sábado, 31 de dezembro de 2011
couraçado
adjectivo
1. | revestido de couraça |
2. | figurado protegido |
3. | figurado endurecido |
4. | figurado que não se deixa comover; endurecido |
quarta-feira, 28 de dezembro de 2011
«Perante o seu olhar, de onde a minha própria alma parecia contemplar-me, toda a verdade se desmoronou, mesmo a verdade do desejo carnal que tinha por ela. Enfeitiçados, olhavamo-nos; a minha alma pobre e pequena olhava-me.»
Hermann Hesse. O Lobo das Estepes. Tradução de Sara Seruya. Edições Afrontamento. 3.ª edição., p. 179
terça-feira, 27 de dezembro de 2011
Razão tem-la tu toda, Lobo das Estepes
«Razão tem-la tu toda, Lobo das Estepes, mil vezes razão, mas mesmo assim tens de desaparecer. És demasiado exigente e esfomeado para um mundo como o de hoje, simples, cómodo e contente com tão pouco, é esse mundo que te vomita para fora, tens para ele uma dimensão a mais.»
Hermann Hesse. O Lobo das
Estepes. Tradução de Sara Seruya. Edições Afrontamento. 3.ª edição., p. 156/7
«Tenho sede de um sofrimento que me dê disposição e vontade de morrer»
Hermann Hesse. O Lobo das Estepes. Tradução de Sara
Seruya. Edições Afrontamento. 3.ª edição., p. 155
segunda-feira, 26 de dezembro de 2011
«De um momento para o outro ressurgiam coisas que me tocavam de perto, em que eu podia pensar com alegria, preocupação, excitação! De um momento para o outro abria-se uma porta através da qual a vida irrompia e vinha até mim! Talvez eu pudesse voltar a viver, talvez pudesse voltar a ser um homem...A minha alma, entorpecida pelo frio, quase gelada, voltava a respirar, batia sonolenta, as suas asas miúdas e débeis.»
Hermann Hesse. O Lobo das Estepes. Tradução de Sara Seruya. Edições Afrontamento. 3.ª edição., p. 107
«A estrela choveu rosa no coração da tua escuta,
O infinito rolou alvo no teu corpo, da nuca aos rins,
O mar orvalhou ruivo os teus seios de rubro cobre
E o homem sangrou negro no teu flanco sem fim.»
Arthur Rimbaud. O Rapaz Raro. Iluminações e poemas. Tradução de Maria Gabriela Llansol. Relógio D' água, Lisboa, 1998., p. 207
O infinito rolou alvo no teu corpo, da nuca aos rins,
O mar orvalhou ruivo os teus seios de rubro cobre
E o homem sangrou negro no teu flanco sem fim.»
Arthur Rimbaud. O Rapaz Raro. Iluminações e poemas. Tradução de Maria Gabriela Llansol. Relógio D' água, Lisboa, 1998., p. 207
domingo, 11 de dezembro de 2011
ORAÇÃO DA NOITE
«Vivo sentado, como um anjo nas mãos de um barbeiro,
Empunhando uma caneca de estrias profundas,
Com o hipogastro e o colarinho arqueados, um gambier
Entre dentes, numa atmosfera prenhe de impalpáveis veleiros.
Como se fossem excrementos quentes de um velho pombal,
Mil Sonhos cavam em mim doces queimaduras:
Logo depois o meu coração triste fica como um alburno
Que o ouro jovem e sombrio das cores ensanguenta.
Em seguida, quando já engoli meus sonhos cuidadosamente,
Volto-me, com trinta ou quarenta cervejas no papo,
E concentro-me para fazer as minhas necessidades ásperas:
Doce como o Senhor do cedro e do hissopo,
mijo para os céus castanhos, muito alto e muito longe,
com a concordância dos grandes heliotrópios.»
Arthur Rimbaud. O Rapaz Raro. Iluminações e poemas. Tradução de Maria Gabriela Llansol. Relógio D' água, Lisboa, 1998., p. 183
Empunhando uma caneca de estrias profundas,
Com o hipogastro e o colarinho arqueados, um gambier
Entre dentes, numa atmosfera prenhe de impalpáveis veleiros.
