she was dying. © Diamant Family
quinta-feira, 30 de dezembro de 2010
ekstasis
« (...) um termo comummente utilizado na Grécia antiga para descrever
estados mentais para além da razão (logos).»Ned O’Gorman, 2004
Leonce - Oh, meu caro Valério! Não poderia eu também dizer: "Isto é uma floresta de moitas de plumas, com algumas rosas bem cheias, junto a meus pés..." Acho que eu o disse bem melancolicamente. Graças a Deus! Começo a descer junto com a melancolia. O ar já não está tão claro e frio, o céu desce sobre mim brilhando e caem pesadas gotas de chuva. Oh, esta voz: "Será tão longo o caminho?" Muitas vozes falam nesse mundo e nós pensamos que falam de outras coisas. Mas esta voz, eu a compreendi. Descansa sobre mim como o espírito, já que este pairava sobre as águas antes de ser feita a luz. Que fermentação nas profundezas, como se fazem as coisas dentro de mim, como a voz se derrama pelo espaço! Será tão longo o caminho? (Sai.)
Leonce - Pois seja. (Deita-se no gramado.) Impediste meu mais belo suicídio! Em toda minha vida jamais tornarei a encontrar momento tão adequado. E um clima tão excelente. Agora, já me passou a vontade. Com teu colete amarelo e tuas calças azul-celeste, estragastes tudo. Que o céu me conceda um sono bem sadio e pesado
Georg Büchner.Woyzeck e Leonce e Lena. Trad. De João Marschner. Rio de Janeiro: Ediouro, s/d.
a própria identidade se perde
Peter - Quem sois?
Valério - Será que sei? (Vagarosamente, retira várias máscaras. uma após outra.) Sou esse? Ou este? Na realidade tenho medo de poder descascar-me ou desfolhar-me assim.
Georg Büchner.Woyzeck e Leonce e Lena. Trad. De João Marschner. Rio de Janeiro: Ediouro, s/d.
quarta-feira, 29 de dezembro de 2010
(...)
«Assim pensa sorrindo: « A ti, indestrutível, tem
De pôr-te à prova outra palavra», e di-la alto,
A jovem águia, olhando Germânica:
«És tu, eleita,
Tu que tudo amas, e para carregares um fardo
Pesado de ventura te fizeste forte,
Desde o tempo em que tu, escondida na floresta e ébria
De doce sono da papoila em flor, não atentavas
Em mim, muito antes que outros mais humildes
sentissem,
O orgulho da virgem e espantadas perguntassem de quem e
donde tu eras,
Mas tu mesma o não sabias. Eu é que te reconheci,
E em segredo, enquanto sonhavas, deixei-te
Ao partir ao meio-dia um sinal amigo,
A flor da boca, e sozinha te puseste a falar.
Mas expediste também profusão de palavras em ouro
Ó afortunada, com os rios, e eles correm inesgotáveis
Pra todas as regiões. Pois quase como o da Santa
Que é a mãe de tudo o traz ao abismo,
A quem os homens chamam a Oculta,
O teu peito está cheio
De amor e dor
E de presságios e de paz.»
Friedrich Hölderlin. Poemas. Prefácio, Selecção e trad. Paulo Quintela. Relógio D' Água, Lisboa, 1991, p. 393-395
«Assim pensa sorrindo: « A ti, indestrutível, tem
De pôr-te à prova outra palavra», e di-la alto,
A jovem águia, olhando Germânica:
«És tu, eleita,
Tu que tudo amas, e para carregares um fardo
Pesado de ventura te fizeste forte,
Desde o tempo em que tu, escondida na floresta e ébria
De doce sono da papoila em flor, não atentavas
Em mim, muito antes que outros mais humildes
sentissem,
O orgulho da virgem e espantadas perguntassem de quem e
donde tu eras,
Mas tu mesma o não sabias. Eu é que te reconheci,
E em segredo, enquanto sonhavas, deixei-te
Ao partir ao meio-dia um sinal amigo,
A flor da boca, e sozinha te puseste a falar.
Mas expediste também profusão de palavras em ouro
Ó afortunada, com os rios, e eles correm inesgotáveis
Pra todas as regiões. Pois quase como o da Santa
Que é a mãe de tudo o traz ao abismo,
A quem os homens chamam a Oculta,
O teu peito está cheio
De amor e dor
E de presságios e de paz.»
Friedrich Hölderlin. Poemas. Prefácio, Selecção e trad. Paulo Quintela. Relógio D' Água, Lisboa, 1991, p. 393-395
«Porém insensato é
Perante o Destino o desejar.
Mas os mais cegos
São os filhos dos deuses. Pois o homem conhece
A sua casa, e ao animal foi dado saber onde
Deve construir a sua, mas àqueles coube-lhes
Na alma inocente o defeito
De não saberem para onde hão-de ir.»
Friedrich Hölderlin. Poemas. Prefácio, Selecção e trad. Paulo Quintela. Relógio D' Água, Lisboa, 1991, p. 373
Perante o Destino o desejar.
Mas os mais cegos
São os filhos dos deuses. Pois o homem conhece
A sua casa, e ao animal foi dado saber onde
Deve construir a sua, mas àqueles coube-lhes
Na alma inocente o defeito
De não saberem para onde hão-de ir.»
Friedrich Hölderlin. Poemas. Prefácio, Selecção e trad. Paulo Quintela. Relógio D' Água, Lisboa, 1991, p. 373
(...)
Ó terra de Homero!
Debaixo da cerdeira purpúrea, ou quando
Na minha vinha os jovens pessegueiros,
Vindos de ti, reverdecem,
E a andorinha vem de longe e contando muitas coisas
Faz a casa nas minhas paredes, nos
Dias de Maio, também sob as estrelas
Eu penso em ti, ó Iónia! Mas os homens
Amam o que têm presente. Por isso eu
Vim ver-vos, ó Ilhas, e a vós,
Ó fozes dos rios, ó vós palácios de Tétis,
E a vós, ó bosques, e a vós, ó nuvens do Ida!
Mas não penso em ficar.
Descortês e difícil de conquistar é
A Mãe reservada que abandonei.
Dos filhos um, o Reno,
Quis à força atirar-se ao seu seio, e repelido,
Desapareceu na distância, ninguém sabe onde.
Mas eu não quereria partir dela assim,
E apenas pra vos convidar
Vim eu ter convosco, ó Graças da Grécia,
Ó filhas do céu,
Pra vos pedir, se a viagem não for longa de mais,
Que venhais a nossa casa, ó benignas!
Quando os ares sopram mais suaves,
E a manhã dispara sobre nós,
Pacientes de mais, setas de amor,
E nuvens leves florescem
Por sobre os nossos olhos tímidos,
Então diremos: Como é que vós,
Ó Cárites, vindes ter c 'os bárbaros?
Mas as servas do céu
São caprichosas
Como tudo o que nasce dos deuses.
Faz-se sonho àquele que queira
Apoderar-se dele com astúcia, e castiga aquele
Que à força se lhe queira igualar;
Muitas vezes surpreende aquele
Que nele mal tinha pensado.
Friedrich Hölderlin. Poemas. Prefácio, Selecção e trad. Paulo Quintela. Relógio D' Água, Lisboa, 1991, p. 367-369
Ó terra de Homero!
Debaixo da cerdeira purpúrea, ou quando
Na minha vinha os jovens pessegueiros,
Vindos de ti, reverdecem,
E a andorinha vem de longe e contando muitas coisas
Faz a casa nas minhas paredes, nos
Dias de Maio, também sob as estrelas
Eu penso em ti, ó Iónia! Mas os homens
Amam o que têm presente. Por isso eu
Vim ver-vos, ó Ilhas, e a vós,
Ó fozes dos rios, ó vós palácios de Tétis,
E a vós, ó bosques, e a vós, ó nuvens do Ida!
Mas não penso em ficar.
Descortês e difícil de conquistar é
A Mãe reservada que abandonei.
Dos filhos um, o Reno,
Quis à força atirar-se ao seu seio, e repelido,
Desapareceu na distância, ninguém sabe onde.
Mas eu não quereria partir dela assim,
E apenas pra vos convidar
Vim eu ter convosco, ó Graças da Grécia,
Ó filhas do céu,
Pra vos pedir, se a viagem não for longa de mais,
Que venhais a nossa casa, ó benignas!
Quando os ares sopram mais suaves,
E a manhã dispara sobre nós,
Pacientes de mais, setas de amor,
E nuvens leves florescem
Por sobre os nossos olhos tímidos,
Então diremos: Como é que vós,
Ó Cárites, vindes ter c 'os bárbaros?
Mas as servas do céu
São caprichosas
Como tudo o que nasce dos deuses.
Faz-se sonho àquele que queira
Apoderar-se dele com astúcia, e castiga aquele
Que à força se lhe queira igualar;
Muitas vezes surpreende aquele
Que nele mal tinha pensado.
Friedrich Hölderlin. Poemas. Prefácio, Selecção e trad. Paulo Quintela. Relógio D' Água, Lisboa, 1991, p. 367-369
« BENV.- Será a minha honra. Espada, sê certeira!
É a cabeça dele pelos cornos que me pôs.
MARTINO- Aí vem ele! Aí vem ele!
BENV.- Silêncio! Um só golpe, e pronto!
O corpo cai na terra e a alma no Inferno.»
Christopher Marlowe. Doutor Fausto. Edição Bilingue. Publicações Europa-América, 2003., p.107
É a cabeça dele pelos cornos que me pôs.
Entra Fausto com uma cabeça postiça.
MARTINO- Aí vem ele! Aí vem ele!
BENV.- Silêncio! Um só golpe, e pronto!
O corpo cai na terra e a alma no Inferno.»
Christopher Marlowe. Doutor Fausto. Edição Bilingue. Publicações Europa-América, 2003., p.107
terça-feira, 28 de dezembro de 2010
Olhai, Alteza, que animal esquisito ali está com a cabeça
fora da janela.
IMPER. - Oh, que cena espantosa, Duque de Saxónia!
Vede. Um estranho par de cornos espetado
Na cabeça do jovem Benvolio.
DUQUE DA SAX. - Mas ele está morto ou a dormir?
IMPER. - Que belo divertimento! Vamos acordá-lo.
Eh, Benvolio!
BENVOL. - Diabos vos levem! Deixai-me dormir.
IMPER. - Não te censuro por dormires tanto; com uma cabeça
dessas...
DUQUE DA SAX. - Levanta os olhos, Benvolio, é o Imperador
quem te chama.
BENVOL. - Imperador? Onde? Oh, raios me partam, a minha cabeça!
IMPER.- Deixa lá a cabeça, segura mas é nos cornos, que a
cabeça está bem armada.
FAUSTO. - Então e agora, senhor cavaleiro, pendurado pelos
cornos, não é? Que coisa feia! Uma vergonha! Metei a cabeça
para dentro, senão vai toda a gente ficar pasmada a olhar para vós.
