sábado, 31 de agosto de 2024

 enquanto a grande ferida sara não sara,
a ferida da memória,
mas por trás o sangue tão devagar dói,
tão fundo dói, e passa
um dia ainda, com a sua noite adjunta, e desemboca,
o sangue impuro que uma vez mais se purifica
até um outro dia, e esse já não, que com certeza,
e então espero mais vinte e quatro horas de mais nada
que como quando
um dia em que penso ou não penso,
um que não passa tão certamente desatento,
errático, diz alguém não sei onde e quando,
que só aqui e só agora digo,
mas não faço,
enfim: não morro por enquanto,
só um pouco mais tarde, porque afinal um homem é de ferro


 Herberto Helder. Letra Aberta. Poemas inéditos escolhidos por Olga Lima. Porto Editora, 2016., p. 46

pobreza

''(...) não é um tema fetiche para mim, realmente é intrínseco.''

Tita Maravilha

quarta-feira, 28 de agosto de 2024

Auberge Ravoux

 
A tristeza vai durar para sempre.

Do crocitar dos corvos sobre os campos
Abre-se um abismo sem fim.

Ó estrelas de prata
Estrelas do anseio pela liberdade
Como passou o vosso jovem sopro!

Caio na noite sem fim
Longe do sol que fez de mim um girassol enlouquecido.
A tristeza vai durar para sempre.



Tomás Sottomayor. Auberge Ravoux. Edições Língua Morta, 2021., p. 66

''O homem é o cardo''

Tomás Sottomayor. Auberge Ravoux. Edições Língua Morta, 2021., p. 60

SOLIDÃO


É o panorama duma cidade
O casario mudo sob um céu abrasado.
São duas linguagens emaranhadas
Que não se desentrançam
Um toque que não aflora
Numa coxa querida.

Aqui do alto
Como são minúsculos os corpos
Vãos os laivos de vida
Que se desenham no
Labirinto do espanto.
Perfilam-se as memórias
Na superfície diáfana dos olhos
E as cidades baralham-se
Desabam, reerguem-se
À sombra da inquietude
E da inconsciência humana.

A solidão é a geografia desesperada
De um mundo sem língua.


Tomás Sottomayor. Auberge Ravoux. Edições Língua Morta, 2021., p. 54
 Veio nocturno onde o Outono
Repousa dormente
E as folhas
Num murmuro tépido
Fazem as suas vozes brancas
Assomar do leito do adeus.

Delicados luzeiros cativos
Transplantados para as cidades
Onde, por sobre as lajes
Alumiais as cabeças fatigadas
Da turba com as vossas
Luzes frias.

Pirilampos sem memória
Cobertos de cera
Entristecem, entontecem
A pele das estrelas.

Tomás Sottomayor. Auberge Ravoux. Edições Língua Morta, 2021., p. 48

''eu deito-me sobre ti e aguardo o oblívio''

Tomás Sottomayor. Auberge Ravoux. Edições Língua Morta, 2021., p. 45

 Do seio da noite arqueada
Taciturno sorvo o leite negro
De tudo o que se perdeu.
Ajoelho-me sob o peso da tua mão
E aguardo o sinal para que a minha
Se mova sem hesitação
Para arquear um novo céu.
Tenho um desejo insular
Por mundos invisíveis.


Tomás Sottomayor. Auberge Ravoux. Edições Língua Morta, 2021., p. 39
 ''Apetece-me lamber-te
nos lençóis iluminados
pela lua''

Tomás Sottomayor. Auberge Ravoux. Edições Língua Morta, 2021., p. 29


A CADELA ROMENA

 Conheci-a numa bomba de gasolina
Na margem do Danúbio
Num dia de beleza e desolação.
Correu ao meu encontro plena de ternura
Com os olhos alumiados de pureza.
Parti piedoso, triste, furioso
Com a imagem da pobreza
À flor dos olhos:
A cadela sarnenta
Com as tetas túmidas da solidão.

Tomás Sottomayor. Auberge Ravoux. Edições Língua Morta, 2021., p. 27

 ''Adormeci, com a memória
Do pequeno rio esquecido
Sob a ponte.''

Tomás Sottomayor. Auberge Ravoux. Edições Língua Morta, 2021., p. 26


                                 

 ''Nem sempre as leis dos homens
Estão de acordo com os preceitos
De Deus.''


