Olhar o rio feito de tempo e água
E recordar que o tempo é outro rio,
Saber que nos perdemos como o rio
E que os rostos passam como a água.
Sentir que a vigília é outro sono
Que sonha não sonhar e que a morte
Que teme nossa carne é essa morte
De cada noite que se chama sono.
Ver no dia ou no ano um símbolo
Dos dias do homem e dos seus anos,
Converter o ultraje dos anos
Numa música, um rumor e um símbolo,
Ver na morte o sono, no ocaso
Um triste ouro, tal é a poesia
Que é imortal e pobre. A poesia
Volta como a aurora e o ocaso.
Às vezes pelas tardes uma cara
Nos olhos desde o fundo de um espelho;
A arte deve ser como esse espelho
Que nos revela a nossa própria cara.
Contam que Ulisses, farto de prodígios
Chorou de amor ao divisar sua Ítaca
Verde e humilde. A arte é essa Ítaca
De verde eternidade, não de prodígios.
Também é como o rio interminável
Que passa e fica e é cristal de um mesmo.
Heraclito inconstante, que é o mesmo.
E é ouro, como o rio interminável.
Jorge Luís Borges. O fazedor. Trad. de Miguel Tamen. Difel, Lisboa., p.119/120
postei este no orginal a vinte e nove de agosto, do corrente.
ResponderEliminaré bom saber a tradução de tamen na difel.