BENVOL. - Raios vos partam, doutor! Esta patifaria é vossa?
FAUSTO.- Não digais tal, senhor, que o doutor não tem saber,
Nem arte, nem engenho, para brindar estes nobres,
Ou para trazer à presença do Imperador
O poderoso rei, o bravo Alexandre.
Fausto conseguiu-o. E vós o quisestes:
Transformar-vos, como Acteon, em veado;
Christopher Marlowe. Doutor Fausto. Edição Bilingue. Publicações Europa-América, 2003., p.103
fora da janela.
IMPER. - Oh, que cena espantosa, Duque de Saxónia!
Vede. Um estranho par de cornos espetado
Na cabeça do jovem Benvolio.
DUQUE DA SAX. - Mas ele está morto ou a dormir?
IMPER. - Que belo divertimento! Vamos acordá-lo.
Eh, Benvolio!
BENVOL. - Diabos vos levem! Deixai-me dormir.
IMPER. - Não te censuro por dormires tanto; com uma cabeça
dessas...
DUQUE DA SAX. - Levanta os olhos, Benvolio, é o Imperador
quem te chama.
BENVOL. - Imperador? Onde? Oh, raios me partam, a minha cabeça!
IMPER.- Deixa lá a cabeça, segura mas é nos cornos, que a
cabeça está bem armada.
FAUSTO. - Então e agora, senhor cavaleiro, pendurado pelos
cornos, não é? Que coisa feia! Uma vergonha! Metei a cabeça
para dentro, senão vai toda a gente ficar pasmada a olhar para vós.
BENVOL. - Raios vos partam, doutor! Esta patifaria é vossa?
FAUSTO.- Não digais tal, senhor, que o doutor não tem saber,
Nem arte, nem engenho, para brindar estes nobres,
Ou para trazer à presença do Imperador
O poderoso rei, o bravo Alexandre.
Fausto conseguiu-o. E vós o quisestes:
Transformar-vos, como Acteon, em veado;
Christopher Marlowe. Doutor Fausto. Edição Bilingue. Publicações Europa-América, 2003., p.103
segunda-feira, 27 de dezembro de 2010
Diz-me muito mal de Deus.
Diz que ele é um velho estúpido e doente,
Sempre a escarrar no chão
E a dizer indecências. [...]
Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.
Diz-me que Deus não percebe nada
Das coisas que criou –
“Se é que ele as criou, do que duvido”
Alberto Caeiro, no poema VIII de O Guardador de Rebanhos
Diz que ele é um velho estúpido e doente,
Sempre a escarrar no chão
E a dizer indecências. [...]
Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.
Diz-me que Deus não percebe nada
Das coisas que criou –
“Se é que ele as criou, do que duvido”
Alberto Caeiro, no poema VIII de O Guardador de Rebanhos
concepção pessimista
«Julgada na perspectiva judaico-cristã, a religião grega parece constituir-se sob o signo do pessimismo: a existência humana é, por definição, efêmera e sobrecarregada de preocupações.[...] Essa concepção pessimista impôs-se irremediavelmente quando o grego tomou consciência da precariedade da condição humana.»
Mircea Eliade. História das Crenças e das Idéias Religiosas; Tomo I, Da Idade da Pedra aos Mistérios de Eleusis, Volume 2, pp. 91e 94.
Exortação por uma voz feminina, O Trovão – Intelecto Perfeito
Pois eu sou a primeira: e a última
Sou eu a venerada: e a desprezada.
Sou eu a meretriz: e a santa.
Sou eu a esposa: e a virgem.
Sou eu a mãe: e a filha.
Eu sou os membros de minha mãe.
Sou eu a estéril: e a que tem muitos filhos.
Sou eu aquela cujo casamento é magnífico; e a que não se casou.
Sou eu a parteira: e a que não dá à luz;
Sou consolação: de meu próprio trabalho.
Sou eu a noiva: e o noivo.
E o meu marido é quem me gerou.
Sou eu a mãe do meu pai: e a irmã do meu marido.
É ele que é minha prole. [...]
Sou seu silêncio incompreensível:
E pensamento posterior, cuja memória é tão grande.
Sou eu a voz cujos sons são tão numerosos:
E o discurso cujas imagens são tão numerosas.
Sou eu a fala: de meu próprio nome
Layton. As Escrituras Gnósticas. pgs. 96/97.
Sou eu a venerada: e a desprezada.
Sou eu a meretriz: e a santa.
Sou eu a esposa: e a virgem.
Sou eu a mãe: e a filha.
Eu sou os membros de minha mãe.
Sou eu a estéril: e a que tem muitos filhos.
Sou eu aquela cujo casamento é magnífico; e a que não se casou.
Sou eu a parteira: e a que não dá à luz;
Sou consolação: de meu próprio trabalho.
Sou eu a noiva: e o noivo.
E o meu marido é quem me gerou.
Sou eu a mãe do meu pai: e a irmã do meu marido.
É ele que é minha prole. [...]
Sou seu silêncio incompreensível:
E pensamento posterior, cuja memória é tão grande.
Sou eu a voz cujos sons são tão numerosos:
E o discurso cujas imagens são tão numerosas.
Sou eu a fala: de meu próprio nome
Layton. As Escrituras Gnósticas. pgs. 96/97.
'O velho mito germânico de Migdar'
« Tudo isso é Migdar e o reconhecimento de Migdar como essência da realidade, chama-se Heterodoxia. Ou traduzindo o mito, heterodoxia é a convicção de que o real não é apenas a cabeça mordendo sem hesitações nem a cauda devorada sem resistência, mas o inteiro movimento de morder e ser mordido, a paixão circular da vida por si mesma. O movimento da cabeça devorando com a certeza de existir um só caminho, pode receber o nome de Ortodoxia, assim como a convicção inversa de não existir caminho algum pode designar-se por Niilismo.»
Eduardo Lourenço. Escrita e Morte in Heterodoxia I e II. Assírio & Alvim, Lisboa, 1987
domingo, 26 de dezembro de 2010
«Como a leoa, tu te queixaste,
Ó Mãe, quando tu,
Natureza, os perdeste, os filhos.
Pois tos roubou, ó Amantíssima,
O teu inimigo, quando o recebeste
Quase como os próprios filhos,
E a sátiros associaste os deuses.
Assim construíste muita coisa,
E muita coisa enterraste,
Pois te odeia
O que tu, ó Vigorosíssima,
Deste à luz antes do tempo.
Agora o conheces, agora desistes disto;
Pois de bom grado repousa, insensível,
Até que amadurece, lá em baixo o que actua medroso.»
Friedrich Hölderlin. Poemas. Prefácio, Selecção e trad. Paulo Quintela. Relógio D' Água, Lisboa, 1991, p. 359
Ó Mãe, quando tu,
Natureza, os perdeste, os filhos.
Pois tos roubou, ó Amantíssima,
O teu inimigo, quando o recebeste
Quase como os próprios filhos,
E a sátiros associaste os deuses.
Assim construíste muita coisa,
E muita coisa enterraste,
Pois te odeia
O que tu, ó Vigorosíssima,
Deste à luz antes do tempo.
Agora o conheces, agora desistes disto;
Pois de bom grado repousa, insensível,
Até que amadurece, lá em baixo o que actua medroso.»
Friedrich Hölderlin. Poemas. Prefácio, Selecção e trad. Paulo Quintela. Relógio D' Água, Lisboa, 1991, p. 359
«Brisas de hálito leve
Vos anunciam já,
Anuncia-vos o vale fumegante
E o solo que ainda ressoa da tempestade,
Mas a Esperança enrubesce as faces,
E em frente da porta da casa
Está sentada a mãe com o filho,
E contempla a Paz
E poucos parecem morrer;
Um presságio detém a alma,
Enviada pela luz de ouro
Uma promessa detém os mais velhos.»
Friedrich Hölderlin. Poemas. Prefácio, Selecção e trad. Paulo Quintela. Relógio D' Água, Lisboa, 1991, p. 375
Vos anunciam já,
Anuncia-vos o vale fumegante
E o solo que ainda ressoa da tempestade,
Mas a Esperança enrubesce as faces,
E em frente da porta da casa
Está sentada a mãe com o filho,
E contempla a Paz
E poucos parecem morrer;
Um presságio detém a alma,
Enviada pela luz de ouro
Uma promessa detém os mais velhos.»
Friedrich Hölderlin. Poemas. Prefácio, Selecção e trad. Paulo Quintela. Relógio D' Água, Lisboa, 1991, p. 375
Os mortos
Um dia fugaz eu vivi e cresci entre os meus,
Um após outro já me adormece e vai fugindo pra longe.
E no entanto, vós que dormis, 'stais-me acordados cá dentro do
Friedrich Hölderlin. Poemas. Prefácio, Selecção e trad. Paulo Quintela. Relógio D' Água, Lisboa, 1991, p. 293
Um após outro já me adormece e vai fugindo pra longe.
E no entanto, vós que dormis, 'stais-me acordados cá dentro do
[peito,
Na alma parente repousa a vossa imagem que foge.
E mais vivos vós ali, onde a alegria do espírito
Divino a todos os que envelhecem, a todos os mortos
[rejuvenesce.
E mais vivos vós ali, onde a alegria do espírito
Divino a todos os que envelhecem, a todos os mortos
[rejuvenesce.
Friedrich Hölderlin. Poemas. Prefácio, Selecção e trad. Paulo Quintela. Relógio D' Água, Lisboa, 1991, p. 293
«FAUSTO: - Mas tu tens dores, tu, que outros atormentas?
MEFIST. - Dores tão grandes como as almas dos homens.
Mas diz-me, Fausto, dás-me a tua alma?
Se ma deres, serei um escravo ao teu serviço,
E dar-te-ei mais do que o teu engenho saberá pedir.»
Christopher Marlowe. Doutor Fausto. Edição Bilingue. Publicações Europa-América, 2003., p.55
MEFIST. - Dores tão grandes como as almas dos homens.
Mas diz-me, Fausto, dás-me a tua alma?
Se ma deres, serei um escravo ao teu serviço,
E dar-te-ei mais do que o teu engenho saberá pedir.»
Christopher Marlowe. Doutor Fausto. Edição Bilingue. Publicações Europa-América, 2003., p.55
'Eu já sabia de antes o que havia dentro de Natália...'
«Eu já sabia de antes o que havia dentro de Natália. Algo conhecia dela. Sabia, por exemplo, que as suas pernas redondas, duras e quentes como pedras ao sol do meio-dia, estavam sós há algum tempo. Eu já conhecia isso. Tínhamos estado juntos muitas vezes; mas sempre nos separava a sombra de Tanilo: sentíamos que as suas mãos empoladas se metiam entre nós e levavam Natália para que o continuasse a cuidar. E sempre assim seria enquanto ele estivesse vivo.»