Tomás Sottomayor. Auberge Ravoux. Edições Língua Morta, 2021., p. 21

Medrou a melancolia

Tomás Sottomayor. Auberge Ravoux. Edições Língua Morta, 2021., p. 20

 Um astro interior
Uma árvore de sangue:
O beijo que diz ‘sim’, ‘aqui’ —
‘como-que-eternamente’


Tomás Sottomayor. Auberge Ravoux. Edições Língua Morta, 2021., p. 14

 Wasser ist eine nasse Flamme.
A água é uma chama molhada.

Novalis
 Tendem para a claridade as coisas obscuras
Tendono alla chiarità le cose oscure

Eugenio Montale

segunda-feira, 26 de agosto de 2024

 '' O único valor que considero revolucionário é a bondade, que é o único que conta.''

terça-feira, 20 de agosto de 2024

 “Stefdies” - projecto

atriz dramaturga Stephanie Leigh Rose assume-se como uma artista “anti-selfie”

Francesca Woodman, virgem suicida


''Morreu no inverno, dia 19 de janeiro de 1981, depois de saltar para o vazio do telhado de um edifício do East Side de Nova York, vítima de depressão. Naquela época, ninguém foi capaz de identificar aquele corpo, que jazia com o rosto desfigurado, o mesmo que ela havia retratado, muitas vezes, procurando dar voz à sua arte e que parece tão familiar em seu trabalho. Aquele dia morria Francesca Woodman, a desconhecida jovem fotógrafa de 22 anos. Nascia seu culto.''





Francesca Woodman começou a fotografar aos 13 anos e suicidou-se aos 22. Nas centenas de imagens que produziu, o centro é quase sempre ela própria, quase sempre sozinha, frequentemente nua.

https://www.publico.pt/2012/04/19/culturaipsilon/noticia/francesca-woodman-virgem-suicida-303736

Francesca Woodman, virgem suicida
A maior retrospectiva americana desde a sua morte, em 1981, está actualmente no Museu Guggenheim em Nova Iorque, onde pode ser vista até 13 de Junho. Corey Keller, curadora de fotografia do Museu de Arte Moderna de São Francisco (SFMOMA), onde a exposição inaugurou em Novembro, antes de viajar para Nova Iorque, trabalhou durante quase cinco anos na preparação da retrospectiva. "Quando olhamos para um auto-retrato, esperamos aprender qualquer coisa sobre a pessoa representada", diz. "Mas depois de olhar para centenas de fotografias de Francesca Woodman, eu não sei quem ela é. Isso foi a parte mais frustrante para mim. Não se consegue perceber quem ela é. Ela não deixa. Ela aparece e desaparece e não há como fixá-la a nada."


 


Fernando Dacosta sobre Amália, 2017

segunda-feira, 19 de agosto de 2024


Foto da série "My Wife Yoko", 1968-76, Nobuyoshi Araki
 

as raparigas mais belas da cidade, despidas e narcotizadas

 «(...) na primavera anterior eu lera um belo romance de Yasunari Kawabata sobre os velhos burgueses de Quioto que pagavam somas enormes para passarem a noite a contemplar as raparigas mais belas da cidade, despidas e narcotizadas, enquanto agonizavam de amor ao lado delas, na mesma cama. Não podiam despertá-las, nem tocar-lhes, e nem sequer o tentavam, pois que era vê-las dormir a essência do prazer.»


Gabriel García Márquez. Doze contos peregrinos. Conto ''O Avião da Bela Adormecida'.  Tradução Miguel Serras Pereira. Publicações Dom Quixote, 1992., p. 80/1

''anel de noivado efémero''

Gabriel García Márquez. Doze contos peregrinos. Conto ''A Santa''.  Tradução Miguel Serras Pereira. Publicações Dom Quixote, 1992., p. 80

« O único sobrevivente de uma fauna extinta era o velho leão, cheio de sarna e catarro, na sua ilha rodeada de águas podres.»

Gabriel García Márquez. Doze contos peregrinos. Conto ''A Santa''.  Tradução Miguel Serras Pereira. Publicações Dom Quixote, 1992., p. 71

 « - É isso o que mais me fode nos estalinistas: não acreditam na realidade.»


Gabriel García Márquez. Doze contos peregrinos. Conto ''A Santa''.  Tradução Miguel Serras Pereira. Publicações Dom Quixote, 1992., p. 69

 « Em vez de enlouquecer, como era previsível, ficou sob uma espécie de paralisia mental.»