Como se fossem excrementos quentes de um velho pombal,
Mil Sonhos cavam em mim doces queimaduras:
Logo depois o meu coração triste fica como um alburno
Que o ouro jovem e sombrio das cores ensanguenta.
Em seguida, quando já engoli meus sonhos cuidadosamente,
Volto-me, com trinta ou quarenta cervejas no papo,
E concentro-me para fazer as minhas necessidades ásperas:
Doce como o Senhor do cedro e do hissopo,
mijo para os céus castanhos, muito alto e muito longe,
com a concordância dos grandes heliotrópios.»
Arthur Rimbaud. O Rapaz Raro. Iluminações e poemas. Tradução de Maria Gabriela Llansol. Relógio D' água, Lisboa, 1998., p. 183
O QUE DORMIA NO VALE
É uma cova de verdura onde canta uma ribeira
Prendendo loucamente às ervas farrapos
De prata; nele brilha o sol, do alto da montanha
Orgulhosa: é um pequeno valado que espuma farpas.
Um soldado jovem, de boca aberta, cabeça nua,
E a nuca mergulhando nos frescos agriões azuis,
Dorme; está estendido na relva, a céu aberto,
Pálido no seu leito verde onde chove a luz.
Com os pés nos gladíolos, dorme. Sorrindo como
Sorriria uma criança doente, dorme um sono:
Natura, embala-o junto ao peito: ele está com frio.
Não há perfume que faça estremecer suas narinas;
Dorme ao sol, a mão sobre o peito
Tranquilo. No seu lado direito, tem dois buracos vermelhos.
Arthur Rimbaud. O Rapaz Raro. Iluminações e poemas. Tradução de Maria Gabriela Llansol. Relógio D' água, Lisboa, 1998., p. 173
Prendendo loucamente às ervas farrapos
De prata; nele brilha o sol, do alto da montanha
Orgulhosa: é um pequeno valado que espuma farpas.
Um soldado jovem, de boca aberta, cabeça nua,
E a nuca mergulhando nos frescos agriões azuis,
Dorme; está estendido na relva, a céu aberto,
Pálido no seu leito verde onde chove a luz.
Com os pés nos gladíolos, dorme. Sorrindo como
Sorriria uma criança doente, dorme um sono:
Natura, embala-o junto ao peito: ele está com frio.
Não há perfume que faça estremecer suas narinas;
Dorme ao sol, a mão sobre o peito
Tranquilo. No seu lado direito, tem dois buracos vermelhos.
Outubro de 1870.
Arthur Rimbaud. O Rapaz Raro. Iluminações e poemas. Tradução de Maria Gabriela Llansol. Relógio D' água, Lisboa, 1998., p. 173
«Falaria contigo na tua própria boca»
«Falaria contigo na tua própria boca:
Caminharia, apertando-te
O corpo como uma criança que se deita,
Louco com o sangue
Que corre, azul, sob a tua pele branca
Rosácea:
E falando-te com a língua livre....
Ora!...tu sabes como é...»
Arthur Rimbaud. O Rapaz Raro. Iluminações e poemas. Tradução de Maria Gabriela Llansol. Relógio D' água, Lisboa, 1998., p. 155-157
Caminharia, apertando-te
O corpo como uma criança que se deita,
Louco com o sangue
Que corre, azul, sob a tua pele branca
Rosácea:
E falando-te com a língua livre....
Ora!...tu sabes como é...»
Arthur Rimbaud. O Rapaz Raro. Iluminações e poemas. Tradução de Maria Gabriela Llansol. Relógio D' água, Lisboa, 1998., p. 155-157
(...)
«Quanto a mim, desleixado como um estudante à sombra
Dos castanheiros, não tiro os olhos das miúdas de olho vivo:
Sabem-no elas tão bem; e voltam para mim, rindo,
Aqueles olhos transbordantes de coisas indiscretas.
Deixo-me estar calado; não paro de olhar continuamente
Aqueles pescoços brancos bordados de madeixas loucas:
Sigo, sob o corpete e os frágeis atavios, a divina
Colina que desponta a seguir à curva dos ombros redondos.
Não tarda nada, já descobri onde se esconde a botina, a meia...
-Reconstruo-lhes o corpo, ateado por uma febre das antigas.
Elas acham-me graça, e entrefalam-se baixinho...
E meus desejos brutais agarram-se aos lábios delas...»