Juan Rulfo. O Llano em chamas in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 189
Talpa
«Nem depois, nem no regresso, quando viemos caminhando de noite sem conhecer o sossego, andando às apalpadelas como adormecidos e pisando com passos que pareciam pancadas sobre a sepultura de Tanilo. Nessa altura, Natália parecia estar endurecida e trazer o coração apertado para não o sentir ferver dentro dela. Mas dos seus olhos não saiu nem uma lágrima.»
Juan Rulfo. O Llano em chamas in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 187
Juan Rulfo. O Llano em chamas in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 187
O homem
«(...) Esperei-te um mês, acordado de dia e de noite, sabendo que chegarias de rastos, escondido como uma víbora venenosa. E chegaste tarde. E eu também cheguei tarde. Cheguei atrás de ti. Entreteve-me o enterro do recém-nascido. Agora percebo porque é que me murcharam as flores na mão.»
«Não devia tê-los matado a todos», ia pensando o homem. «Não valia a pena pôr esse fardo tão pesado nas minhas costas. Os mortos pesam mais do que os vivos; esmagam-nos. Devia tê-los tenteado um por um até dar com ele; tê-lo-ia conhecido pelo bigode; embora estivesse escuro, teria sabido onde lhe bater antes que se levantasse...No fim de contas, é melhor assim: ninguém os chorará e eu viverei em paz. A questão é encontrar a passagem para sair daqui antes que me agarre a noite.»
Juan Rulfo. O Llano em chamas in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 173
«Caminharei mais para baixo. Aqui o rio tem um remoinho e pode devolver-me onde não quero regressar.»
«Nunca ninguém te fará mal, filho. Estou aqui para te proteger. Por isso nasci antes de ti e os meus ossos endureceram antes dos teus.»
Juan Rulfo. O Llano em chamas in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 172
«Nunca ninguém te fará mal, filho. Estou aqui para te proteger. Por isso nasci antes de ti e os meus ossos endureceram antes dos teus.»
Juan Rulfo. O Llano em chamas in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 172
O homem
«Não devia tê-los matado a todos; ter-me-ia conformado com aquele que tinha de matar; mas estava escuro e os vultos eram iguais...No fim de contas, sendo tantos custar-lhes-á menos o enterro.»
Juan Rulfo. O Llano em chamas in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 172
Juan Rulfo. O Llano em chamas in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 172
sábado, 25 de dezembro de 2010
«Não sabíamos então que a futura sobrevivência seria também partilhada entre a nostalgia sem redenção da pouca vida humanamente respirável dos nossos jovens anos e a decepção que espera sempre que acordam tarde sobre sonhos precocemente sonhados. É neste lugar de um crepúsculo que se esvai como um rio entre a decepção de outrora carregada de sonho e o sonho de hoje sonhado pela memória dessa decepção que vêm reinscrever-se páginas que porventura melhor conviria deixar no seu tempo próprio, aquele em que a agonia mesma nos sabia a vida.»
Eduardo Lourenço. Escrita e Morte in Heterodoxia I e II. Assírio & Alvim, Lisboa, 1987
sexta-feira, 24 de dezembro de 2010
[xviii]
em tempo de narcisos ( que sabem
o sentido da vida é crescer)
esquecendo porquê, recorda como
em tempo de lilases que proclamam
o desígnio da vigília é sonhar,
recorda assim (esquecendo parece)
em tempo de rosas (que assombram
o nosso agora e aqui com o paraíso)
esquecendo se, recorda sim
em tempo de todas as doçuras para além
do que quer que a mente possa entender,
recorda busca (esquecendo acha)
e num mistério a haver
(quando o tempo do tempo nos livrar)
esquecendo-me, recorda-me
e.e. cummings. XIX poemas. Edição bilingue. Selecção, tradução e notas Jorge Fazenda Lourenço. Assírio & Alvim, 1991, p.65
o sentido da vida é crescer)
esquecendo porquê, recorda como
em tempo de lilases que proclamam
o desígnio da vigília é sonhar,
recorda assim (esquecendo parece)
em tempo de rosas (que assombram
o nosso agora e aqui com o paraíso)
esquecendo se, recorda sim
em tempo de todas as doçuras para além
do que quer que a mente possa entender,
recorda busca (esquecendo acha)
e num mistério a haver
(quando o tempo do tempo nos livrar)
esquecendo-me, recorda-me
e.e. cummings. XIX poemas. Edição bilingue. Selecção, tradução e notas Jorge Fazenda Lourenço. Assírio & Alvim, 1991, p.65
[i]
pode nem sempre ser assim; e eu digo
que se os teus lábios, que amei, tocarem
os de outro, e os teus dedos fortes e meigos cingirem
o seu coração, como o meu em tempos não muito distantes;
se na face do outro os teus suaves cabelos repousarem
nesse silêncio que eu sei, ou nessas
palavras sublimes e estremecidas que, dizendo demasiado
ficaram desamparadamente diante do espírito vozeando;
se assim for, eu digo se assim for...
tu do meu coração, manda-me um recado;
que eu posso ir junto dele, e tomar as suas mãos,
dizendo, Aceita toda a felicidade de mim.
Hei-de então voltar a cara, e ouvir um pássaro
cantar terrivelmente longe nas terras perdidas.
e.e. cummings. XIX poemas. Edição bilingue. Selecção, tradução e notas Jorge Fazenda Lourenço. Assírio & Alvim, 1991, p.25
que se os teus lábios, que amei, tocarem
os de outro, e os teus dedos fortes e meigos cingirem
o seu coração, como o meu em tempos não muito distantes;
se na face do outro os teus suaves cabelos repousarem
nesse silêncio que eu sei, ou nessas
palavras sublimes e estremecidas que, dizendo demasiado
ficaram desamparadamente diante do espírito vozeando;
se assim for, eu digo se assim for...
tu do meu coração, manda-me um recado;
que eu posso ir junto dele, e tomar as suas mãos,
dizendo, Aceita toda a felicidade de mim.
Hei-de então voltar a cara, e ouvir um pássaro
cantar terrivelmente longe nas terras perdidas.
e.e. cummings. XIX poemas. Edição bilingue. Selecção, tradução e notas Jorge Fazenda Lourenço. Assírio & Alvim, 1991, p.25
Na sua introdução aos Collected Poems (1938), o poeta escreve:
« The poems to come are for you and for me and are not
for mostpeople
...You and I are human beings; mostpeople are
snobs.»
e.e. cummings. XIX poemas. Edição bilingue. Selecção, tradução e notas Jorge Fazenda Lourenço. Assírio & Alvim, 1991, p.14
« The poems to come are for you and for me and are not
for mostpeople
...You and I are human beings; mostpeople are
snobs.»
e.e. cummings. XIX poemas. Edição bilingue. Selecção, tradução e notas Jorge Fazenda Lourenço. Assírio & Alvim, 1991, p.14
quinta-feira, 23 de dezembro de 2010
quarta-feira, 22 de dezembro de 2010
'as minhas outras duas irmãs, as mais velhas'
«Segundo o meu papá, elas tinham-se deitado a perder porque éramos muito pobres lá em casa e elas eram muito respondonas. Desde pequeninas que já eram resmungonas. E assim que lhes cresceram deu-lhes para andar com homens do piorio, que lhes ensinaram coisas más. Elas aprenderam depressa e percebiam muito bem os assobios, quando as chamavam a altas horas da noite. Depois saíam até de dia. Iam a toda a hora buscar água ao rio e às vezes, quando uma pessoa menos esperava, ali estavam elas no curral, rebolando-se no chão, todas despidas e cada uma com um homem em cima.
Então o meu papá correu com as duas. Primeiro aguentou-lhes tudo o que pôde; mas um dia já não pôde aguentá-las mais e deu-lhes saída para a rua. Elas foram para Ayutla ou não sei para onde; e aí andam como putas.»
Juan Rulfo. O Llano em chamas in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 166
«Não consigo perceber porque é que a Serpentina se lembraria de passar o rio, quando sabia perfeitamente que não era o mesmo rio que ela conhecia de todos os dias. Nunca vi a Serpentina tão atarantada. O mais certo é ter vindo ainda a dormir para se deixar matar assim sem mais nem menos. A mim muitas vezes tocou-me acordá-la quando lhe abria a porta do curral, porque senão, por vontade dela, ali estaria o dia inteiro com os olhos fechados, bem quieta e suspirando, como se ouvem suspirar as vacas quando dormem.
E aqui deve ter acontecido isso, adormeceu. Talvez se tenha lembrado de acordar ao sentir que aquela água pesada lhe batia nas costelas. Talvez então se tenha assustado e tenha tentado regressar; mas ao virar-se encontrou-se entressachada e inteiriçada entre aquela água negra e dura como terra corrediça. Talvez tenha bramado pedindo que a ajudassem.
Bramou só Deus sabe como.»
Juan Rulfo. O Llano em chamas in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 164/5
«O rio começou a crescer há três noites, lá para a madrugada. Eu estava muito adormecido e, no entanto, o estrondo que o rio trazia ao arrastar-se fez-me acordar imediatamente e saltar da cama com a minha manta na mão, como se tivesse acreditado que se estava desmoronando o tecto da minha casa. Mas depois voltei a adormecer, porque reconheci o barulho do rio e porque esse barulho foi-se tornando igual até me trazer outra vez o sono.»
Juan Rulfo. O Llano em chamas in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 163
«Devia estar bêbado. Pôs-se à minha frente e bamboleava-se de um lado para o outro, tapando-me e destapando-me a luz que eu precisava da lua.
- Andar com rodeios não é bom - disse-me depois de um bom bocado.- Eu gosto das coisas direitas, e se tu não gostas, sofres as consequências, porque eu vim aqui para as endireitar.
Eu continuei a remendar o meu saco. Só tinha olhos para lhe coser os buracos, e a agulha de albarda trabalhava muito bem quando a alumiava a luz da lua. De certeza que foi por isso que achou que eu não me preocupava com o que ele dizia:
- Estou a falar contigo - gritou-me, agora sim já irritado. - Bem sabes ao que vim.
Espantei-me um pouco quando se aproximou de mim e me gritou aquilo quase à queima-roupa. No entanto, tentei ver-lhe a cara para saber de que tamanho era a sua fúria e continuei a fixá-lo, como que a perguntar-lhe ao que tinha vindo.
Isso resultou. Já mais calmo, saiu-se com esta: que as pessoas como eu têm de se apanhar desprevenidas.
- Seca-se-me a boca por te estar falando depois do que fizeste - disse-me; - mas era tão meu amigo o meu irmão como tu e só por isso vim ver-te, a ver como esclareces a morte de Odilón.
Eu já o ouvia muito bem. Pus de lado o saco e fiquei a ouvi-lo sem fazer mais nada.»