Gabriel García Márquez. Doze contos peregrinos. Conto ''A Santa''.  Tradução Miguel Serras Pereira. Publicações Dom Quixote, 1992., p. 68

 «Era uma máquina de pensar em argumentos. Jorravam dele, aos borbotões, quase contra a sua vontade.»

Gabriel García Márquez. Doze contos peregrinos. Conto ''A Santa''.  Tradução Miguel Serras Pereira. Publicações Dom Quixote, 1992., p. 67

 « O tenor e eu não dormíamos a sesta, íamos os dois na vespa dele, ele a conduzir e eu atrás, e oferecíamos gelados e chocolates às putazinhas estivais que borboleteavam debaixo dos loureiros centenários de Villa Borghese, à procura de turistas despidos para apanhar sol. Eram bonitas, pobres e meigas, como a maioria das italianas daquele tempo, vestidas de organza azul, de popeline cor-de-rosa, de linho verde, e protegiam-se do sol com as sombrinhas rasgadas pelas chuvas da guerra recente.»


Gabriel García Márquez. Doze contos peregrinos. Conto ''A Santa''.  Tradução Miguel Serras Pereira. Publicações Dom Quixote, 1992., p. 62

« - Os santos vivem no seu próprio tempo - dizia ele.»

Gabriel García Márquez. Doze contos peregrinos. Conto ''A Santa''.  Tradução Miguel Serras Pereira. Publicações Dom Quixote, 1992., p. 59

 « Mas a verdadeira história de Margarito Duarte começara seis meses antes da sua chegada a Roma, quando foi preciso mudar de sítio o cemitério da sua aldeia por causa da construção de uma represa. Como todos os habitantes da região, Margarito desenterrou os ossos dos seus mortos para os levar para o cemitério novo. A esposa voltara a ser pó.»

Gabriel García Márquez. Doze contos peregrinos. Conto ''A Santa''.  Tradução Miguel Serras Pereira. Publicações Dom Quixote, 1992., p. 56

 «Tal como o vês, velho e estragado, ainda deve ser um tigre na cama », disse ela. Mas pensava que o presidente desperdiçara esses dons de Deus ao serviço da dissimulação.» 


Gabriel García Márquez. Doze contos peregrinos. Conto Boa Viagem, Senhor Presidente (1979) Tradução Miguel Serras Pereira. Publicações Dom Quixote, 1992., p. 42

 « - A palavra mestiçagem significa a mistura das lágrimas com o sangue que corre. Que havemos de esperar de uma bebida assim?»


Gabriel García Márquez. Doze contos peregrinos. Conto Boa Viagem, Senhor Presidente (1979) Tradução Miguel Serras Pereira. Publicações Dom Quixote, 1992., p. 43

'' os canteiros de flores despedaçadas pelo vento''

Gabriel García Márquez. Doze contos peregrinos. Conto Boa Viagem, Senhor Presidente (1979) Tradução Miguel Serras Pereira. Publicações Dom Quixote, 1992., p. 25

 «A única coisa que denunciava o seu estado de saúde era a fadiga da pele. E ainda assim, aos setenta e três anos continuava a ser de uma elegância de primeira água. Nessa manhã, contudo, sentia-se a salvo de toda a vaidade. Os anos de glória e de poder haviam ficado para trás sem remédio, e só permaneciam agora os da morte.»

Gabriel García Márquez. Doze contos peregrinos. Conto Boa Viagem, Senhor Presidente (1979) Tradução Miguel Serras Pereira. Publicações Dom Quixote, 1992., p. 21/22

« Quando chegara a Genebra pela primeira vez, o lago era sereno e transparente, e havia gaivotas mansas que vinham comer à mão, e mulheres que se podiam alugar e pareciam fantasmas das seis da tarde, com enfeites de organdi e sombrinhas de seda.»


Gabriel García Márquez. Doze contos peregrinos. Conto Boa Viagem, Senhor Presidente (1979) Tradução Miguel Serras Pereira. Publicações Dom Quixote, 1992., p. 21

salvou do cansaço dos começos sucessivos

 «Além disso, trabalhando em todos os contos ao mesmo tempo e saltando de um para o outro com plena liberdade, consegui uma visão panorâmica que me salvou do cansaço dos começos sucessivos e me ajudou a detetar redundâncias ociosas e contradições mortais.»


