quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

   «Não consigo perceber porque é que a Serpentina se lembraria de passar o rio, quando sabia perfeitamente que não era o mesmo rio que ela conhecia de todos os dias. Nunca vi a Serpentina tão atarantada. O mais certo é ter vindo ainda a dormir para se deixar matar assim sem mais nem menos. A mim muitas vezes tocou-me acordá-la quando lhe abria a porta do curral, porque senão, por vontade dela, ali estaria o dia inteiro com os olhos fechados, bem quieta e suspirando, como se ouvem suspirar as vacas quando dormem.
    E aqui deve ter acontecido isso, adormeceu. Talvez se tenha lembrado de acordar ao sentir que aquela água pesada lhe batia nas costelas. Talvez então se tenha assustado e tenha tentado regressar; mas ao virar-se encontrou-se entressachada e inteiriçada entre aquela água negra e dura como terra corrediça. Talvez tenha bramado pedindo que a ajudassem.
    Bramou só Deus sabe como.»



Juan Rulfo. O Llano em chamas in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 164/5

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