domingo, 31 de janeiro de 2010

Bill Fay - Time Of The Last Persecution - 1971


I must stand by the side of the mountain
I must be where I know I must be
When you stand and face the gas masks and truncheons
You must know what it all really means

It is the time of the last persecution
And Caesar shall be raised
He will ask for his feet to be kissed by your sister
And your children will fear at his name

Do not avenge these deaths do not avenge them
You must know what it all really means
It is the time of the Anti-Christ know what I say
Make for your own secret place

And others will join you there
And you wait for the ships in the air
And you wait for a sign like a trumpet sounding
And you go out and walk to the Christ
And you go out and walk to the Christ

vídeo aqui

sábado, 30 de janeiro de 2010

Sabes que eu compreendo a carne mínima do mundo
Para poder expressá-lo.


Frederico García Lorca in Anjo & Duende. Trad. Aníbal Fernandes. Assírio & Alvim, 2007, pp 95 ;do poema Lua e Panorama dos Insectos (O poeta pede ajuda à Virgem).
Matei-a para não lhe dar um desgosto.


Max Aub Mohrenwitz in Crimes Exemplares. Trad. Jorge Lima Alves. Antígona, 2008

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Ontem, até à hora dos pássaros ficavas comigo
e todos os falcões são agora corvos!

Marina Tsvetáieva in Poetas Russos. Trad. Manuel Seabra. Relógio D'Água Editores, 1995., pp. 141
Escorreguei e caí, por causa de uma casca de laranja. Estava muita gente. Desataram todos a rir. Principalmente a vendedeira do lugar, que me agradava. Levou com a pedra em cheio, mesmo entre os olhos: sempre tive boa pontaria. Caiu com as quatro patas para o ar, com a flor à mostra.
Max Aub Mohrenwitz in Crimes Exemplares. Trad. Jorge Lima Alves. Antígona, 2008 (pp.103)

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010



Rita Nunes, 1997, curta-metragem Menos 9

Começou a mexer o café com leite com a colherzinha. O líquido quase transbordava, empurrado pelo movimento do utensílio de alumínio (o recipiente era vulgar, o sítio era ordinário e a colher estava gasta, viscosa de tanto ser usada). Ouvia-se o barulho do metal contra o vidro. Tim, tim, tim, tim. E o café com leite dava voltas e mais voltas, com uma cova no meio. Um maelstrom. E eu estava sentado mesmo em frente. O café estava à pinha. O homem continuava a mexer e a remexer, imóvel, e sorria ao olhar-me. Senti uma coisa subir por mim acima. Fitei-o de tal maneira que se sentiu na obrigação de se explicar:
-O açúcar ainda não se desfez todo.
Para mo provar, bateu com a colher várias vezes no fundo do copo. Recomeçou a mexer metodicamente a beberragem, com uma energia redobrada. Voltas e mais voltas, sem descanso, e o ruído da colher na borda do vidro. Trum, trum, trum. Incessante, incessante, sem descanso, eternamente. Voltas e mais voltas e mais voltas. E olhava para mim, sorrindo. Então puxei pela pistola e disparei.

Max Aub Mohrenwitz in Crimes Exemplares. Trad. Jorge Lima Alves. Antígona, 2008 (pp.24)

Quem pode dizer que não lhe caíram as asas? Acobardando-se até os virtuosos, que pretendem os que não alardeiam? Nunca estivemos tão perto desta terra que nos engolirá sem deixar da nossa passagem o mínimo rasto. Não deitemos as culpas para cima de ninguém; perdeu-se a semente, talvez devido ao mau tempo.

Max Aub Mohrenwitz, México, 1956
No ar deserto há uma dor de ausências
e nos meus olhos pessoas vestidas, sem nudez!