Arthur Rimbaud. O Rapaz Raro. Iluminações e poemas. Tradução de Maria Gabriela Llansol. Redógio D' água, Lisboa, 1998., p. 145
«Quanto a mim, desleixado como um estudante à sombra
Dos castanheiros, não tiro os olhos das miúdas de olho vivo:
Sabem-no elas tão bem; e voltam para mim, rindo,
Aqueles olhos transbordantes de coisas indiscretas.
Deixo-me estar calado; não paro de olhar continuamente
Aqueles pescoços brancos bordados de madeixas loucas:
Sigo, sob o corpete e os frágeis atavios, a divina
Colina que desponta a seguir à curva dos ombros redondos.
Não tarda nada, já descobri onde se esconde a botina, a meia...
-Reconstruo-lhes o corpo, ateado por uma febre das antigas.
Elas acham-me graça, e entrefalam-se baixinho...
E meus desejos brutais agarram-se aos lábios delas...»
Arthur Rimbaud. O Rapaz Raro. Iluminações e poemas. Tradução de Maria Gabriela Llansol. Redógio D' água, Lisboa, 1998., p. 145
«Doença do espírito - do eu - o desespero pode, enquanto tal,
tomar três formas: o desespero inconsciente de ter um eu
- o que é um verdadeiro desespero - ;
o desesperado que não quer, e o
desesperado que quer ser ele próprio.»
Kierkegaard. Desespero A Doença Mortal. Tradução de Ana keil. RÉS-Editora, Porto, p. 11
«Porque será que os espíritos que já não admitem quaisquer valores persistem em levantar, pelo seu lado, exigências? Alimentam-se do facto de um dia terem existido deuses, pais, poetas. A existência das palavras dilui-se em títulos ocos.
Há no reino animal parasitas que pela calada desenterram uma lagarta. Por fim, apenas se esgueira para fora do ovo uma vespa, no lugar da borboleta. Assim manuseiam eles a herança, e sobretudo a língua, falsários de moedas como são; é por isso que prefiro casbah, mesmo atrás do balcão do bar.»
Ernst Jünger. Eumeswil. Tradução de Sara Seruka com a colaboração de João Barrento para a Tradução dos Poemas. Editora Ulisseia., p. 60/1
Há no reino animal parasitas que pela calada desenterram uma lagarta. Por fim, apenas se esgueira para fora do ovo uma vespa, no lugar da borboleta. Assim manuseiam eles a herança, e sobretudo a língua, falsários de moedas como são; é por isso que prefiro casbah, mesmo atrás do balcão do bar.»
Ernst Jünger. Eumeswil. Tradução de Sara Seruka com a colaboração de João Barrento para a Tradução dos Poemas. Editora Ulisseia., p. 60/1
segunda-feira, 5 de dezembro de 2011
o sentimentalismo vergava-o, contra a sua vontade
« (...), mas saboreei, como um cão esfaimado, a migalha de calor, o gole de afeição, o naco de apreço. Enternecido, o Lobo das Estepes, Harry, mostrava os dentes num sorriso, escorrendo-lhe a baba pela goela ressequida; o sentimentalismo vergava-o, contra a sua vontade.»
Hermann Hesse. O Lobo das Estepes. Tradução de Sara Seruya. Edições Afrontamento. 3.ª edição., p. 81
«Como se tinha apoderado de mim, assim tão lenta e sorrateiramente, aquela paralisia, aquele ódio contra mim e contra todos, aquele bloqueamento de todos os sentimentos, aquele humor agreste profundo e despeitoso, aquele antro de imundície do coração esvaziado e do desespero?»
Hermann Hesse. O Lobo das Estepes. Tradução de Sara Seruya. Edições Afrontamento. 3.ª edição., p. 80
QUADROS
«A antiga Comédia continua as suas afinações, e reparte os seis Idílios.
Avenidas de palcos.
Um longo dique em madeira, de uma ponta a outra de um campo pedregoso, onde a multidão incivilizada se passeia sob as árvores nuas.
Em corredores de gaze negra, seguindo o ritmo dos passeantes, ornados de lanternas e de folhas.
Aves dos mistérios descem a pique sobre um pontão de alvenaria movido pelo arquipélago atulhado pelas embarcações dos espectadores.
