segunda-feira, 25 de novembro de 2024

 “A IMPOSTURA DA LÍNGUA É PRETENDER QUE SE DIZ O QUE NÃO SE ESTÁ A DIZER”

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““Uma vez fui a uma livraria e encontrei um volume que continha uma série de documentos de tipo oficial referentes à vida prática de Bach. Quando os percorri senti que aqueles documentos eram capazes de gerar energia, dando uma imagem consistente da vida de Bach através, por exemplo, de uma relação dos móveis que havia em casa dele e de outros detalhes que parecem extremamente banais mas que davam uma medida de Bach e da sua época. Quase ao mesmo tempo tinha saído ”O Livro do Desassossego” e eu lia bastante Fernando Pessoa. E pareceu-me evidente que havia um elo profundo entre os dois, por antagonismo: Bach, um homem cheio de poder no seu corpo, uma globalidade física e mental, a casa organizada, podendo apoiar-se na mulher e ter filhos; e Fernando Pessoa, um ser sem espaço próprio por base. Tornou-se premente operar num texto a união antagónica entre os dois.”
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”Nunca escreverei “sobre” nada. Escrever “sobre” é pegar num acontecimento, num objecto, colocá-lo num lugar exterior a mim; no fundo, isso é escrita representativa, a mais generalizada. Mas há outras maneiras de escrever. Escrever “com” é dizer: estou com aquilo que estou a escrever. Escrever “com” implica observar sinais; o meu pensamento é um pensamento emotivo, imagético, vibrante, transformador. É talvez daí que nasce a estranheza desse texto que é um texto imerso em vários extractos de percepção do real.”
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”Agora, ando num clima que é o da “metanoite”. Por enquanto só vejo um alvéolo ou abertura opaca, mas sei que se persistir ela vai-se tornar significante. E se for na rua e surgir qualquer coisa, vou vê-la imediatamente à luz dessa “metanoite”. Como me surgiu a palavra? Caindo de um estado que lentamente se anuncia. Nunca saberei o que é, o que saberei é a travessia que através dessa palavra irei fazer.”
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”A impostura da língua é pretender que se diz o que não se está a dizer; a pessoa quer dizer o que não está a dizer porque não está a tratar o texto como tal; é querer aproximar-se de outro de quem não se está a aproximar, é querer ter um acesso que não está a ter. A impostura da língua é desviar o texto do seu curso próprio, que é uma intimidade profunda e indestrutível entre si próprio e o que se diz. Para mim, a literatura acabou.”
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— MARIA GABRIELA LLANSOL Nunes da Cunha Rodrigues Joaquim (Lisboa, 24 de Novembro de 1931 — Sintra, 3 de Março de 2008), escritora e tradutora portuguesa, filha de mãe catalã.
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Excertos de ”Na margem da língua, fora da literatura”, entrevista a António Guerreiro, publicada no semanário Expresso, de 6 de Abril de 1991, e republicada em “Outra Forma de Canto — Entrevistas e Textos de Intervenção”, Maria Gabriela Llansol, organização de João Barrento, edição de Mariposa Azual e Espaço Llansol.
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Foto:
A escritora, em criança.
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