Frederico García Lorca in Anjo e Duende., (pp.77)

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

A Galinha (Conto para crianças malucas)

Havia uma menina que era idiota. Disse idiota. Mas ainda é pouco dizer idiota. Picava-lhe um mosquito e desatava a correr. Picava-lhe uma vespa e desatava a correr. Picava-lhe um morcego e desatava a correr.
Todas as galinhas temem as raposas. Mas esta galinha queria que elas a devorassem. E portanto a galinha era uma idiota. Não era uma galinha. Era uma idiota.
Nas noites de Inverno, a lua das aldeias dá grandes bofetadas às galinhas. Umas bofetadas que se ouvem nas ruas. Dá muita vontade de rir. Os padres nunca serão capazes de compreender o porquê destas bofetadas, mas Deus sim. E as galinhas também.
Todos vós precisais de saber que Deus é um grande monte VIVO. Tem uma pele de moscas, e por cima uma pele de vespas, e por cima uma pele de andorinhas, e por cima uma pele de lagartos, e por cima uma pele de lombrigas, e por cima uma pele de homens, e por cima uma pele de leopardos,e tudo. Tudo, estais a ver? Por conseguinte tudo, e além disso uma pele de galinhas. Era isto o que a nossa amiga não sabia.
Dá vontade de rir, repararmos como as galinhas são simpáticas! Todas têm crista. Todas têm cu. Todas põem ovos. O que dizeis a isto?
A galinha idiota odiava os ovos. Gostava de galos, é certo, como as mãos direitas das pessoas gostam das picadas das silvas ou da iniciação da alfinetada. Mas ela odiava o seu próprio ovo. No entanto, nada é mais bonito do que um ovo.
Recém-tirado das espigas, ainda quente, é a perfeição da boca, da pálpebra e do lóbulo da orelha. A face quente daquela que acaba de morrer. É o rosto. Não estais a compreender? Eu compreendo. Dizem-no os contos japoneses, e também o sabem algumas mulheres ignorantes.
Não quero defender a beleza sem defeito do ovo, mas como toda a gente louva a pulcritude do espelho e a alegria dos que se espojam na relva, bem está que eu defenda um ovo contra uma galinha idiota.
Vou dizê-lo: uma galinha amiga dos homens.
Uma noite, a lua estava a repartir bofetadas pelas galinhas. O mar e os telhados e as carvoeiras tinham uma luz idêntica. Uma luz onde o besouro teria sido atingido pelas flechas de toda a gente. Ninguém dormia. As galinhas não podiam mais. Tinham as cristas cheias de orvalho e os piolhos tocavam as suas campainhas eléctricas no intervalo das bofetadas.
Por fim um galo decidiu-se.
A galinha idiota defendia-se.
O galo dançou três vezes, mas os galos não sabem enfiar bem as agulhas.
Os sinos das torres tocaram porque tinham que tocar, e os canais de rega, e os corredores, e os que jogam golfe três vezes ficaram cor de amora e a tilintar. A luta começou.
Galo preparado. Galinha idiota. Galinha preparada. Galo idiota. Ambos preparados. Ambos idiotas. Galo preparado. Galinha idiota.
Lutavam. Lutavam. Lutavam. Toda a noite nisto. E dez. E vinte. E um ano. E dez. E sempre.


Frederico García Lorca in Anjo & Duende. Trad. Aníbal Fernandes. Assírio & Alvim, 2007, pp 52/53

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Goldfrapp: eat yourself




Eat yourself

If you don't eat yourself
No doubt the pain will instead
You could longer life
Seen it on this town

You went south on the train
She wore plastic boots for rain
And you crawl along exhausted
When you dream in tears, call on me

Who will I be when I'm with you again
Silver jet in the sky
You are the pain
Got a song, got to sing
For life

If you don't eat yourself
No doubt the pain will instead
If you don't eat yourself
You will explode instead

Cause I love and love you so
When I know you don't love me
You wanted life, stay alone
Get wicked, anymore

Who will I be when I'm with you again
Silver jet in the sky
You are the pain
Got a song, got to sing
For life

