domingo, 11 de abril de 2010

campânulas

I
campânulas de vidro desenhado
sobre o vidro, de vidro

as mãos de vidro

e a infância,

(dentro das casas
de vidro os meus lábios)

o vento norte entre
a espada e a parede

e a mão entre a lavra da cal
e a doçura do silêncio

e, de vidro a boca pouca louca
para tanta água

de vidro sempre
a veia a pretexto do sangue/
do texto

o palimpsesto das mãos
enredadas no odor

no poema, isto é
, a pele à tangente do perfume
e os lábios postos
sobre, muros, a letra a lâmina

tão precisas na melodia

a voz tangida no leito da pedra

de vidro
o poeta, isto é

, ser um rio
e ver tudo a partir
do interior do sangue

e também depois o gesto de acompanhar as sebes
à transparência de um eco

hermes olhando os quintais
hermes caído sobre olhos de barro dos animais

todo o rubro desaire do epifonema, a canção


a boca sempre tão próxima do silêncio

(o lábio dedilhado o cume dos ulmeiros
em noites)


II
campânulas, os poemas, lentíssimas casas de ar
essa mínima raiz do inverno

transparente ciência infusa,
o gesto puro e simples de tocar
alguém com um nome, assim

e brilha também ao alto
o sangue a linfa a lava

nos coágulos silábicos do texto

enquanto na extremidade mais porosa da memória
um anjo estremece dentro da madeira

uma ave-campânula semeada em chão de página


é este todo o acto que obsidia, o acto
de circunscrever odores a precisão melódica

toda a sintaxe erguida
a partir

do mármore, do sal, da prata


ciência sonora do sangue

o fundo poder de adivinhar e dizer
por palavra

o eco dos olhos na pureza do leito

e gesto de respirar a prumo
o aprumo
dos nomes

quero as suas vogais de silêncio

o modo como são de vidro
quando tocados,

(como os teus lábios,- agora)

III
campânulas,
os nomes
o som que fazem,-
a face que dão

e como me comovem os dedos-

ao passar por elas adentro
todo o rumor do mundo, todo o mundo omisso
entre a lavrada terra funda
e a infundida leveza do verso,-pele a pele-

os nomes o oculto labor de adivinhar
por gesto

o oculto gesto de escrever
o eco dos olhos sobre o vidro

e, de vidro, depois, de vidro a música; / duvido
de vidro, duvido
que haja outra forma de cantar
senão com a mão funda dentro
do sangue
e o astro-lábio habilitado
à síncope melódica

não há outra forma

senão (com) a mão

lavrando campânulas sobre
o vidro eléctrico


IV
os (pro)nomes agora
como (?)

espelhos olhando espelhos
olhados olhos olhados a partir
do omisso centro das imagens

(porque) é uma confiança cega, o ritmo, o coração

é assim que se perde finalmente um rosto


e diz-se "a mão na pena vale a mão na charrua"

e senta-se (-se) assim, levíssimo, feito tão-só de ar,
num verão de amoreiras em torno do pensamento

(os pronomes, também o gesto
de te dar os meus lábios à distância
de um eco)

o gesto de te dar um nome sem nome

(o gesto de te dar o nome com te olho)

V

são gestos as palavras
(e como eu amo esses rostos de estanho)

os nomes, por eles

convoca-se incêndios em celeiros de amor
porque tudo é sempre devido àquele
que conheceu o mundo
e entrou solícito no leito do perfume

os nomes
escreve-se o leito do odor o peso da mão
o eco do rosto contíguo a muros
escreve-se e não se lamenta nenhum espelho

os nomes
atravessa-se sempre a água só de a respirar

e pensa-se em campânulas com o sangue do avesso


"do mundo", pensa-se em árvores semeadas
sobre a lavra do pó

pensa-se em poemas, em anjos cor de cedro
estremecendo, e acredita-se (sabe-se)
que tudo está sempre por fazer

acredita-se no puro movimento das palavras,
como se

incêndios de aves rodeassem

in-ter-mi-ten-te-mente
o tímpano


e, mente o tímpano que ouve a/à distância

"todo o anjo é terrível"

a mão no perímetro órfico

os nomes: todo o amor por fazer

e descobre-se subitamente que é preciso tão-só
plantar as coisas no vento: campânulas

para que o pássaro de boca do poema
possa sempre acompanhar a mão, os lábios
rumo à cega floração do sal

é no centro da mão que vejo nos nomes

a cegueira começando a florescer,
(mas não hermeneuicamente)


VI
campânulas os poemas assim escritos
no contágio de
lume ave âmbar ar
o movimento da boca nos nomes
o sucinto peso lúbrico

e depois o seráfico olhar dos nomes,
como se não fossem já

a boca já antes do gesto dentro
do leito da pedra

e, de vento os poemas: som, som, som
som, habilitado à travessia do odor


sim, corpos, gestos: o odor deslocado no sopro

mãos depois, mãos: o odor colhido nos leitos

sim, o poema começa sempre pela
abdicação dos olhos

vidro escrito sobre vidro,escrito
apesar de tudo e de nada

"no mundo"


VII
começa-se sempre por querer
sem saber

eco e narciso ( é a única verdadeira
história de amor)

(peito repetindo as ondas do mar)

o impossível

as mãos aflitas
sobre a roupa
(des)atentas ao perfume

a semente desatada no gesto de te tocar os olhos
por detrás do vidro
(os teus, que são tão belos)

e no poema, a louca lunação dos nomes
a boca sempre debruçada sobre o aroma

nunca houve outra forma
de escalar a infância
senão pelo som

(a forma como o ar oferece o seu corpo
hoc est enim corpus meum)

nunca houve outra palavra.



Luís Felício

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