Gabriel García Márquez. Doze contos peregrinos. Tradução Miguel Serras Pereira. Publicações Dom Quixote, 1992., p. 16

 « Quando comecei a Crónica de Uma Morte Anunciada, em 1979, comprovei que, nos intervalos entre dois livros, perdia o hábito de escrever, tornando-me cada vez mais difícil recomeçar. Por isso, entre outubro de 1980 e março de 1984, impus-me a tarefa de escrever uma nota semanal em jornais de diferentes países, como exercício disciplinador e de aquecimento da mão.»

Gabriel García Márquez. Doze contos peregrinos. Tradução Miguel Serras Pereira. Publicações Dom Quixote, 1992., p. 14/5

 «Alguém de cujo nome não me consigo lembrar disse-o muito bem numa frase de consolação: « Um bom escritor revela-se melhor pelo que rasga do que pelo que publica.»

Gabriel García Márquez. Doze contos peregrinos. Tradução Miguel Serras Pereira. Publicações Dom Quixote, 1992., p. 13

« Só então compreendi que morrer é nunca mais estarmos com os nossos amigos.»

Gabriel García Márquez. Doze contos peregrinos. Tradução Miguel Serras Pereira. Publicações Dom Quixote, 1992., p. 12

 Não há pessoas certas.


Há sim, pessoas que não hesitam em ficar
nos momentos em que todas as outras decidem ir.


Júlia Domingues. COM O AMOR DOS OUTROS, POSSO EU BEM.

 Envelhecer?

''É um naufrágio''



 « Vou deixar este mundo sem me sentir triste. A vida já não me atrai. Eu vi e experimentei tudo. Odeio a era actual, estou farto dela! Só vejo pessoas detestáveis. Tudo é falso, tudo é substituído. Todos riem uns dos outros sem olharem para si mesmos! Já não há respeito nem palavra dada. Só o dinheiro é que interessa.''

Alain Delon (1935-2024) em entrevista à Paris Match (2018)

culto de hiperdulia

 Hiperdulia é um termo teológico utilizado pelas Igrejas Católica e Ortodoxa que significa a honra e o culto de veneração especial devotados a Nossa Senhora.

livramento

 


nome masculino

1. Acto ou efeito de livrar ou de se livrar. = LIBERAÇÃOLIBERTAÇÃOLIVRAÇÃOLIVRANÇARESGATE

2. Soltura de pessoa que estava presa (ex.: livramento condicional). ≠ PRISÃO

3. [Informal] Expulsão da placenta. = DELIVRAMENTODEQUITAÇÃODEQUITADURADEQUITE

etimologiaOrigem etimológica:livrar + -mento

"livramento", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2024, https://dicionario.priberam.org/livramento.

 


“It’s too hard. I could never watch our films again. That would be impossible. To hear Romy say, ‘I love you,’ when she is no longer here, I just can’t bear it. She is the love of my life.” - Alain Delon
Alain delon and Romy Schneider, 1960



poesia cautelosa
e pessoas
cautelosas
duram 
apenas o suficiente
para morrer em segurança.


Charles Bukowski, OS CÃOS LADRAM FACAS. (antologia poética), selecção, organização e prefácio de Valério Romão, tradução de Rosalina Marshall, ed. Alfaguara 

então queres ser escritor?

 se não rebentar de dentro de ti
a despeito de tudo,
não o faças.


Charles Bukowski, OS CÃOS LADRAM FACAS. (antologia poética), selecção, organização e prefácio de Valério Romão, tradução de Rosalina Marshall, ed. Alfaguara 


Lídia Jorge. O Livro das Tréguas. Poesia. Publicações Dom Quixote. Lisboa, 2019.,p. 19


 

 "Romy is the only true love of my life... I have never betrayed her, i was always thinking only about her...and still am..I have never recovered from her death. I still miss her terribly... I'm not afraid to die, because i know i'd be with her again" - Alain Delon recently

Alain Delon and Romy Schneider, South France. 1961

"If you ask me who do i miss the most, my answer is Romy"


                                                                   Alain Delon (2020)

 "My love has Romy's face"

- What is love for you?
- 'This morning my daughter Anouchka called me - this is love for me'
But then Delon thinks and adds:
-'but my love has an exact face - my love has Romy's face'
2019
Alain and Romy at home, 1961



sábado, 17 de agosto de 2024

NO FUNDO

 No fundo, são muito poucas as palavras
que nos doem de verdade, e muito poucas
as que conseguem alegrar a alma.
E são também muito poucas as pessoas
que nos comovem o coração, e menos
ainda as que o comovem muito tempo.
No fundo, são pouquíssimas as coisas
que importam de verdade na vida:
poder amar alguém e que nos amem,
nunca morrer depois dos nossos filhos.