Degolação dos Inocentes


Tris trás. Zigue zague, rigue rague, milgue malgue. A pele era tão recente que saía íntegra. Crianças e nozes de casca recém-formada.
Os guerreiros tinham raízes milenárias e o céu cabeleiras embaladas pelo hálito dos anfíbios. Era preciso fechar as portas. Pepito. Manolito. Enriquito. Jaimito. Emilito.
Quando ficarem loucas, as mães hão-de querer construir uma fábrica de chapéus de pórfiro, mas com esta crueldade nunca poderão atenuar a ternura dos seus peitos derramados.
Os tapetes eram enrolados. O ferrão da abelha tornava possível o manejo de espada,
Era necessário o ranger de ossos e o rebentar dos açudes dos rios. Uma bacia e basta. Mas uma bacia que não se assume com o jacto interminável que há-de soar durante três dias.
Subiam às torres e desciam até aos búzios. Por fim, uma luz de clínica venceu a untosa luz do hospital. Já era possível operar com todas as garantias, Iodofórmio e violeta, algodão e prata de ouro mundo.Vão entrando! Há pessoas que se atiram das torres para os pátios e outras, desesperadas, que espetam tachas nos joelhos. A luz da manhã era cortante e o vento oleoso tornava possível a ferida menos esperada.
Jorgito. Alvarito. Guilhermito. Leopoldito. Julito. Joseíto. Luisito. Inocentes. O aço precisa de calores para criar as nebulosas, e lá vamos à incansável lâmina! É melhor ser medusa e flutuar, do que ser criança. Alegríssima degolação! Função lógica do sangue sem luz, que sangra as suas paredes.
Chegavam das ruas mais distantes. Todos os cães levavam um pezinho na boca. O pianista louca apanhava unhas rosadas para construir um piano sem emoção, e os rebanhos baliam com os pescoços partidos.
É preciso ter duzentos filhos e entregá-los à degolação. Só desta forma seria possível a autonomia do lírio silvestre.
Vinde! Vinde! Aqui está o meu filho tão macio, o meu filho de pescoço fácil. Poderás degolá-lo facilmente no patamar da escada.
Dizem que está a ser inventada a navalha eléctrica, para reanimar a operação.
Recordais-vos do rouxinol com as duas patas partidas? Estava entre os insectos criadores dos frémitos e das cuspidelas. Pontas de agulha. E teias de aranha sobre as constelações. Dá vontade de um verdadeiro riso pensarmos como a água está fria. Água fria nas areias, nos céus frios e nos dorsos de caimão. Aqui, nas ruas, corre o mais escondido, o mais saboroso, o que bate os dentes e faz empalidecer as unhas. Sangue. Com toda a força do seu g.
Se medirmos e estivermos cheios de piedade verdadeira, a degolação parecer-nos-á uma das grandes obras de misericórdia. Misericórdia do sangue cego que, seguindo a lei da sua natureza, quer desaguar no mar. Nem sequer houve uma voz. O chefe dos hebreus atravessou a praça para acalmar a multidão.
Às seis da tarde não restavam mais de seis meninos por degolar. Os relógios de areia continuavam a sangrar mas as feridas já estavam todas secas.
Já todo o sangue cristalizara quando as lanternas começaram a aparecer. Nunca haverá no mundo outra noite igual àquela. Noite de vidros e mãozinhas geladas.
Os seios enchiam-se de leito inútil.
O leite materno e a lua travaram a batalha dos mármores e lá deixava espetadas as suas últimas raízes enlouquecidas.


Frederico García Lorca in Anjo & Duende. Trad. Aníbal Fernandes. Assírio & Alvim, 2007, pp 38/40

História deste galo

«Na mesma manhã em que foi aprovado o projecto de abrir a Gran Vía, que tanto contribuiu para deformar o carácter dos actuais granadinos, don Alhambro morreu.
Quatro velas. Four candles.
Ninguém no seu enterro. Sim. As andorinhas. The Swallows. Uma pena.
A seguir ao enterro, o galo saiu pela janela e atirou-se ao perigo da rua e à má vida. Chegou a pedir esmola aos ingleses na Porta do Vinho, e fez-se amigo de dois anões que tocavam flauta e vendiam touros de doce. Um verdadeiro vadio. E depois desapareceu. » (pp.36)


Frederico García Lorca in Anjo e Duende. Trad. Aníbal Fernandes. Assírio&Alvim, 2007

Fatalidade

O rosto que mereces está sempre noutro espelho.