Cenas líricas acompanhadas a flauta e tambor debruçam-se em recantos arranjados sob os tectos, em redor dos salões de clubes modernos, ou das salas do antigo Oriente.
O maravilhoso manobra no topo de um anfiteatro coroado de sebes - ou se agita e sintoniza com os Beócios, à sombra do arvoredo que se mexe à esquina das culturas.
A ópera-cómica refracta-se sobre um palco no ponto de intersecção de dez separadores montados entre a geral e a rampa.»
Arthur Rimbaud. O Rapaz Raro. Iluminações e poemas. Tradução de Maria Gabriela Llansol. Relógio D' água, Lisboa, 1998., p. 117
domingo, 4 de dezembro de 2011
(...)
«Ri-me para a queda da água que, por entre os pinheiros, desgrenhava a sua cabeleira loura: pela crina prateada, reconheci a deusa.
Então, um a um, levantei os véus. Na alameda, agitando os braços. Pela planície, onde a denunciei ao galo. Na grande cidade, a deusa fugia através de cúpulas e campanários e, correndo no cais de mármore como um mendigo, fui atrás dela.
Ao cimo da estrada, perto da mata de loureiros, cobria com os seus véus arrebanhados a esmo, e senti, ao de leve, o seu corpo imenso. A madrugada e a criança caíram aos pés do bosque.
Ao despertar, era meio-dia.»
Arthur Rimbaud. O Rapaz Raro. Iluminações e poemas. Tradução de Maria Gabriela Llansol. Redógio D' água, Lisboa, 1998., p. 89
pusilânime
1. Excessivamente tímido.
2. Que não tem coragem para reagir.
3. Que dá indícios de pusilanimidade.
4. Aquele que tem fraqueza de ânimo ou cobardia.
Esse Lobo das Estepes tinha de morrer...
«Esse Lobo das Estepes tinha de morrer, tinha de pôr termo, pela sua própria mão, à sua odiosa existência - ou então, fundido no fogo mortal de uma renovada inspecção a si próprio, transformar-se, arrancar a máscara e recriar um novo eu. Ah! Este processo não era novo nem desconhecido, conhecia-o bem, já várias vezes o experimentara nos estádios de supremo desespero.»
Hermann Hesse. O Lobo das Estepes. Tradução de Sara Seruya. Edições Afrontamento. 3.ª edição., p. 73
ulular
(latim ululo, -are, uivar)
1. Soltar voz triste e lamentosa.
2. Uivar; ganir.
3. [Figurado] [Figurado] Gritar aflitivamente; queixar-se, gritando.
4. Exprimir, gritando lamentosamente. = VOCIFERAR
5. Ululação, uivo.
«No entanto, no cúmulo da felicidade alcançada, Harry apercebeu-se subitamente de que a sua liberdade era uma morte, que estava sozinho, que o mundo o deixava sinistramente em paz, que ele próprio já não ligava nada às pessoas, aliás nem tão pouco a si próprio, que lentamente ia asfixiando numa atmosfera cada vez mais rarefeita de vedação e isolamento.»
Hermann Hesse. O Lobo das Estepes. Tradução de Sara Seruya. Edições Afrontamento. 3.ª edição., p. 53
sábado, 3 de dezembro de 2011
sexta-feira, 2 de dezembro de 2011
Uma das características do Lobo das Estepes era ser um homem nocturno.
«Uma das características do Lobo das Estepes era ser um homem nocturno. Para ele a manhã era a pior hora do dia. receava-a e dela nunca lhe adviera nada de bom. Jamais, em manhã alguma da sua vida, estivera propriamente bem disposto, jamais, em hora alguma antes do meio dia, fizera qualquer coisa de bom ou tivera algum bom pensamento, jamais conseguira propiciar alegria a si próprio e a outros. Só com o decorrer da tarde ia lentamente aquecendo e animando, e fecundo, vivo, ocasionalmente ardente e jovial.»
Hermann Hesse. O Lobo das Estepes. Tradução de Sara Seruya. Edições Afrontamento. 3.ª edição., p. 51/2
Vieram-me então à memória os anos esquecidos da juventude...
«Vieram-me então à memória os anos esquecidos da juventude - como amava então essas noites sombrias e pesadas de outono e inverno tardio, e com que sofreguidão e embriaguês absorvia as impressões de solidão e melancolia!»