Juan Rulfo. O Llano em chamas in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 157/158
«Lembro-me de antes, quando os Torricos também vinham aqui sentar-se e ficavam acocorados horas e horas até ao escurecer, olhando para o longe sem se cansarem, como se este lugar lhes sacudisse os pensamentos ou a vontade de irem passear a Zapotlán. Só depois soube que não pensavam isso. Unicamente se punham a olhar o caminho: aquela larga azinhaga arenosa que se podia seguir com o olhar desde o começo até que se perdia entre os pinheiros do cerro da Media Luna.»
Juan Rulfo. O Llano em chamas in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 153
«Às vezes chegamos a acreditar, no meio deste caminho sem margens, que depois não haverá mais nada; que não se poderá encontrar nada do outro lado, no fim desta planura rachada de gretas e de arroios secos. Mas sim, há algo. Há uma aldeia. Ouvem-se os cães a ladrar e sente-se no ar o cheiro do fumo, e saboreia-se esse cheiro de gente como se fosse uma esperança.
Mas a aldeia está ainda muito para lá. É o vento que a aproxima.»
Juan Rulfo. O Llano em chamas in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 145
Sentenças
“A verdadeira vida é uma enfermidade do espírito”
Novalis
“A verdadeira vida está ausente; não estamos no mundo”
Rimbaud
terça-feira, 21 de dezembro de 2010
*
Por felicidade, contudo, o que é o ser? - Não há senão maneiras de ser, sucessivas. Há tantas quanto objectos. Tantas quantos os batimentos de pálpebras.
Tanto quanto, tornando-se nosso regime, um objecto nos concerne, também o nosso olhar o cerca, o discerne. Trata-se, graças aos deuses, de uma «discrição» recíproca; e o artista acerta logo no alvo.
Sim, só o artista, então, sabe como fazer.
Deixa do olhar, atira ao alvo.
O objecto, é certo, acusa o golpe.
A verdade afasta-se em voo, indemne.
A metamorfose aconteceu.
Francis Ponge. Alguns poemas. Edição bilingue. Selecção, introdução e tradução de Manuel Gusmão. Edições Cotovia, Lisboa, 1996, p. 133
domingo, 19 de dezembro de 2010
O SOL FLOR FASTIGADA
TODOS OS DIAS AO CIMO DO MUNDO
EIS QUE SOBE UMA FLOR FASTIGADA.
O SEU ESPLENDOR APAGA O SEU CAULE
QUE VAI TREPANDO POR ENTRE OS DOIS OLHOS
DA DEMASIADA ESTREITA NATUREZA
P'RA LHE DIVIDIR SEPARAR A FRONTE.
A RAIZ 'STA EM NOSSOS CORAÇÕES.
A raiz do que nos deslumbra está nos nossos corações.
Francis Ponge. Alguns poemas. Edição bilingue. Selecção, introdução e tradução de Manuel Gusmão. Edições Cotovia, Lisboa, 1996, p. 109
EIS QUE SOBE UMA FLOR FASTIGADA.
O SEU ESPLENDOR APAGA O SEU CAULE
QUE VAI TREPANDO POR ENTRE OS DOIS OLHOS
DA DEMASIADA ESTREITA NATUREZA
P'RA LHE DIVIDIR SEPARAR A FRONTE.
A RAIZ 'STA EM NOSSOS CORAÇÕES.
A raiz do que nos deslumbra está nos nossos corações.
Francis Ponge. Alguns poemas. Edição bilingue. Selecção, introdução e tradução de Manuel Gusmão. Edições Cotovia, Lisboa, 1996, p. 109
O sol colocado em abismo
9
Assim, mergulhado na desordem absurda e de mau gosto do mundo, no caos inaudito das noites, o homem pelo menos conta os sóis.
Francis Ponge. Alguns poemas. Edição bilingue. Selecção, introdução e tradução de Manuel Gusmão. Edições Cotovia, Lisboa, 1996, p. 95
Assim, mergulhado na desordem absurda e de mau gosto do mundo, no caos inaudito das noites, o homem pelo menos conta os sóis.
Francis Ponge. Alguns poemas. Edição bilingue. Selecção, introdução e tradução de Manuel Gusmão. Edições Cotovia, Lisboa, 1996, p. 95
O sol colocado em abismo
«O sol anima um mundo que primeiro consagrou à morte: é pois apenas a animação da febre ou da agonia.»
Francis Ponge. Alguns poemas. Edição bilingue. Selecção, introdução e tradução de Manuel Gusmão. Edições Cotovia, Lisboa, 1996, p. 87
Francis Ponge. Alguns poemas. Edição bilingue. Selecção, introdução e tradução de Manuel Gusmão. Edições Cotovia, Lisboa, 1996, p. 87
As lâmpadas
«Ordena aos filhos de Israel que te tragam azeite puro,
de azeitonas trituradas, para a luminária, a fim de alimentar
permanentemente as lâmpadas.»
(Levítico 24: p. 164)
de azeitonas trituradas, para a luminária, a fim de alimentar
permanentemente as lâmpadas.»
(Levítico 24: p. 164)
sábado, 18 de dezembro de 2010
Fantasia do Anoitecer
(...)
«Para onde irei eu? Vivem os mortais
De soldo e trabalho; alternando em fadiga e repouso
Tudo se alegra; porque não dorme então
Nunca em meu peito o espinho?
No céu da tarde floresce toda uma primavera;
Incontáveis florescem as rosas, e tranquilo aparece
O mundo áureo; oh! levai-me pra lá,
Nuvens purpúreas! e que lá em cima
Em luz e ar se dissolvem meu amor e dor! -
Mas, como corrido da súplica louca, foge
O encanto; faz-se escuro, e solitário
Sob o céu, como sempre, me encontro. -
Vem tu agora, sono suave! demasiada cobiça
O coração; mas ao fim, juventude, também tu amorteces,
Sonhadora, inquieta!
Serena e pacífica é então a velhice.
Friedrich Hölderlin. Poemas. Prefácio, Selecção e trad. Paulo Quintela. Relógio D' Água, Lisboa, 1991, p. 133/135
«Para onde irei eu? Vivem os mortais
De soldo e trabalho; alternando em fadiga e repouso
Tudo se alegra; porque não dorme então
Nunca em meu peito o espinho?
No céu da tarde floresce toda uma primavera;
Incontáveis florescem as rosas, e tranquilo aparece
O mundo áureo; oh! levai-me pra lá,
Nuvens purpúreas! e que lá em cima
Em luz e ar se dissolvem meu amor e dor! -
Mas, como corrido da súplica louca, foge
O encanto; faz-se escuro, e solitário
Sob o céu, como sempre, me encontro. -
Vem tu agora, sono suave! demasiada cobiça
O coração; mas ao fim, juventude, também tu amorteces,
Sonhadora, inquieta!
Serena e pacífica é então a velhice.
Friedrich Hölderlin. Poemas. Prefácio, Selecção e trad. Paulo Quintela. Relógio D' Água, Lisboa, 1991, p. 133/135
Deuses andaram outrora...
Deuses andaram outrora entre os homens, as Musas
E tu és para mim como eles, como se um dos Venturosos
Me tivesse mandado pra a Vida: se eu ando, anda comigo
A imagem da minha Heroína, quando sofro e crio, com amor
Até à morte; pois isto foi que aprendi dela e dela tenho.
Vivamos, pois, ó tu com quem eu sofro, tu com quem
Íntima - e crente - e fielmente luto por tempo mais belo.
Pois nós somos! E se em anos vindouros ainda soubessem
De nós ambos, quando outra vez o Génio valer,
Diriam: «Estes solitários criaram pra si em amor,
Só sabido dos Deuses, o seu mais secreto mundo.
Pois os que só do que morre cuidaram, a terra os recebe;
Mas mais se aproximam da Luz e do Éter
Os que, fiéis ao íntimo amor e ao divino espírito,
Esperando e sofrendo e com calma o Destino venceram.»
Friedrich Hölderlin. Poemas. Prefácio, Selecção e trad. Paulo Quintela. Relógio D' Água, Lisboa, 1991, p. 119
[magníficas
E o jovem Apolo, sarando, inspirando, como tu;E tu és para mim como eles, como se um dos Venturosos
Me tivesse mandado pra a Vida: se eu ando, anda comigo
A imagem da minha Heroína, quando sofro e crio, com amor
Até à morte; pois isto foi que aprendi dela e dela tenho.
Vivamos, pois, ó tu com quem eu sofro, tu com quem
Íntima - e crente - e fielmente luto por tempo mais belo.
Pois nós somos! E se em anos vindouros ainda soubessem
De nós ambos, quando outra vez o Génio valer,
Diriam: «Estes solitários criaram pra si em amor,
Só sabido dos Deuses, o seu mais secreto mundo.
Pois os que só do que morre cuidaram, a terra os recebe;
Mas mais se aproximam da Luz e do Éter
Os que, fiéis ao íntimo amor e ao divino espírito,
Esperando e sofrendo e com calma o Destino venceram.»
Friedrich Hölderlin. Poemas. Prefácio, Selecção e trad. Paulo Quintela. Relógio D' Água, Lisboa, 1991, p. 119
'Foi nos braços dos deuses que eu cresci.'
Friedrich Hölderlin. Poemas. Prefácio, Selecção e trad. Paulo Quintela. Relógio D' Água, Lisboa, 1991, p. 107
A família do sábio
Ao ruído de uma nascente de noite, sob uma campânula de folhas, com uma mesma árvore contra o tronco, calmo e frio - Pai - assim, num quarto frio, um dia a tua presença nos foi.
Tu estavas frio, sob um único lençol, velado, uma janela aberta.
Que equilíbrio nós quatro juntos, sem horas sentados, tu próprio ainda melhor em repouso, estendido, morto.
Que pura saúde a do verde-frondoso, do solo, e do líquido.
Igual em nós corria uma água em silêncio do pescoço sem cessar para o dorso até aos membros sob a erva. Pela janela surda, um sopro, derramado do fundo obscuro do céu, secava nas têmporas das mulheres o suor do anoitecer.
E que também uma estrela, parecida com o olho do filho,
se avive,
Sem o dizeres. daí tiravas teu gozo, Pai!
Francis Ponge. Alguns poemas. Edição bilingue. Selecção, introdução e tradução de Manuel Gusmão. Edições Cotovia, Lisboa, 1996, p. 57
Tu estavas frio, sob um único lençol, velado, uma janela aberta.
Que equilíbrio nós quatro juntos, sem horas sentados, tu próprio ainda melhor em repouso, estendido, morto.
Que pura saúde a do verde-frondoso, do solo, e do líquido.
Igual em nós corria uma água em silêncio do pescoço sem cessar para o dorso até aos membros sob a erva. Pela janela surda, um sopro, derramado do fundo obscuro do céu, secava nas têmporas das mulheres o suor do anoitecer.