José Mário Silva in Efeito Borboleta e outras histórias. Oficina do Livro, 2008

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

A Aia

«Apenas os seus olhos, brilhantes e secos, se tinham erguido para aquele céu que, além das grades, se tingia de rosa e de ouro. Era lá, nesse céu fresco de madrugada, que estava agora o seu menino. Estava lá, e já o Sol se erguia, e era tarde, e o seu menino chorava decerto, e procurava o seu peito!...Então a ama sorriu e estendeu a mão. Todos seguiam, sem respirar, aquele lento mover da sua mão aberta. Que jóia maravilhosa, que fio de diamantes, que punhado de rubis, ia ela escolher?
A ama estendia a mão - e sobre um escabelo ao lado, entre um molho de armas, agarrou um punhal. Era um punhal de um velho rei, todo cravejado de esmeraldas, e que valia uma província.
Agarrada ao punhal, e com ele apertado fortemente na mão, apontando para o céu, onde subiam os primeiros raios de Sol, encarou a rainha, a multidão, e gritou:
-Salvei o meu príncipe - e agora vou dar de mamar ao meu filho!
E cravou o punhal no coração. (pp.162)

Eça de Queiroz in Contos. Edição «Livros do Brasil», Lisboa.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

«Desenhado com lâmpadas eléctricas, não custava nada lermos no escuro: Estação de São Lázaro.
São Lázaro nasceu muito pálido. Deitava um cheiro a ovelha molhada. Quando lhe davam açoites, lançava pela boca torrões de açúcar. Ouvia os menores ruídos. Uma vez confessou à mãe que podia, pelas batidas, contar de madrugada todos os corações que havia na aldeia.» (pp.27)


Frederico García Lorca in Anjo e Duende. Trad. Aníbal Fernandes. Assírio&Alvim, 2007

III Marânus, Eleonor e a Pastora

Vinda no brando zéfiro tremente,
Uma nuvem o sol escureceu.
E Eleonor, essa Deusa, novamente,
Diante de Marânus aparece.
Um crepúsculo terno diluía
A nitidez cortante das arestas.
E no cinzento azul que se ouvia
Brumoso som de arrefecidas lágrimas.
Era a sagrada luz, naquele instante
Em que se torna sombra; e, sem deixar
De alumiar os campos, já permite
O nascer das estrelas e o cantar
Dos pássaros sedentos de penumbra.

Era o sol, comovido, e extasiado,
No seio duma nuvem, radiando
Com um fulgor anímico e velado.

E Eleonor, tão alta e inacessível,
No seu divino encanto e formosura,
Emanava outra luz espiritual,
Que as pedras embebia de ternura...

E Marânus olhava para aquela
Aparição! Sonho encarnado! Amor!
Alma tão evidente que era corpo,
Perfume tão intenso que era flor!

E a voz de Eleanor, etérea chama,
As trevas dissolvendo, assim falou:

«Sou aquela que é amada e que não ama,
Porque meu ser é eterno e virginal.
Eu vivo além do amor e da tristeza,
E destes belos montes solitários,
E de amplidão que envolve a Natureza:
O fluido mar, onde as estrelas nadam...

«Serras doiradas, cristalinas fontes,
Ondas, campos, manhãs, tudo o que abrange
A curva, em roxa cor, dos horizontes,
É para mim a Sombra originária;
Sombra de mãe, remota e dolorida,
Que ainda me traz ao peito e acaricia...
Morte de que descende a minha vida,
Como da noite morta a luz dos astros.

«Tu foste para mim o que a semente,
Na escuridão da terra sepultada,
É para a flor gentil da Primavera,
Apenas em perfume idealizada...
Tu és o meu passado, assim as árvores
São talvez teu passado; misterioso
Tempo em que o mundo trágico ensaiava
Seu anímico voo esplendoroso!
E, depois, tu nasceste, ó criatura!
E, sofrendo ideal melancolia,
Outra vida sonhaste, mais perfeita...

«Sonhaste-me...e fui dada à luz do dia...

«Vivo em teu coração; mas, em ti próprio
Há tão grandes distâncias como aquelas
Que inundam de penumbra e silêncio
O espaço que medeia entre as estrelas.

«E que importa a distância que separa
Teus lábios dos meus lábios? E que importa
Que eu seja luz eterna e sempre clara
E tu sombra carnal e transitória?
Que tu vivas, além, num outro mundo,
Se nos prende o olhar à estrela e o mar profundo
À sede que o sol tem das nossas lágrimas?

«Sou aquela que é amada; mas não amo,
Porque o amor odeia o que é eterno;
E as suas labaredas se alimentam
Do que é mudança, tempestade, inferno!»