Hermann Hesse. O Lobo das Estepes. Tradução de Sara Seruya. Edições Afrontamento. 3.ª edição., p. 35
quinta-feira, 1 de dezembro de 2011
Este manuscrito
«Representa textualmente uma viagem através do inferno, viagem ora amedrontada, ora destemida, através do caos de um mundo espiritual obscurecido, empreendida com a firme determinação de cruzar o inferno de lés-a-lés, de oferecer o flanco ao caos, de suportar o mal até ao fim.»
Hermann Hesse. O Lobo das Estepes. Tradução de Sara Seruya. Edições Afrontamento. 3.ª edição., p. 27
lucubração
nome feminino
1. | trabalho intelectual nas horas destinadas ao repouso; serão; vigília |
2. | meditação profunda |
(Do latim lucubratiōne-, «idem»)
«Não, estou convencido que não se suicidou. Ainda está vivo, arrastando algures as pernas cansadas para subir ou descer as escadas de casas em nada suas, fixando algures, deliciado, soalhos de parqué com lustro puxado e araucácias impecavelmente cuidadas, passando os dias nas bibliotecas e as noites nas cervejarias ou preguiçando nalgum divã alugado, sentindo pulsar para lá dos vidros o mundo e as pessoas, sabendo-se excluído - mas não se mata, porque um rasto de fé lhe diz que tem de beber até à última gota aquele cálice, aquela amaldiçoada dor que tem no coração, e que é esse sofrimento que tem de lhe dar a morte.»
Hermann Hesse. O Lobo das Estepes. Tradução de Sara Seruya. Edições Afrontamento. 3.ª edição., p. 26
«Em vez de lhe aniquilarem a personalidade, apenas tinham conseguido ensiná-lo a odiar-se a si próprio.»
«Desde então e para toda a vida, era contra si próprio, contra esse objecto inocente e nobre que dirigia toda a genialidade da sua imaginação, toda a força da sua faculdade de pensamento, Pois ao desencadear antes de tudo e acima de tudo contra si próprio toda a acerbidade, todas as críticas, violências e repudiações de que se servia, era Cristo de pessoa inteira, era mártir de pessoa inteira. No que respeitava aos outros, ao mundo circundante, continuamente se esforçava, em luta das mais heróicas e sérias, por amá-los, fazer-lhes justiça, não lhes fazer mal, pois o ''amor ao próximo'' estava tão profundamente cravado nele como o ódio a si próprio; e assim toda a sua vida era um exemplo de que sem amor a si próprio também o amor ao próximo é impossível, que o ódio a si próprio é exactamente a mesma coisa que o egoísmo nu e cru, e acaba por gerar o mesmo sinistro isolamento, o mesmo desespero.»
Hermann Hesse. O Lobo das Estepes. Tradução de Sara Seruya. Edições Afrontamento. 3.ª edição., p. 17
«Apercebi-me de que Haller era um génio do sofrimento e que, no sentido de várias afirmações de Nietzsche, acumulara em si uma capacidade de sofrimento genial, ilimitada e terrível. Ao mesmo tempo reconheci que a base do seu pessimismo não era o desprezo pelo mundo mas sim o desprezo por si próprio pois, por impiedosa e destrutiva que fosse a crítica de pessoas ou instituições, nunca se excluía a si próprio de tal tratamento, e era contra si próprio que em primeiro lugar apontava a sua flecha, era a si próprio que antes de tudo odiava e reprovava.»
Hermann Hesse. O Lobo das Estepes. Tradução de Sara Seruya. Edições Afrontamento. 3.ª edição., p. 16
Harry Haller
«(...), e nas coisas do espírito mostrava a objectividade quase gelada, o sólido pensamento e o firme saber só próprio dos que são verdadeiramente intelectuais, despidos de toda a ambição, e jamais apostados em brilhar, persuadir ou ter a última palavra.»