E que também uma estrela, parecida com o olho do filho,
se avive,
Sem o dizeres. daí tiravas teu gozo, Pai!
Francis Ponge. Alguns poemas. Edição bilingue. Selecção, introdução e tradução de Manuel Gusmão. Edições Cotovia, Lisboa, 1996, p. 57
O ciclo das estações
Cansadas de se terem contraído todo o inverno as árvores de repente gabam-se de ser enganadas: soltam as suas palavras, uma onda, um vómito de verde. Tentam alcançar uma folheação completa de palavras. Tanto pior! As coisas arranjar-se-ão como puderem! E, na realidade, arranjam-se! Nenhuma liberdade na folheação...As árvores lançam, pelo menos é o que pensam, não importa que palavras, lançam caules para neles suspenderem mais palavras: os nossos troncos, pensam elas, aqui estão tudo para assumirem. Esforçam-se por se esconderem, por se confundirem umas nas outras. Julgam poder dizer tudo, cobrir inteiramente o mundo com palavras variadas: mas não dizem senão «as árvores». Incapazes até de reter os pássaros que delas voltam a partir, embora se alegrassem por terem produzido tão estranhas flores. Sempre a mesma folha, o mesmo modo de desdobramento, e o mesmo limite, sempre folhas simétricas umas às outras, simetricamente suspensas! Tenta mais uma folha! - A mesma! Mais outra! A mesma! Em suma, nada poderia pará-las senão de súbito esta observação: «Não se sai das árvores por meios de árvore». Um novo cansaço, e uma nova mudança moral. «Deixemos tudo isto amarelecer, e cair. Que venha o taciturno estado, o despojamento, o Outono.
Francis Ponge. Alguns poemas. Edição bilingue. Selecção, introdução e tradução de Manuel Gusmão. Edições Cotovia, Lisboa, 1996, p. 39
quinta-feira, 16 de dezembro de 2010
Ática
“No continente grego, junto às Cíclades e ao Mar Egeu, o promontório de Sounion é um avanço do território Ático. Quando se distancia do promontório vê-se, no topo, o templo de Atenas Sounias, navegando-se mais adiante vê-se Laurion, onde os atenienses tiveram outrora as suas minas de prata; há em seguida uma ilha deserta, mas não muito extensa, chamada ilha de Pátroclo, porque Pátroclo lá construíra uma muralha e fundara um campo fortificado”.
Pausânias. Description de la Gréce, p. 20.
Em contrapartida...
« Em contrapartida, ela, habituada à liberdade e ao ambiente aberto das feiras, sentia-se abatida na desolação daquela casa imensa, e elanguescia de prostração. Pois Dionizio Pinzón mantinha-a sempre prostrada no canto da sala, onde permanecia noite após noite, presenciando os jogadores, afastada do sol e da luz do dia, pois a partida terminava ao amanhecer e começava ao cair da tarde. Deste modo, escureciam-se-lhe os dias e em vez de respirar ares diferentes, sorvia fumo e vapores alcoólicos.
Antes de Dionisio Pinzón ter transformado a sua humildade em soberba, ela colocara as suas condições e impusera a sua vontade. Agora, porém, já decaída a sua voz, mortas as suas forças. não lhe restava senão obedecer a uma vontade alheia e esquecer a própria existência.
- Ouve-me bem, Dionisio - dissera-lhe quando este lhe propusera casamento, - eu estou habituada a que ninguém mande em mim. Por isso escolhi esta vida...e também sou eu quem escolhe os homens que quero e deixo-os quando me dá na gana. Tu és como os outros, nem mais nem menos. Desde já to digo.
- Está bem, Bernarda, far-se-á aquilo que tu mandares.
- Isso também não. Aquilo que eu preciso é de um homem. Não da sua protecção, que eu sei proteger-me sozinha; mas, isso sim, que saiba responder por mim e por ele diante de quem for...E que não se espante se eu lhe der má vida.
Mas na realidade foi ele quem lha deu a ela. Assim que sentiu o poder que o dinheiro lhe dava, o seu carácter mudou. Subiu de condição e procurou demonstrá-lo em todas as suas relações. E mesmo quando ela lutou por todos os meios que tinha ao seu alcance para não perder a sua liberdade e independência de vida, ao fim e ao cabo não o conseguiu e teve de se submeter. Mas lutou. (...)»
Juan Rulfo. O Galo de Ouro in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 349
Casou-se com la Caponera numa manhã qualquer...
«Casou-se com la Caponera numa manhã qualquer, numa aldeia qualquer, honrando assim a sua promessa de nunca mais se separar dela.
Ela não queria matrimónio; mas algo no fundo lhe dizia que aquele homem não era como os outros, e movida pela conveniência de se associar a alguém, sobretudo a um fulano como Dionisio Pinzón, cheia de codícia e do qual estava certa que continuaria com ela, a andar de um lado para o outro, enquanto batessem as asas dos seus galos, concordou em casar, pois assim teria, ao menos, em que apoiar a sua solitária vida.
Aldeias, cidades, ranchos, tudo percorreram. Ela, pelo seu próprio gosto. Ele, movido pela ambição: por um afã ilimitado de acumular riqueza.»
Juan Rulfo. O Galo de Ouro in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 344
«Na primeira tarde, dos três galos jogados, Dionizio Pinzón só ergueu um vivo. Na segunda tarde, deu «capote» nas três lutas. Descansou um dia; para no quarto dia voltar à cercadura, onde ficou claro que os seus animais não serviam nem para galos de galinheiro pois todos ficaram pendurados no gancho onde é costume deixar que os galos mortos destilem a sua última gota de sangue.»
Juan Rulfo. O Galo de Ouro in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 334
quarta-feira, 15 de dezembro de 2010
«- Vivias morto de fome. Eu vou dizer-to. Sei avaliar as pessoas com uma simples vista de olhos. E tu és daqueles, perdoa-me que to diga, daqueles que evitam o trabalho duro...Não, Pinzón, tu és como eu. O trabalho não foi feito para nós, por isso procuramos uma profissão mais ligeirinha. E qual melhor do que esta jogatana, em que esperamos sentados que a sorte nos mantenha?»
Juan Rulfo. O Galo de Ouro in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 332
Canção do destino de Hyperion
Andais lá em cima na luz
Em chão macio, génios venturosos!
Ares divinos resplandecentes
Vos tocam de leve,
Como os dedos da artista
Cordas sagradas.
Sem destino, como dormente
Menino, respiram os deuses;
Pudicamente guardado
Em casto botão,
Eternamente
Lhes floresce o Espírito,
E os olhos felizes
Olham em serena
Claridade eterna,
Mas a nós foi-nos dado
Não repousar em parte alguma,
Desfalecem, caem
Os homens sofredores
Às cegas de uma
Hora para a outra,
Como água atirada
De rochedo em rochedo,
Anos a fio para o Incerto.
Friedrich Hölderlin. Poemas. Prefácio, Selecção e trad. Paulo Quintela. Relógio D' Água, Lisboa, 1991, p. 101/2
Em chão macio, génios venturosos!
Ares divinos resplandecentes
Vos tocam de leve,
Como os dedos da artista
Cordas sagradas.
Sem destino, como dormente
Menino, respiram os deuses;
Pudicamente guardado
Em casto botão,
Eternamente
Lhes floresce o Espírito,
E os olhos felizes
Olham em serena
Claridade eterna,
Mas a nós foi-nos dado
Não repousar em parte alguma,
Desfalecem, caem
Os homens sofredores
Às cegas de uma
Hora para a outra,
Como água atirada
De rochedo em rochedo,
Anos a fio para o Incerto.
Friedrich Hölderlin. Poemas. Prefácio, Selecção e trad. Paulo Quintela. Relógio D' Água, Lisboa, 1991, p. 101/2
«Pois mais livres respiram as aves do bosque,
Embora mais magnífico arqueje o peito do Homem,
E ele, que vê o escuro futuro, tem também
De ver a morte, e entre todos sozinho ter-lhe medo.
E contra todos os que respiram usa o Homem
Armas em seu orgulho e medo eternos; no dissídio
Se consome, e a flor da sua paz,
Delicada, é breve e passageira.»
Friedrich Hölderlin. Poemas. Prefácio, Selecção e trad. Paulo Quintela. Relógio D' Água, Lisboa, 1991, p. 99
Embora mais magnífico arqueje o peito do Homem,
E ele, que vê o escuro futuro, tem também
De ver a morte, e entre todos sozinho ter-lhe medo.
E contra todos os que respiram usa o Homem
Armas em seu orgulho e medo eternos; no dissídio
Se consome, e a flor da sua paz,
Delicada, é breve e passageira.»
Friedrich Hölderlin. Poemas. Prefácio, Selecção e trad. Paulo Quintela. Relógio D' Água, Lisboa, 1991, p. 99
terça-feira, 14 de dezembro de 2010
VANINI
Blasfemo te chamaram? com maldições
Te carregaram o coração e te amarraram
E te entregaram às chamas,
Santo homem! Oh, porque não voltaste
Em chamas do céu, pra ferir a fronte
Dos ímpios e mandar à tempestade
Que atirasse a cinza dos bárbaros
Pra fora da terra e da pátria?
Mas aquela que em vida amaste, a que te acolheu
Moribundo, a Natureza sagrada esquece
As acções dos homens, e os teus inimigos
Entraram, como tu, na paz antiga.
Friedrich Hölderlin. Poemas. Prefácio, Selecção e trad. Paulo Quintela. Relógio D' Água, Lisboa, 1991, p. 93
Te carregaram o coração e te amarraram
E te entregaram às chamas,
Santo homem! Oh, porque não voltaste
Em chamas do céu, pra ferir a fronte
Dos ímpios e mandar à tempestade
Que atirasse a cinza dos bárbaros
Pra fora da terra e da pátria?
Mas aquela que em vida amaste, a que te acolheu
Moribundo, a Natureza sagrada esquece
As acções dos homens, e os teus inimigos
Entraram, como tu, na paz antiga.
Friedrich Hölderlin. Poemas. Prefácio, Selecção e trad. Paulo Quintela. Relógio D' Água, Lisboa, 1991, p. 93
Imperdoável
Se vós amigos, esqueceis, se escarneceis o artista,
E entendeis mesquinho e vulgar o espírito mais fundo,
Deus perdoa-vo-lo; mas não perturbeis
Nunca a paz dos que se amam.
Friedrich Hölderlin. Poemas. Prefácio, Selecção e trad. Paulo Quintela. Relógio D' Água, Lisboa, 1991, p. 79
E entendeis mesquinho e vulgar o espírito mais fundo,
Deus perdoa-vo-lo; mas não perturbeis
Nunca a paz dos que se amam.
Friedrich Hölderlin. Poemas. Prefácio, Selecção e trad. Paulo Quintela. Relógio D' Água, Lisboa, 1991, p. 79
Perdão!