Logo, a Pastora, inquieta: «És o demónio,
Que vais pisando a sombra caminhante
Deste homem que delira e tem, na fronte,
O Destino que o faz andar errante!
Ah, para que o persegues, sem piedade?
E para que roubá-lo aos meus carinhos?
Não és da nossa pobre humanidade,
Nem pertences à terra e à luz do sol!
Ignoras a alegria de quem ama
E se sente mortal em seu amor.
E nunca ardeu, em ti, aquela chama,
Que nos transforma em cinza e poeira vã!
Tu nunca foste esposa, filha ou mãe
De condenados, de mártires, desgraçados!
Nunca ergueste, nas mãos, saudando alguém
O cálice divino da Amargura!
Essa tua quimérica beleza,
De Deusa e não humana, desconhece
A sagrada volúpia da tristeza
E o antegosto abismático da morte.»

E Eleonor, sorrindo: «Eu te perdoo
Essas loucas palavras que disseste.
Tu viste-me, e não sabes quem eu sou.
Assim tenho vivido incompreendida

A Donzela, mais pálida, escutava
Aquela voz - tão séria! - de Eleonor
Que os ermos ventos frios imitava,
Quando perpassam na ramagem densa:

«Solitária Pastora, que eu avisto,
Encantada nas brumas da Natura,
Tu não vês o lugar onde eu existo
Nem a essência divina do meu rosto!
Nunca a alegria plena tu sentiste,
Nem o prazer infindo! E a doce luz
Dos teus olhos, às vezes, é tão triste
Que dá melancolia às próprias coisas...
És a beleza, sim, que a vária sorte
Em efémero barro quis moldar;
E os teus beijos, mulher, sabem às lágrimas
Que não podes, aflita, derramar!
Ah, sempre te contemplo da distância
Que separa dois reinos, como tu,
Contemplas uma rosa, nessa infância
De Abril que, no teu corpo, se insinua.
Quando olhas para uma árvore, talvez ela
Fique toda a tremer e tenha medo!
E as árvores talvez sejam como espectros
Para o nocturno e trágico rochedo...
E eu o que sou para ti? O mesmo que és
Para as flores do campo; o novo ser
Dum novo Reino; a lama, a esplendidez
Em que a vida, por fim, se converteu.

«Tu és o amor amante; eu sou o amor
Amado. Eu sou a vida e tu somente,
És aquilo que vive. Eu sou a dor
E a dor não sofre, não, mas é sofrida.»

E Marânus, depois: «Eu te prometo
A sublime e final revelação.
Para o grande silêncio vem comigo
E também para a grande solidão.»

E Eleonor, estendendo a mão direita,
Apontou-lhe o horizonte montanhoso,
De onde a florida aurora nos espreita,
Por entre névoas de íntimo fulgor.


Teixeira de Pascoaes in Marânus. Assírio & Alvim, 1990

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Os murmúrios da floresta

A floresta estava agitada.
Naquela floresta havia sempre um murmúrio, um murmúrio regular, surdo como o eco de sinos longínquos, tranquilo e vago, como uma suave romança sem palavras, como uma recordação do passado. Aquela floresta estava sempre cheia de murmúrios, porque era muito velha e nunca tinha sido violada pelo machado dos lenhadores. Os altos pinheiros seculares erguiam os seus troncos vermelhos, como um exército sombrio, cerrando as copas verdes em espessas abóbadas.
Debaixo destas, tudo era calmo e cheirava a resina. Através do tapete de agulhas verdes, que cobria a terra, cresciam grandes fetos fantásticos, completamente imóveis. Nasciam ervas nos sítios húmidos. Florinhas humildes vergavam de cansadas as suas pesadas cabecitas. Mas nos cimos ouvia-se, incessantemente, sem interrupção, a selva a murmurar, soltando suspiros doloridos. (pp. 95)
Korolenko in Contos. Trad. Fernando Lopes Graça. Edições «Sírius», 1941.

A UMA RAZÃO

Um toque do teu dedo no tambor dispara todos os sons e começa
a nova harmonia.
Um passo teu é a sublevação dos novos homens e a sua arrancada.
Viras a cabeça: o novo amor! Voltas a cabeça, _ o novo amor!
«Troca os nossos lotes, livra-nos das pragas, a começar pela praga
do tempo», cantam-te estas crianças. «Ergue não importa onde a substância
dos nossos destinos e do nosso arbítrio», imploram-te.
Chegada a todas as horas partida para todos os lados.