Hermann Hesse. O Lobo das Estepes. Tradução de Sara Seruya. Edições Afrontamento. 3.ª edição., p. 14
«Nasci em finais de época moderna, pouco antes de iniciar-se o retorno à Idade Média, sob o signo de Sagitário e a benévola influência de Mercúrio. O meu nascimento teve lugar num quente dia de Julho, à primeira hora do crepúsculo, e toda a vida gostei, e desejei inconscientemente, a temperatura daquela hora. Chorei-a dolorosamente quando me faltou. Nunca pude viver em países frios, e todas as viagens que fiz da minha livre vontade foram em direcção ao Sul.»
Hermann Hesse em 1972, época em que foi publicado O LOBO DAS ESTEPES
CIDADES (II)
«Isto são cidades! Uma gente para quem foi produzido o espectáculo desses Apalaches e Líbanos de sonho. Chalés de cristal e de madeira que se deslocavam sobre linhas férreas e roldanas invisíveis. As velhas crateras, cingidas de colossos e palmeiras de cobre, rugem melodiosamente nas fornalhas. Festins de amor ressoam sobre canais suspensos nas traseiras dos chalés. Um mecanismo de carrilhões brada nas gargantas. Corporações de cantores gigantes acorrem em tranjos e auriflamas tão deslumbrantes como a luz dos cimos. Sobre plataformas, no meio dos abismos, Rolandos proclamam a sua bravura. Nas pontes suspensas sobre o precipício e nos telhados de retiros erótico-gastronómicos, a ardência do céu embandeira em arco. O desabar das apoteoses regressa às regiões celestes onde seráficas fêmeas de centauros dançam entre as avalanchas. Para lá das mais altas cristas, um mar revolto, carregado de frotas orfeónicas e do rumor das pérolas e dos búzios preciosos, perturba-se com o eterno nascimento de Vénus -, por vezes, o mar atravessa momentos sombrios com um mortal estrépido. Pelas encostas, bramem colheitas de flores, grandes como as nossas armas e as nossas taças. Das ravonas, emergem cortejos de Mabs vestidas de ruivo, de opalino. Lá no alto, com as patas metidas entre cascatas e silvas, os veados mamam em Diana. As Bacantes da periferia soluçam, enquando a lua incendiada uiva. Vénus penetra nas caveras dos ferreiros e dos eremitas. Campanários em bandos cantam os ideários dos povos. De castelos feitos d'ossos, exala-se a melodia desconhecida. Entram em evolução todas as lendas e ímpetos do entusiasmo saem desalmados às ruas da cidade. Soçobra o paraíso das tempestades. Os selvagens, ininterruptos, dançam a festa da noite. E, por uma hora, misturei-me ao bulício de um bulevar de Bagdad onde vários bandos cantaram a alegria do trabalho do novo, debaixo de uma brisa densa, circulando sem conseguir fingir que não viam os fantasmas fabulosos dos montes onde nós devíamos encontrar.
Que braços aprazíveis, que feliz hora me voltarão a dar esse mundo de onde me vêm os sonos e todos os movimentos, mesmo os imperceptíveis?»
Arthur Rimbaud. O Rapaz Raro. Iluminações e poemas. Tradução de Maria Gabriela Llansol. Redógio D' água, Lisboa, 1998., p. 73/5
euménide
nome feminino
1. | MITOLOGIA cada uma das três Fúrias que, segundo a mitologia, atormentavam as almas dos condenados no Inferno |
2. | figurado remorso;
pungir da
consciência |
(Do grego Eumenídes, «Euménides», pelo latim
Eumenĭdes, «idem»)
(...) «Temos fé no veneno. Sabemos dar todos os dias a nossa vida por inteiro.
Eis chegado o tempo dos fumadores de haschisch.*»
*Traduzido literalmente, dos assassinos. (N.T.)
Arthur Rimbaud. O Rapaz Raro. Iluminações e poemas. Tradução de Maria Gabriela Llansol. Redógio D' água, Lisboa, 1998., p. 59
Eis chegado o tempo dos fumadores de haschisch.*»
*Traduzido literalmente, dos assassinos. (N.T.)