Santa criatura! Tantas vezes em ti perturbei
A dourada paz dos deuses, e das mais secretas,
Das mais fundas dores da vida
Muitas de mim aprendeste.
Oh esquece e perdoa! Como aquelas nuvens
Passam ante a Lua pacífica, eu passarei, e tu
Repousas depois e brilhas de novo
Na tua beleza, ó luz suave!
Friedrich Hölderlin. Poemas. Prefácio, Selecção e trad. Paulo Quintela. Relógio D' Água, Lisboa, 1991, p. 69
A dourada paz dos deuses, e das mais secretas,
Das mais fundas dores da vida
Muitas de mim aprendeste.
Oh esquece e perdoa! Como aquelas nuvens
Passam ante a Lua pacífica, eu passarei, e tu
Repousas depois e brilhas de novo
Na tua beleza, ó luz suave!
Friedrich Hölderlin. Poemas. Prefácio, Selecção e trad. Paulo Quintela. Relógio D' Água, Lisboa, 1991, p. 69
Ao Éter
(...)
Pelas zonas da terra, ó Pai Éter! em vão,
Pois a ânsia nos impele de morar em teus jardins.
Na corrente marinha nos lançamos, pra nos saciarmos
Nas planuras mais livres, e a vaga infinita nos rodeia
A quilha, e o peito alegra-se co'as forças do deus do mar.
Mas não lhe basta; pois Oceano mais fundo nos atraí,
Lá onde se agita a onda mais leve - oh quem pudesse
Levar o barco errante àquelas praias de ouro!
Mas enquanto eu anseio ao longe do crepúsculo
Onde co'a vaga azulada abraças 'stranhas praias,
Desces sussurrante da coroa florida da árvore de fruto,
Pai Éter! e suavizas-me até o coração ansioso,
E de bom grado vivo, como dantes, co'as flores da terra.
Friedrich Hölderlin. Poemas. Prefácio, Selecção e trad. Paulo Quintela. Relógio D' Água, Lisboa, 1991, p. 57
Pelas zonas da terra, ó Pai Éter! em vão,
Pois a ânsia nos impele de morar em teus jardins.
Na corrente marinha nos lançamos, pra nos saciarmos
Nas planuras mais livres, e a vaga infinita nos rodeia
A quilha, e o peito alegra-se co'as forças do deus do mar.
Mas não lhe basta; pois Oceano mais fundo nos atraí,
Lá onde se agita a onda mais leve - oh quem pudesse
Levar o barco errante àquelas praias de ouro!
Mas enquanto eu anseio ao longe do crepúsculo
Onde co'a vaga azulada abraças 'stranhas praias,
Desces sussurrante da coroa florida da árvore de fruto,
Pai Éter! e suavizas-me até o coração ansioso,
E de bom grado vivo, como dantes, co'as flores da terra.
Friedrich Hölderlin. Poemas. Prefácio, Selecção e trad. Paulo Quintela. Relógio D' Água, Lisboa, 1991, p. 57
segunda-feira, 13 de dezembro de 2010
Bernarda Cutiño
«A tal Bernarda Cutiño era uma cantadeira de fama corrida, de muito brio e que os tinha no sítio; tal como cantava era boa para alvoroços, embora não se deixasse manusear por ninguém, pois se alguém o tentava, era rude e de mau trato. Forte, bonita, expansiva e de génio inconstante, sabia, contudo entregar a sua amizade a quem lhe demonstrava ser seu amigo. Tinha uns olhos faiscantes, sempre humedecidos, e a voz rouca. O seu corpo era ágil, duro e quando erguia os braços os seios queriam rebentar o corpete. Usava sempre amplas saias de fino algodão estampado, de cores berrantes e cheias de folhos, que completava com um xaile de seda e flores nas tranças. (...)»
Juan Rulfo. O Galo de Ouro in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 329/330
« Enquanto aguardava o regresso do «padrinho», Dionisio Pinzón fixou-se nelas, sobretudo naquela que estava à sua frente e que tinha a certeza de conhecer. Foi-se aproximando até se colocar ao pé do estrado e olhou-a a seu gosto, enquanto ela lançava os versos da sua canção:
Ontem à noite sonhei que te amava,
como se ama uma vez na vida
despertei e tudo era mentira,
nem sequer me lembro de ti...
(...)
...Se te quis, não foi porque te quis,
se te amei, foi para passar o tempo,
aqui te mando o teu triste retrato
para nunca me lembrar de ti...»
Juan Rulfo. O Galo de Ouro in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 317
Ontem à noite sonhei que te amava,
como se ama uma vez na vida
despertei e tudo era mentira,
nem sequer me lembro de ti...
(...)
...Se te quis, não foi porque te quis,
se te amei, foi para passar o tempo,
aqui te mando o teu triste retrato
para nunca me lembrar de ti...»
Juan Rulfo. O Galo de Ouro in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 317
«O amarrador de Chihuahua recolheu o seu galo maltratado. Soprou-lhe o bico para o descongestionar e tentou que o animal se aguentasse nas patas. Mas ao ver que voltava a cair enroscado, como uma bola de penas, disse:
- Não há mais remédio senão liquidá-lo.
E já estava disposto a torcer-lhe o pescoço quando Dionisio Pinzón se atreveu a contê-lo:
- Não o mate - disse-lhe. - Pode curar-se e servirá, nem que seja para criação.
O de Chihuahua riu, trocista, e atirou o galo a Dionisio Pinzón como quem se desfaz de um trapo sujo. Dionisio alcançou-o, apanhando-o em pleno voo. Aconchegou-o nos seus braços com cuidado, quase com ternura e retirou-se com ele da cercadura.
Ao chegar a casa, fez um buraco debaixo da telha vã e, auxiliado pela mãe, enterrou ali o galo, deixando-lhe apenas a cabeça de fora.»
Juan Rulfo. O Galo de Ouro in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 310
« O galo branco revelou-se «franganote». Aceitou lutar ao ser acareado; porém, já solto na linha, perante as primeiras investidas do dourado, encolheu-se para um canto. E ali se ficou, a cabeça agachada e as asas murchas como se estivesse doente. Ainda assim, o galo dourado foi até onde o galo branco estava à procura da luta; as penas do pescoço levantadas e as patas a pisarem, maciças, a cada passo que dava à volta do galo cobarde. O «franganote» encolheu-se ainda mais na vala, reflectindo cobardia e, principalmente, tenções de fugir. Porém, ao ver-se cercado pelo galo de Chihuahua, deu um salto, tentando livrar-se das investidas do dourado e foi cair sobre o espinhaço cor de girassol do seu inimigo. Bateu com as asas com força para manter o equilíbrio e por fim conseguiu, ao querer libertar-se do enlace em que tinha caído, romper com a afiada navalha do seu esporão uma asa do dourado.
O fino galo de Chihuahua, manco, atacou sem misericórdia o «eriçado», que se retirava para o seu canto a cada investida; mas fazia uso do seu meio-voo ao sentir-se cercado. E assim, uma e outra vez, até que, não conseguindo resistir à sangria da sua ferida, o dourado cravou o bico, estendendo-se sobre o piso da cercadura sem que o branco fizesse a menor menção de o atacar.»
Juan Rulfo. O Galo de Ouro in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 309
As parcas
Concedei-me um só verão, poderosas!
E um só Outono ao meu canto maduro,
Que o meu coração mais pronto, do doce
Jogo farto, então morra!
A alma, que em vida o divino direito
Não alcançou, também não repousa lá baixo no orco;
Mas se uma vez o sagrado, aquilo
Que ao peito me é caro, o poema, atingir,
Bem-vindo então, silêncio do reino das sombras!
Contente estarei, ainda que a lira
Me não acompanhe; uma vez
terei, como os deuses, vivido, e mais além não preciso.
Friedrich Hölderlin. Poemas. Prefácio, Selecção e trad. Paulo Quintela. Relógio D' Água, Lisboa, 1991, p. 49
E um só Outono ao meu canto maduro,
Que o meu coração mais pronto, do doce
Jogo farto, então morra!
A alma, que em vida o divino direito
Não alcançou, também não repousa lá baixo no orco;
Mas se uma vez o sagrado, aquilo
Que ao peito me é caro, o poema, atingir,
Bem-vindo então, silêncio do reino das sombras!
Contente estarei, ainda que a lira
Me não acompanhe; uma vez
terei, como os deuses, vivido, e mais além não preciso.
Friedrich Hölderlin. Poemas. Prefácio, Selecção e trad. Paulo Quintela. Relógio D' Água, Lisboa, 1991, p. 49
...«como se conta dos heróis, posso bem dizer que Apolo me feriu».
Friedrich Hölderlin. Poemas. Prefácio, Selecção e trad. Paulo Quintela. Relógio D' Água, Lisboa, 1991, p. 24
Amor de Hölderlin a Susette Gontard a...
grega «perdida num século pobre sem espírito e sem ordem»
(carta a Neuffeer, de 16 de Fev. de 1797)
Friedrich Hölderlin. Poemas. Prefácio, Selecção e trad. Paulo Quintela. Relógio D' Água, Lisboa, 1991, p. 21
(carta a Neuffeer, de 16 de Fev. de 1797)
Friedrich Hölderlin. Poemas. Prefácio, Selecção e trad. Paulo Quintela. Relógio D' Água, Lisboa, 1991, p. 21
domingo, 12 de dezembro de 2010
As flores
«Há escritores que se servem delas pelo simples prestígio dos seus nomes, sem prestarem muita atenção ao facto de corresponderem, ou não, ao lugar e à estação do ano. De modo que não é raro encontrar bons livros onde florescem gerânios na praia e túlipas na neve. Em Pedro Páramo, onde é impossível estabelecer de uma forma definitiva onde está a linha de demarcação entre os mortos e os vivos, as exactidões são ainda mais quiméricas. Ninguém pode saber, na realidade, quanto duram os anos da morte.»
Gabriel García Márquez in Juan Rulfo, Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 14
«Eu sempre pensei, por pura intuição poética, que quando Pedro Páramo conseguiu por fim levar Susana San Juan para o seu vasto reino da Meia-Lua, ela já era uma mulher de 62 anos. Pedro Páramo devia ser uns cinco anos mais velho do que ela. Na realidade, o drama parecia-me maior, mais terrível e bonito, se se precipitasse pelo precipício de uma paixão senil sem alívio.»