Jean-Arthur Rimbaud
in Iluminações Uma Cerveja no Inferno. Trad. Mário Cesariny. Assírio&Alvim, 1999.

Pranto de Ménon Por Diotima (6)

6
Juventude, como eras outrora diferente! Não haverá súplicas
Que te façam jamais voltar? Existirá algum caminho de regresso?
Acontecer-me-á o mesmo que aos descrentes que no passado
Mesmo assim se sentaram no banquete divino com brilho no olhar,
Mas, em breve saciados, esses convidados em delírio,
Emudeceram então e agora, sob o canto das brisas,
Adormeceram sob a terra em flor, até que alguma vez
O poder de um milagre, aos que pereceram, faça
Regressar e de novo mover-se sobre o solo verdejante.
Um sopro sagrado percorre divinamente a figura da luz,
Quando a festa se anima e se agitam vagas de amor,
E na embriaguez celeste a torrente viva rumoreja,
Quando soa no subsolo, e a noite oferece os meus tesouros,
E, subindo à tona dos ribeiros, o ouro enterrado cintila.



Hölderlin. Elegias. Edição Bilingue. Trad. Maria Teresa Dias Furtado. Assírio&Alvim, 1992

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Led Zeppelin-Stairway to Heaven




There's a lady who's sure all that glitters is gold
And she's buying a stairway to heaven
And when she gets there she knows if the stores are all closed
With a word she can get what she came for

Oh, and she's buying a stairway to heaven

There's a sign on the wall but she wants to be sure
'Cause you know sometimes words have two meanings
In the tree by the brook there's a songbird who sings
Sometimes all of our thoughts are misgiving

(2x)
Oh, it makes me wonder

There's a feeling I get when I look to the west
And my spirit is crying for leaving
In my thoughts I have seen rings of smoke through the trees
And the voices of those who stand looking

Oh, it makes me wonder
Oh, and it makes me wonder

And it's whispered that soon, if we all called the tune
Then the piper will lead us to reason
And a new day will dawn for those who stand long
And the forest will echo with laughter

Woe, oh
If there's a bustle in your hedgerow
Don't be alarmed now
It's just a spring clean for the May Queen

Yes there are two paths you can go by
But in the long run
There's still time to change the road you're on

And it makes me wonder

Oh

Your head is humming and it won't go, in case you don´t know
The piper's calling you to join him
Dear lady can you hear the wind blow and did you know
Your stairway lies on the whispering wind

And as we wind on down the road
Our shadows taller than our souls
There walks a lady we all know
Who shines white light and wants to show

How everything still turns to gold
And if you listen very hard
The tune will come to you at last
When all are one and one is all, yeah

To be a rock and not to roll

Oh

And she's buying a stairway to heaven

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

Florbela Espanca

Ontem, em conversa com um residente de Matosinhos, e admirador profundo da poetisa, ouvi falar pela primeira vez do seu poema último. Fica aqui um breve resumo, dessa descoberta.

«Faleceu no dia 8 de Dezembro de 1930, em Matosinhos, onde foi sepultada. Na sua mesa de cabeceira estava um copo de leite e debaixo do colchão da sua cama foram encontrados dois frascos vazios de Veronal.
Em 1949, João Maria Espanca perfilha Florbela. Em 1964, um grupo de admiradores de Florbela e o Grupo de Amigos de Vila Viçosa procedem à trasladação dos restos mortais de Florbela para o cemitério de Vila Viçosa, julgando assim cumprir uma vontade da poetisa. No entanto, alguns anos depois, surge manuscrito um poema seu que manifesta:

“Eu quero, quando morrer, ser enterrada
Ao pé do Oceano ingénuo e manso,
Que reze à meia-noite em voz magoada,
As orações finais em meu descanso…” »