Amalia Bautista (Trad. Inês Dias) in Conta-mo outra vez. Ed. Averno, 2020.

Valter Lobo - Oeste


Pontas soltas vão cair aos pésNum oeste onde eu não dançavaFoi o som, foi a luz em siFoi a sorte que eu não contava
Só de te abraçar sinto que a música altera-me em tudo maisA música altera o meu corpo, altera o mundo, altera-seSó de ver dançar sinto que a música altera-me em tudo maisA música altera o meu corpo, altera o mundo, altera-se
Põe-se o sol, vem a lua, abro o peitoNo oeste teu somos valsasAmeaçou e atingiu a preceitoFoi queda sem um amparo
Só de te abraçar sinto que a música altera-me em tudo maisA música altera o meu corpo, altera o mundo, altera-seSó de ver dançar sinto que a música altera-me em tudo maisA música altera o meu corpo, altera o mundo, altera-seAi meu amor
Só de te abraçar sinto que a música altera-me em tudo maisA música altera o meu corpo, altera o mundo, altera-seSó de ver dançar sinto que a música altera-me em tudo maisA música altera o meu corpo, altera o mundo, altera-se
Só de te abraçar sinto que a música altera-me em tudo maisA música altera o meu corpo, altera o mundo, altera-seSó de ver dançar sinto que a música altera-me em tudo maisA música altera o meu corpo, altera o mundo, altera-seAi meu amor
 « se eu tivesse dois ou três dentes de ouro
mordia-te o corpo todo se eu tivesse
mel e fósforo para tocá-lo
tocava-te o sexo
se eu cantasse num murmúrio quente cheio de êrros
chamava-te junto ao ouvido
se tivesse o teu nome escrito pelas unhas fora»


 Herberto Helder. Letra Aberta. Poemas inéditos escolhidos por Olga Lima. Porto Editora, 2016., p. 45

''uma pouca de água rasa, uma rosa de nada ''

Herberto Helder. Letra Aberta. Poemas inéditos escolhidos por Olga Lima. Porto Editora, 2016., p. 43

 « e o poema ruiu de alto a baixo,

sem base ou centro ou cume,»


 Herberto Helder. Letra Aberta. Poemas inéditos escolhidos por Olga Lima. Porto Editora, 2016., p. 40

 « de manhã quando acordo - que decepção! - não estou 

                                                                               morto,»


 Herberto Helder. Letra Aberta. Poemas inéditos escolhidos por Olga Lima. Porto Editora, 2016., p. 38

'' mas nunca o amor tem a pronúncia que se espera ''

Herberto Helder. Letra Aberta. Poemas inéditos escolhidos por Olga Lima. Porto Editora, 2016., p. 34

 « em Paris mal uma pessoa se angustia pensa em afogar-se nas 

                                                   modestas águas do rio ali à mão »


 Herberto Helder. Letra Aberta. Poemas inéditos escolhidos por Olga Lima. Porto Editora, 2016., p. 30
 tinha cinco minutos diários de paz terrena,
depois quatro,
depois três,
depois dois,
depois um,
depois não nunca nada,
depois era: dêem-me um tiro na cabeça
para nunca nunca um só número,
todos os números,
qualquer número


 Herberto Helder. Letra Aberta. Poemas inéditos escolhidos por Olga Lima. Porto Editora, 2016., p. 29
 « às vezes no meio da noite fica uma torneira aberta,
e a água corre e vai enchendo a tua própria noite,
que fazer para não te afogares no sono,
que fazer para que te socorram,
que fazer para não encher de água o mundo inteiro?»


 Herberto Helder. Letra Aberta. Poemas inéditos escolhidos por Olga Lima. Porto Editora, 2016., p. 27
 « - oh porque me abandonaste?
mas na verdade ninguém me abandonara »

 Herberto Helder. Letra Aberta. Poemas inéditos escolhidos por Olga Lima. Porto Editora, 2016., p. 26

 « a morte é mesmo estranha:

morre-se todos os dias

e enquanto se morre pede-se uma esmola para matar a fome

                                                                        de outra vida,»


 Herberto Helder. Letra Aberta. Poemas inéditos escolhidos por Olga Lima. Porto Editora, 2016., p. 25

'' Mal de nós / se não pensarmos longe e alto.''

Lídia Jorge. O Livro das Tréguas. Poesia. Publicações Dom Quixote. Lisboa, 2019.,p. 41

MAIORIDADE

 «Sei de éguas e de rosas cuidar como ninguém.
No papel desenho-as, na mesa escrevo-as.»