Gabriel García Márquez in Juan Rulfo, Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 13
«Tive uma infância muito dura, muito difícil. Uma família que se desintegrou muito facilmente num lugar que foi totalmente destruído. Desde o meu pai e a minha mãe, inclusive todos os irmãos de meu pai foram assassinados. Vivi, portanto, numa zona devastada. Não apenas de devassidão humana, mas devassidão geográfica. Nunca encontrei até à data uma lógica que explique tudo isto. Não se pode atribuir à Revolução. Foi mais uma coisa atávica, uma coisa de destino, uma coisa ilógica. Até hoje ainda não encontrei um ponto de apoio que me mostre porque nesta minha família sucederam nessa forma, e tão sistematicamente, essa série de assassinatos e de crueldades.»
in Los muertos no tienen ni tiempo ni espacio, diálogo com Juan Rulfo
quinta-feira, 9 de dezembro de 2010
Aos poetas jovens
Queridos Irmãos! Talvez a nossa arte amadureça,
Pois, como o jovem, há muito ela fermenta já.
Em breve em beleza serena;
Sede, então, devotos, como o grego o foi.
Amai os deuses e pensai nos mortais com amizade!
Odiai a ebriedade como o gelo! não ensineis nem descrevais!
Se o mestre vos assusta,
Pedi conselho à grande Natureza!
Friedrich Hölderlin. Poemas. Prefácio, Selecção e trad. Paulo Quintela. Relógio D' Água, Lisboa, 1991, p. 21
Pois, como o jovem, há muito ela fermenta já.
Em breve em beleza serena;
Sede, então, devotos, como o grego o foi.
Amai os deuses e pensai nos mortais com amizade!
Odiai a ebriedade como o gelo! não ensineis nem descrevais!
Se o mestre vos assusta,
Pedi conselho à grande Natureza!
Friedrich Hölderlin. Poemas. Prefácio, Selecção e trad. Paulo Quintela. Relógio D' Água, Lisboa, 1991, p. 21
«Feriu-me singularmente a atenção o verdadeiro modo de ser do público de uma grande cidade. Vive numa constante vertigem do lucro e do gozo, e aquilo a que nós chamamos atmosfera (Stimmung) não se pode criar nem comunicar; todos os prazeres, mesmo o teatro, devem apenas distrair, e a grande inclinação do público ledor de jornais e romances provém de que aqueles, sempre, e estes muitas vezes, trazem distracção à distracção. - Suponho mesmo ter notado uma espécie de timidez em face das produções poéticas, pelo menos enquanto poéticas, timidez que, por essas mesmas razões, me parece muito natural. A poesia requer, exige mesmo, concentração; isola o homem contra a sua vontade, torna-se por vezes molesta e importuna nas suas exigências e é no largo mundo (para não dizer no grande mundo) tão incómoda como uma amante fiel.»
Goethe, carta a 9 de Agosto de 1797
in Friedrich Hölderlin. Poemas. Prefácio, Selecção e trad. Paulo Quintela. Relógio D' Água, Lisboa, 1991, p. 19
Remexer de novo, com as carumas nos púcaros de resina. Retirar de lá o baço das imagens, o luto que não termina. Estarás sentado, aconchegado ao peito dela, a minha primeira treva? Que verás, quando na madrugada silenciosa, a minha alma vagueia, recua, até ao dia desse desmoronamento...As árvores conservam o frio; não aguentar este pulsar, este não-sentido que parece empalidecer perante ruínas. Estarás comigo, escutando-me este coração sem forças para se aguentar na haste dum tão grande cansaço sem margens? Estou só, dentro de mim mesma, entregue ao golpe incómodo desse sangue, desse rio que nunca mais regressou, e aguento todas as memórias, as misérias que corróiem este caminho para profundas distâncias. Olho-me distanciada, e vejo outra entregue ao incompreendido labor de lavar feridas na laje iluminada pela lua em carne viva. Crepita um embalo rude. Um pássaro abandona uma leve pena no parapeito. Fecho as pálpebras. Mornos fios de sal encontram os lábios. Amarga o que nos é saudade e, talvez me pese esse olhar cínzeo entregue ao lugar desconhecido que nos vigia, ao além das nuvens, que nos ensina a viver com enlutada chama. E, baixinho, muito baixinho, rastejando os pés sobre o mármore branco, volto para o meu leito. Aguento este cerrado nevoeiro e, talvez, amanhã divague por colheita tranquila. O que nos pertence? O desejar de um rio.
quarta-feira, 8 de dezembro de 2010
A estepe
«Durante as tardes e as noites de Julho já não se ouvem as codornizes, nem as galinholas, nem o rouxinol, nas ravinas da floresta; as flores já não embalsamam o ar. No entanto, a estepe continua ainda muito bela e cheia de vida. Basta que o Sol se ponha e a terra mergulhe na sombra para que a tristeza do dia seja esquecida e tudo seja perdoado; a estepe suspira suavemente pelo seu grande peito. A obscuridade da noite esconde o seu estigma, a erva anima-se numa alegre confusão juvenil que durante o dia ela nunca consegue ter; os estalidos, os assobios, as arranhadelas, os baixos, os tenores e os sopranos da estepe, tudo se funde num zumbido contínuo que convida à saudade e à melancolia. Esta ressonância adormece como uma canção de embalar; rola-se através da estepe e sente-se que vai adormecer, mas de repente é o grito inquieto e sacudido dum pássaro que ainda não adormeceu, ou num barulho indefinível semelhante a uma voz humana, como um «aaah» de espanto, e lá se vai o sono das pálpebras.»
Anton Tchekoff. A Estepe. Livros de Bolso/ Europa-América. 2ª ed.Trad. Maria do Carmo Santos, 2003., p. 46/47
« - À noite não dorme, só pensa, pensa, pensa; mas em quê só Deus é que o sabe. Se nos aproximamos dele, enfurece-se e ri. Nem de mim gosta...Não deseja nada. Quando morreu o nosso pai, deixou-nos seis mil rublos a cada um. Eu comprei esta estalagem, casei e agora tenho filhos. Ele queimou o dinheiro todo na lareira. Que dó! Porque é que o queimou? Se não o queria, desse-mo, mas agora queimá-lo...»
Anton Tchekoff. A Estepe. Livros de Bolso/ Europa-América. 2ª ed.Trad. Maria do Carmo Santos, 2003., p. 42
«- Como podes tu, meu imbecil, comparar-te a Varlamov.
-Não sou tão imbecil que me compare com Varlamov -respondeu Salomão, examinando os seus interlocutores com olhar irónico. - Varlamov bem quer ser russo, mas, no fundo do seu coração, é um porco judeu. A vida dele é o dinheiro e os benefícios que ele lhe traz, enquanto eu queimei todo o meu dinheiro na lareira. Nem tenho necessidade de dinheiro, nem de terras, nem de carneiros e também não tenho necessidade de que tenham medo de mim, nem que se descubram à minha passagem. Então eu sou mais inteligente que o vosso Varlamov e pareço-me mais com um ser humano do que ele.»
-Não sou tão imbecil que me compare com Varlamov -respondeu Salomão, examinando os seus interlocutores com olhar irónico. - Varlamov bem quer ser russo, mas, no fundo do seu coração, é um porco judeu. A vida dele é o dinheiro e os benefícios que ele lhe traz, enquanto eu queimei todo o meu dinheiro na lareira. Nem tenho necessidade de dinheiro, nem de terras, nem de carneiros e também não tenho necessidade de que tenham medo de mim, nem que se descubram à minha passagem. Então eu sou mais inteligente que o vosso Varlamov e pareço-me mais com um ser humano do que ele.»
Anton Tchekoff. A Estepe. Livros de Bolso/ Europa-América. 2ª ed.Trad. Maria do Carmo Santos, 2003., p. 40
Princípios de Novembro de 1910
«Mas esquecer não é a palavra que convém aqui...A memória deste homem não sofreu mais do que a sua força de imaginação. Quanto a remover montanhas, nem a sua memória nem a sua imaginação o podem; este homem, é necessário reconhecê-lo, mantém-se fora do nosso povo, fora da nossa humanidade, não cessa de ser esfomeado, só o instante lhe pertence, o instante ininterrupto de calamidade, instante que não é seguido de nenhuma faísca, de nenhum momento de reconforto; há sempre uma mesma coisa: as suas dores, mas no mundo inteiro nenhuma outra coisa que se possa fazer passar por remédio, não há mais solo do que aquele que podem cobrir as suas mãos (....)»
Franz Kafka. Antologia De Páginas Íntimas. Selecção, prefácio e tradução de Alfredo Margarido, 3ª ed. Guimarães Editores, Lisboa, 2002, p. 29
terça-feira, 7 de dezembro de 2010
Domingo, 19 de Julho de 1910
«Durmo, acordo, readormeço, reacordo, miserável vida.
Quando penso nisso, é-me necessário confessar que a minha educação me prejudicou muito por várias razões.»
Quando penso nisso, é-me necessário confessar que a minha educação me prejudicou muito por várias razões.»
Franz Kafka. Antologia De Páginas Íntimas. Selecção, prefácio e tradução de Alfredo Margarido, 3ª ed. Guimarães Editores, Lisboa, 2002, p. 28
«(...) Não ganharias nada em deixar o teu círculo e na verdade o que perderias em permanecer dentro dele? A isto limito-me a responder: também preferia deixar-me moer com pancadas no círculo a ser aquele que bate no exterior, mas onde diabo está o círculo? Houve um tempo em que eu o via no solo como traçado por salpicos de cal, mas presentemente apenas flutua em torno de mim, que digo, nem flutua sequer»
Franz Kafka. Antologia De Páginas Íntimas. Selecção, prefácio e tradução de Alfredo Margarido, 3ª ed. Guimarães Editores, Lisboa, 2002, p. 27
segunda-feira, 6 de dezembro de 2010
História
Aconteça o que acontecer, aqui fico - murmurou
ele.
A margem é imensa, as pedras
alteram a sua cor à passagem da hora.
Se contemplas a água, logo após o crepúsculo,
verás o último filho de Tiestes
sem espada, sem coroa, apenas
no flanco direito a cicatriz duma estrela.
Quanto ao resto dir-se-á que estava escrito
o amor, o massacre e o regresso,
o poder efémero, a ausência de descendentes,
e a minúscula cruz de ferro
pendurada num fio, nessa mesma noite,
e pisada no solo pelos cascos dos cavalos.
Yannis Ritsos. poemas. Selecção e Trad. de Egito Gonçalves. Prefácio de Carlos Porto. 1ª ed. Fevereiro, 1984. Editora Limiar., p.99
ele.
A margem é imensa, as pedras
alteram a sua cor à passagem da hora.
Se contemplas a água, logo após o crepúsculo,
verás o último filho de Tiestes
sem espada, sem coroa, apenas
no flanco direito a cicatriz duma estrela.
Quanto ao resto dir-se-á que estava escrito
o amor, o massacre e o regresso,
o poder efémero, a ausência de descendentes,
e a minúscula cruz de ferro
pendurada num fio, nessa mesma noite,
e pisada no solo pelos cascos dos cavalos.