Daqui

A Perfeição

O facudo Ulissess acariciou a barba rude. Depois, erguendo o braço, como costumava na Assembleia dos Reis, à sombra das altas popas, diante os muros de Tróia:
_Oh deusa venerável, não te escandalizes! Perfeitamente sei que Penélope te está muito inferior em formosura, sapiência, e majestade. Tu serás eternamente bela e moça, enquanto os deuses durarem: e ela, em poucos anos, conhecerá a melancolia das rugas, dos cabelos brancos, das cores da decrepitude, e dos passos que tremem apoiados a um pau que treme. O seu espírito mortal erra através da escuridão e da dúvida; tu, sob essa fronte luminosa, possuis as luminosas certezas. Mas oh deusa, justamente pelo que ela tem de mais incompleto, de frágil, de grosseiro e de mortal, eu a amo, a apeteço a sua companhia congénere! Considera como é penoso que, nesta casa, cada dia, eu coma vorazmente o anho das pastagens e fruta dos vergéis, enquanto, tu ao meu lado, pela inefável superioridade da tua natureza, levas aos lábios, com lentidão soberana, a ambrósia divina! Em oito anos, oh deusa, nunca a tua face rebrilhou com uma alegria; nem dos teus olhos verdes rolou uma lágrima; nem bateste o pé, com irada impaciência; nem, gemendo com uma dor, te estendeste no leito macio...E assim trazes inutilizadas todas as virtudes do meu coração, pois que a tua divindade não permite que eu te congratule, te console, te sossegue, ou mesmo te esfregue o corpo dorido com o suco das ervas benéficas. Considera ainda que a tua inteligência de deusa possui todo o saber, atinge sempre a verdade; e, durante o longo tempo que contigo dormi, nunca gozei a felicidade de te emendar, de te contradizer, e de sentir, ante a fraqueza do teu, a força do meu entendimento! Oh deusa, tu és aquele ser terrífico que tem sempre razão! Considera ainda que, como deusa, conheces todo o passado e todo o futuro dos homens: e eu não pude saborear a incomparável delícia de te contar à noite, bebendo o vinho fresco, as minhas ilustres façanhas e as minhas viagens sublimes! Oh deusa, tu és impecável: e quando eu escorregue num tapete estendido, ou me estale uma correia da sandália, não te posso gritar, como os homens mortais gritam às esposas mortais: - Foi culpa tua, mulher! - erguendo, em frente à lareira, um alarido cruel! Por isso sofrerei, num espírito paciente, todos os males com que os deuses me assaltem no sombrio mar, para voltar a uma humana Penélope que eu mande, e console, e repreenda, e acuse, e contrarie, e ensine, e humilhe, e deslumbre, e por isso ame de um amor que constantemente se alimenta destes modos ondeantes, como o lume se nutre dos ventos contrários.
Assim o facundo Ulisses desabafava, ante a taça de ouro vazia: e serenamente a deusa escutava, com um sorriso taciturno, e as mãos imóveis sobre o regaço, enrodilhadas na ponta do véu.
No entanto, Febo Apolo descia para Ocidente; e já das ancas dos seus quatro cavalos suados subia e espalhava por sobre o mar um vapor rúbido e dourado. Em breve os caminhos da ilha se cobririam de sombras. E sobre os velos preciosos do leito, ao fundo da gruta, Ulisses, sem desejo, e a deusa, que o desejava, gozaram o doce amor, e depois o doce sono.
Eça de Queiroz. Contos. Edição «Livros do Brasil» Lisboa .(pp.236/7)

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

A Perfeição

Não, deusa perigosa, não! Eu combati na grande guerra onde os deuses também combateram, e conheço a malícia infinita que contém o coração dos imortais! Se resisti às sereias irresistíveis, e me safei com sublimes manobras entre Cila e Caríbdis, e venci Polifermo com um ardil que eternamente me tornará ilustre entre os homens, não foi decerto, oh deusa, para que, agora, na ilha de Ogígia, como passarinho de pouca penugem, no seu primeiro voo do ninho, caia em armadilha ligeira arranjada com dizeres de mel! Não, deusa, não! Só embarcarei na tua extraordinária jangada se tu jurares, pelo juramento terrífico dos deuses, que não preparas, com esses quietos olhos, a minha perda irreparável!
Assim bradava, à beira das ondas, com o peito a arfar, Ulisses, o herói prudente...Então a deusa clemente riu, com um cantado e refulgente riso. E caminhando para o herói, correndo os dedos celestes pelos seus espessos cabelos mais negros que o pez:
_Oh maravilhoso Ulisses - disse - tu és, bem na verdade, o mais refalsado e manhoso dos homens, pois que nem concebes que exista espírito sem manha e sem falsidade! Meu pai ilustre não me gerou com um coração de ferro! Apesar de imortal, compreendo as desventuras mortais. Só te aconselhei o que eu, deusa, empreenderia, se o fado me obrigasse a sair de Ogígia através do mar incerto!...
O divino Ulisses retirou lenta e sombriamente a cabeça da rosada carícia dos dedos divinos:
_Mas jura...Oh deusa, jura, para que ao meu peito desça, como onda de leite, a saborosa confiança!
Ela ergueu o claro braço ao azul onde os deuses moram:
_Por Gaia e pelo Céu superior, e pelas águas subterrâneas do Estígio, que é a maior invocação que podem lançar os imortais, juro, oh homem, príncipe dos homens, que não preparo a tua perda, nem misérias maiores...
O valente Ulisses respirou largamente. E arregaçando logo as mangas da túnica, esfregando as palmas das mãos robustas:
_Onde está o machado do teu pai magnífico? Mostra as árvores, oh deusa!...O dia baixa e o trabalho é longo!
_Sossega, oh homem sôfrego de males humanos! Os deuses superiores em sapiência já determinaram o teu destino....Recolhe comigo à doce gruta, a reforçar a tua força...Quando Eos vermelha aparecer, amanhã, eu te conduzirei à floresta.