Arthur Rimbaud. O Rapaz Raro. Iluminações e poemas. Tradução de Maria Gabriela Llansol. Redógio D' água, Lisboa, 1998., p. 59
VIDAS
I
III
Arthur Rimbaud. O Rapaz Raro. Iluminações e poemas. Tradução de Maria Gabriela Llansol. Redógio D' água, Lisboa, 1998., p. 49/51
Oh!, as extensas áleas da terra sagrada, as esplanadas do templo! Que destino deram ao brâmane que me explicou os Provérbios? De então, e desse país, revejo ainda tudo, as velhas, inclusive! Recordo-me das horas de prata e de sol a declinar para os rios, a mão dos campos pousando-se-me sobre os ombros, e das nossas carícias, de pé, nas planícies salgadas. - Uma revoada de pombas escarlates brada em volta do meu pensamento. - Exilado aqui, dispus de um palco onde representar as obras-primas dramáticas de todas as literaturas. Sublinharia, só para vós, essas riquezas inesquecíveis. Atento na história dos tesouros que haveis encontrado. Prevejo já a sequência e a consequência! A minha sabedoria é tão desprezada como o caos. O que é o meu nada comparado com a estupefacção que vos espera?
II
Sou o inventor em que nada desmereço, antes pelo contrário, de quantos me precederam; inclusivamente de um músico que tivesse encontrado a clave do amor. Agora, que sou morgado de terras ácidas sobre um céu parco, tento emocionar-me com a lembrança de uma infância de mendigo, dos anos de aprendizagem ou da chegada em tamancos, das discussões, das cinco ou seis vezes que enviuvei, e de algumas pândegas onde a minha cabeça de mula me impediu de vibrar em uníssono com os camaradas. Não me arrependo do quinhão que, em tempos, tive da alegria divina: a atmosfera frugal destas terras ácidas nutre intensamente o meu cepticismo atroz. Mas, como esse cepticismo não pode mais ser posto em prática, e dado ter-me entregue a uma nova inquietação - estou à espera de me tornar um louco particularmente maligno.
III
Num sótão onde fui trancado, tinha eu doze anos, fiquei a conhecer o mundo, ilustrei a comédia humana. Num celeiro aprendi a história. Numa qualquer festa nocturna, numa cidade do Norte, encontrei todas as mulheres dos pintores passados. Numa velha galeria de Paris, fui introduzido nas ciências clássicas. Numa mansão magnífica rodeado pelo Oriente inteiro, realizei uma imensa obra e passei uma reforma ilustre. Revolvi o meu sangue, de lés a lés. Foi-me reconhecida a missão que me cabia. É ponto assente, e do passado. Pertenço realmente ao mundo trespassado, chega de mandatos.
Arthur Rimbaud. O Rapaz Raro. Iluminações e poemas. Tradução de Maria Gabriela Llansol. Redógio D' água, Lisboa, 1998., p. 49/51
OSTENTAÇÃO
Cabeças ocas espadaúdas. Muitos deles exploram os vossos mundos. Frugais, e nada apressados em pôr a funcionar as suas brilhantes faculdades e a experiência que têm das vossas consciências. Que homens experientes que eles são! Olhos atónitos como noites de verão, vermelhos e negros, tricolores, olhos de aço picotados de estrelas d'oiro; rostos disformes, plúmbeos, pálidos, incendiados; rouquidões zombeteiras! O modo cruel de andar dos ouropéis! - Alguns são novos - , como encarariam eles Querubim? - dotados de vozes aterradoras e de alguns truques perigosos. São mandados pavonear-se pela cidade, com trapos de um luxo repugnante.
Oh, o mais violento Paraído do esgar colérico. Nada que se compare com os vossos faquires, e outras truanices cénicas. Em fatiotas improvisadas ao gosto do sonha mau, representam lamúrias, tragédias de malandrins e de etéreos semideuses, como a história ou as religiões jamais foram. Chineses, hotentotes, ciganos, néscios, hienas, Molochs, demências de antanho, demónios sinistros, misturam as rábulas populares, maternais, com as poses e as ternurices de besta. Interpretam novos trechos e canções inofensivas de raparigas. Mestres em prestigitação, transformam as pessoas e os sítios, sem esquecer a comédia hipnótica. Os olhos cospem chamas, o sangue canta, os ossos expandem-se, escorrem lágrimas e fios vermelhos. A chacota que fazem ou o terror que causam dura um minuto, ou meses inteiros.
Só eu tenho a cifra desse pavonear selvagem.
Arthur Rimbaud. O Rapaz Raro. Iluminações e poemas. Tradução de Maria Gabriela Llansol. Redógio D' água, Lisboa, 1998., p. 43