Yannis Ritsos. poemas. Selecção e Trad. de Egito Gonçalves. Prefácio de Carlos Porto. 1ª ed. Fevereiro, 1984. Editora Limiar., p.99
As mulheres
As mulheres estão muito distantes. As suas rou-
pas, o cheiro de «Boa Noite».
Pousam o pão na mesa para que não se sinta
como estão ausentes.
É então que nos sentimos culpados. Levantamo-nos
da cadeira e dizemos:
«Estás muito cansada hoje » ou então «Deixa, eu
acendo o candeeiro».
Quando pegamos no fósforo ela volta-se lenta-
mente
e dirige-se para a cozinha com uma aplicação
inexplicável. As costas
são uma pequena colina de amargura carregada
de mortos sem fim,
os mortos da família, os mortos dela e a nossa
morte.
Ouvem-se-lhe os passos a afastar latas velhas,
ouvem-se as travessas a chorar na banca, depois
ouve-se
o comboio que transporta os soldados para a
frente.
Yannis Ritsos. poemas. Selecção e Trad. de Egito Gonçalves. Prefácio de Carlos Porto. 1ª ed. Fevereiro, 1984. Editora Limiar., p.85
pas, o cheiro de «Boa Noite».
Pousam o pão na mesa para que não se sinta
como estão ausentes.
É então que nos sentimos culpados. Levantamo-nos
da cadeira e dizemos:
«Estás muito cansada hoje » ou então «Deixa, eu
acendo o candeeiro».
Quando pegamos no fósforo ela volta-se lenta-
mente
e dirige-se para a cozinha com uma aplicação
inexplicável. As costas
são uma pequena colina de amargura carregada
de mortos sem fim,
os mortos da família, os mortos dela e a nossa
morte.
Ouvem-se-lhe os passos a afastar latas velhas,
ouvem-se as travessas a chorar na banca, depois
ouve-se
o comboio que transporta os soldados para a
frente.
Yannis Ritsos. poemas. Selecção e Trad. de Egito Gonçalves. Prefácio de Carlos Porto. 1ª ed. Fevereiro, 1984. Editora Limiar., p.85
domingo, 5 de dezembro de 2010
Hölderlin
Detença, mesmo com as coisas mais íntimas,
não nos é dada; das imagens
cumpridas o espírito arroja-se repentino de mais para as que se
o mais próprio. Do sentimento sabido
precipitar-nos para baixo para o pressentido, mais além.
A ti, ó magnífico Invocador, a ti toda uma vida
te foi dada a instante imagem, e, quando a exprimias,
o verso fechava-se como um destino, havia uma morte
mesmo no mais suave, e tu entravas nela; mas o deus
que ia à tua frente guiava-te para lá, pra fora dela.
Ó tu espírito errante, o mais errante! Como elas todas
moram no poema quente, agasalhadas, e ficam
longamente na comparação estreita. Partícipes. Só tu
vagueias como a Lua. E em baixo aclara-se e escurece
a tua paisagem nocturna, santamente assustada,
que tu sentes em despedidas. Ninguém
a deu mais sublimemente, a restituiu ao Todo
mais inteira, menos pobre. Assim também
brincaste teu jogo santo por anos já não contados
com a infinita ventura, como se ela não fosse interior, mas jazesse
por aí, pertença de ninguém, na macia
relva da Terra, abandonada por crianças divinas.
Ai, o por que os Altíssimos anseiam, puseste-o tu, sem desejo,
pedra sobre pedra: e ficou. Mas mesmo a sua queda
te não perturbaria.
Se um tal, eterno, houve um dia, porque é que nós
desconfiamos ainda do terrestre? em vez de no transitório
seriamente aprender os sentimentos de qualquer
inclinação, futura no espaço?
(Irschenhausen, Setembro de 1914)
Rainer Maria Rilke
in Friedrich Hölderlin. Poemas. Prefácio, Selecção e trad. Paulo Quintela. Relógio D' Água, Lisboa, 1991, p. 9
não nos é dada; das imagens
cumpridas o espírito arroja-se repentino de mais para as que se
[querem cumprir; lagos
há-os só no eterno. Aqui, é a quedao mais próprio. Do sentimento sabido
precipitar-nos para baixo para o pressentido, mais além.
A ti, ó magnífico Invocador, a ti toda uma vida
te foi dada a instante imagem, e, quando a exprimias,
o verso fechava-se como um destino, havia uma morte
mesmo no mais suave, e tu entravas nela; mas o deus
que ia à tua frente guiava-te para lá, pra fora dela.
Ó tu espírito errante, o mais errante! Como elas todas
moram no poema quente, agasalhadas, e ficam
longamente na comparação estreita. Partícipes. Só tu
vagueias como a Lua. E em baixo aclara-se e escurece
a tua paisagem nocturna, santamente assustada,
que tu sentes em despedidas. Ninguém
a deu mais sublimemente, a restituiu ao Todo
mais inteira, menos pobre. Assim também
brincaste teu jogo santo por anos já não contados
com a infinita ventura, como se ela não fosse interior, mas jazesse
por aí, pertença de ninguém, na macia
relva da Terra, abandonada por crianças divinas.
Ai, o por que os Altíssimos anseiam, puseste-o tu, sem desejo,
pedra sobre pedra: e ficou. Mas mesmo a sua queda
te não perturbaria.
Se um tal, eterno, houve um dia, porque é que nós
desconfiamos ainda do terrestre? em vez de no transitório
seriamente aprender os sentimentos de qualquer
inclinação, futura no espaço?
(Irschenhausen, Setembro de 1914)
Rainer Maria Rilke
in Friedrich Hölderlin. Poemas. Prefácio, Selecção e trad. Paulo Quintela. Relógio D' Água, Lisboa, 1991, p. 9
[...]vós que dormis, 'stais-me acordados cá dentro do peito,
Na alma parente repousa a vossa imagem que foge.
E mais vivos viveis vós ali, onde a alegria do espírito
Divino a todos os que envelhecem, a todos os mortos rejuvenesce.
Friedrich Hölderlin. Poemas. Prefácio, Selecção e trad. Paulo Quintela. Relógio D' Água, Lisboa, 1991.
Na alma parente repousa a vossa imagem que foge.
E mais vivos viveis vós ali, onde a alegria do espírito
Divino a todos os que envelhecem, a todos os mortos rejuvenesce.
Friedrich Hölderlin. Poemas. Prefácio, Selecção e trad. Paulo Quintela. Relógio D' Água, Lisboa, 1991.
Por fim calou-se, a infeliz. Creio ouvir no silêncio
a sua razão,
tão vulnerável no seu furor, tão injustamente
tratada,
com os seus amargos cabelos lançados para os
ombros como a erva dos túmulos,
emparedada na sua acanhada visão da justiça.
Adormeceu talvez,
sonha possivelmente com um lugar inocente, com
animais simples,
casas caiadas de branco cheias com os belos aromas
do pão fresco e das rosas.
Recordo agora - não sei porquê - aquela vaca
que vimos no crepúsculo, num campo da Ática -
lembras-te?
Estava ali, separada da charrua, olhava para o
longe
e com os vapores das narinas embaciadas
o pôr do Sol, púrpura, violeta, dourado; muda e
ferida
nos flancos e no dorso, sob o peso do jugo,
tinha conhecido talvez a negação, a submissão,
a intransigência e a hostilidade, tudo junto.
Sustentava entre os dois cornos
a mais pesada parte do céu, como uma coroa.
Depois
baixou a testa, bebeu a água do regato
lambendo com a língua sangrenta essa outra
língua
fresca da sua imagem de água, como se lambesse
longa e serenamente, maternalmente, inevitavel-
mente,
do exterior a sua ferida interna, como se lambesse
a silenciosa, a grande, a redonda ferida do mundo;
- mata talvez a sede -
só talvez o nosso sangue nos mata a sede - quem
sabe?
Depois ergueu a cabeça da água sem tocar em
nada,
ela própria intacta e calma como um santo;
apenas
entre as suas duas patas enraizadas na ribeira
um pequeno lago de sangue caído dos lábios, man-
tinha-se, mudava de forma,
um lago vermelho que se assemelhava a um postal
e pouco a pouco se alargava e dissolvia; desa-
parecia
como se todo o sangue passasse para uma veia
invisível do mundo,
muito longe, liberto, fácil; por isso
se mantinha calma; como se tivesse sabido
que o nosso sangue não se perde,
nada, nada se perde neste grande nada,
este inconsolável, este impiedoso, este incompa-
rável,
tão doce, tão consolador, tão nada.
Yannis Ritsos. poemas. Selecção e Trad. de Egito Gonçalves. Prefácio de Carlos Porto. 1ª ed. Fevereiro, 1984. Editora Limiar., p.74/75/76
a sua razão,
tão vulnerável no seu furor, tão injustamente
tratada,
com os seus amargos cabelos lançados para os
ombros como a erva dos túmulos,
emparedada na sua acanhada visão da justiça.
Adormeceu talvez,
sonha possivelmente com um lugar inocente, com
animais simples,
casas caiadas de branco cheias com os belos aromas
do pão fresco e das rosas.
Recordo agora - não sei porquê - aquela vaca
que vimos no crepúsculo, num campo da Ática -
lembras-te?
Estava ali, separada da charrua, olhava para o
longe
e com os vapores das narinas embaciadas
o pôr do Sol, púrpura, violeta, dourado; muda e
ferida
nos flancos e no dorso, sob o peso do jugo,
tinha conhecido talvez a negação, a submissão,
a intransigência e a hostilidade, tudo junto.
Sustentava entre os dois cornos
a mais pesada parte do céu, como uma coroa.
Depois
baixou a testa, bebeu a água do regato
lambendo com a língua sangrenta essa outra
língua
fresca da sua imagem de água, como se lambesse
longa e serenamente, maternalmente, inevitavel-
mente,
do exterior a sua ferida interna, como se lambesse
a silenciosa, a grande, a redonda ferida do mundo;
- mata talvez a sede -
só talvez o nosso sangue nos mata a sede - quem
sabe?
Depois ergueu a cabeça da água sem tocar em
nada,
ela própria intacta e calma como um santo;
apenas
entre as suas duas patas enraizadas na ribeira
um pequeno lago de sangue caído dos lábios, man-
tinha-se, mudava de forma,
um lago vermelho que se assemelhava a um postal
e pouco a pouco se alargava e dissolvia; desa-
parecia
como se todo o sangue passasse para uma veia
invisível do mundo,
muito longe, liberto, fácil; por isso
se mantinha calma; como se tivesse sabido
que o nosso sangue não se perde,
nada, nada se perde neste grande nada,
este inconsolável, este impiedoso, este incompa-
rável,
tão doce, tão consolador, tão nada.
Yannis Ritsos. poemas. Selecção e Trad. de Egito Gonçalves. Prefácio de Carlos Porto. 1ª ed. Fevereiro, 1984. Editora Limiar., p.74/75/76