Quando a noite, esta manta branda,
negra, lisa manta de veludo
que estende uma gigantesca ama,
lentamente cobre a terra resguardada,
e tão cuidadosamente, que cada fio de erva
fique, direito, sob doce véu
e não curve a pétala das flores
e as duplas asas subtis das bordadas borboletas
não percam o esmalte de arco-íris
e assim descansem na sombra velada,
leve, liso, aveludado véu,
esse véu de quem nem sentem o peso:
então, por onde andes, no vasto mundo,
ou estejas em casa, sentado no quarto escuro e triste,
ou vejas, no café, admirado,
que acendem, um após outro, candeeiros de gás de luz solar;
ou, cansado, com teu cão na falda da colina
observes a preguiçosa lua entre as frondas;
ou pela estrada, que levantou pó,
teu cocheiro ensonado, cabeceando, te conduza;
ou tenhas vertigens no chão vacilante
do navio, ou no assento do comboio;
ou, errando através de uma cidade estrangeira,
pares nas esquinas para admirar, tranquilo,
o longo fio de ruas longínquas,
a dupla linha de ruas em chamas;
ou até em cidade aquática, no Riva,
onde um espelho opalino, estragado, pontilha chamas,
tenhas saudades do passado longínquo regressando,
cuja recordação docemente te tortura,
tempo ido que, qual imagem da
lâmpada encantada, está presente, mas não existe,
cuja recordação nunca pode ser fria,
cuja recordação é um peso, mas também um tesouro;
aí, tua espada cabeça de recordações
no chão de mármore possas inclinar:
entre puras belezas e em prazeres andando,
irás só ainda pensar, cobarde:
toda esta beleza para quê?
irás ainda pensar, órfão:
para quê a água de seda, o mármore multicolor?
para quê a noite, alada manta?
porquê as colinas e porquê as frondas,
e o mar, que ninguém semeia?
para quê os fluxos, para quê os refluxos,
e as nuvens, essas tristes Danaides,
e o sol, essa pedra de Sísifo escaldante?
para quê as recordações, para quê os passados?
porquê as lâmpadas e porquê as luas?
porque é que o tempo não mata o seu fim?
Ou toma exemplo do minúsculo fio de erva:
porque cresce a erva, se há-de secar?
porque seca, se cresce de novo?
Primavera de 1909
Babits Mihály in Antologia da Poesia Húngara. Selecção e tradução de Ernesto Rodrigues. Âncora, Lisboa, 2002., p. 144/5
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