Eça de Queiroz. Contos. Edição «Livros do Brasil» Lisboa .(pp.234/5)

A Perfeição

Então Calipso, pensativa, lançando sobre os seus cabelos anelados um véu da cor do açafrão, caminhou para a orla do mar, através dos prados, numa pressa que lhe enrodilhava a túnica, à maneira de uma espuma leve, em torno das pernas redondas e róseas. Tão levemente pisou a areia, que o magnânimo Ulisses não a sentiu deslizar, perdido na contemplação das águas lustrosas, com a negra barba entre as mãos, aliviando em gemidos o peso do seu coração. A Deusa sorriu, com fugitiva e soberana amargura. Depois, pousando no vasto ombro do herói os seus dedos tão claros como os de Eos, mãe do dia:
_Não te lamentes mais, desgraçado, nem te consumas, olhando o mar! Os deuses, que me são superiores pela inteligência e pela vontade, determinam que tu partas, afrontes a inconstância dos ventos, e calques de novo a terra da pátria...
Bruscamente, como o condor fendendo sobre a presa, o divino Ulisses, com a face assombrada, saltou da rocha musgosa:
_Oh deusa, tu dizes!...
Ela continuou sossegadamente, com os formosos braços pendidos, enrodilhados no véu cor de açafrão, enquanto a vaga rolava, mais doce e cantante, no amoroso respeito da sua presença divina:
_Bem sabes que não tenho naves de alta proa, nem remadores de rijo peito, nem piloto amigo das estrelas, que te conduzam...Mas certamente confiarei o machado de bronze que foi do meu pai, para tu abateres as árvores que eu te marcar, e construíres uma jangada em que embarques...Depois eu a proverei de odres de vinho, de comidas perfeitas, e a impelirei com um sopro amigo para o mar indomado...
Eça de Queiroz . Contos. Edição «Livros do Brasil» Lisboa. (pp. 233)

A Perfeição

«...E ao herói, que recebera dos reis da Grécia as armas de Aquiles, cabia por destino amargo engordar na ociosidade de uma ilha mais lânguida que uma cesta de rosas, e estender as mãos amolecidas para as iguarias abundantes, e, quando as águas e caminhos se cobriam de sombra, dormir sem desejo com uma deusa que, sem cessar, o desejava.» (pp.228)

Eça de Queiroz. Contos. Edição «Livros do Brasil» Lisboa

Jeunesse

I Dimanche


Postos de lado os problemas, a inevitável descida do céu e a visi-
tação da memória e a sessão de ritmos ocupam a casa, a cabeça
e o mundo do espírito.
-Um cavalo lança-se no turf suburbano ao longo das culturas
e dos arvoredos, atacado pela peste bubónica. Uma pobre mulher de
comédia, algures no mundo, chora improváveis abandonos. Os des-
peradoes languescem depois da trovoada, da bebedeira e das feri-
das. Crianças sufocam maldições nas margens dos rios.
Retomemos o estudo ao som da obra devorante que alastra e
sobe as massas.

Jean-Arthur Rimbaud in Iluminações Uma Cerveja no Inferno. Trad. Mário Cesariny. Assírio & Alvim, 3ª ed., 1999