Lídia Jorge. O Livro das Tréguas. Poesia. Publicações Dom Quixote. Lisboa, 2019.,p. 33

A QUE ESPERA

 A tristeza sentou-se à minha porta
mas eu não a alimentei.

Cão de guarda por cão de guarda
prefiro a alegria.

A ela entrego os meus dias
e o abraço daquele que vem de longe
para me dizer que o amor que foi ontem
ainda é hoje.


Lídia Jorge. O Livro das Tréguas. Poesia. Publicações Dom Quixote. Lisboa, 2019.,p. 38
 «Tranca a porta do teu quarto à chave
podem querer roubar-te o coração de carne.»

Lídia Jorge. O Livro das Tréguas. Poesia. Publicações Dom Quixote. Lisboa, 2019.,p. 33
 «Se encontrares o ribeiro cheiro, tira os sapatos
e atravessa-o para chegares a horas
lá onde fazes falta.»

Lídia Jorge. O Livro das Tréguas. Poesia. Publicações Dom Quixote. Lisboa, 2019.,p. 33

ELOGIO DA LÚCIDA LUCIDEZ

 «Não falaste além do que devias, dever cumprido.»

Lídia Jorge. O Livro das Tréguas. Poesia. Publicações Dom Quixote. Lisboa, 2019.,p. 29

 « Sentei-me diante da tua caverna e vi as sombras

passarem.»


Lídia Jorge. O Livro das Tréguas. Poesia. Publicações Dom Quixote. Lisboa, 2019.,p. 27

'' Um poema é não me deixes ir ao fundo.''

Daniel Jonas. Cães de Chuva. Assírio & Alvim, Porto Editora.2021 , p. 34

«Um poema é
a balsa que se chora no Egeu,
a trágica ampulheta a toda a hora.
É coser o cílio ao sobrolho
com os fios das pestanas
e apagar para sempre a fina dor do que se vê.»


Daniel Jonas. Cães de Chuva. Assírio & Alvim, Porto Editora.2021 , p. 34

 « Um poema é

sobre mãos sobre mãos

sobre irmãos que são amigos

e amigos que hoje não se são.»


Daniel Jonas. Cães de Chuva. Assírio & Alvim, Porto Editora.2021 , p. 33

''lídimas manhãs''

Daniel Jonas. Cães de Chuva. Assírio & Alvim, Porto Editora.2021 , p. 33

''Chorar-lhe o cuspo e não já lágrimas.''

Daniel Jonas. Cães de Chuva. Assírio & Alvim, Porto Editora.2021 , p. 31

 « Matematicamente sofro.

Fui alegre quando triste e feliz ao fim ao cabo

quando pensando muito sobre isso não pensava nada.»


Daniel Jonas. Cães de Chuva. Assírio & Alvim, Porto Editora.2021 , p. 31

 Recuso a quietude que me banaliza
A vulgaridade repugna-me
A perfeição seduz-me
e ao mesmo tempo enfastia-me

Maria Teresa Horta


Daniel Jonas, poeta, dramaturgo e tradutor

 

''Esta casa sarcófago, lápide, avalanche,
erosão de vida, buraco branco na explosão de coisa nenhuma,
corrosão infecta, enfermaria, anestésica
do que eu fosse e me curasse,
choque estelar e cósmica comédia de silêncio.
O grito! O grito! O grotto! O grotto!
A brancura hesitando na cama de rede do delírio,
escorrendo pelos ângulos da tarde
como uma marioneta ganhando vida de loucura,
térmites que eu vejo e não disseco, lacraus pulmonares
que me brotam das ideias e eu trem
e eu amo sem parceiro que invada
numa paragem de autocarro que eu passeio
na minha espera lenta de anteontem!”

Daniel Jonas, Canícula, pag.11

 ''Cada palavra tem uma história etimológica que explode no poema, que resgata mundos perdidos, induz a regressões ou a saltos futuristas.''

Daniel Jonas

''Quero a fanfarra dos simples, o augusto coreto das sombras!
Onde estou que não me encontro?
Eu tenho uma fome assassina, de descarnar os cabos
das costelas, de estraçalhar milagres biológicos,
a existência miserável de seres que antes eram vivos
e agora enfeitam o cemitério do meu prato.
Esta afluência ao restaurante põe-me doido!
Este querer comer como eu quero este querer cuspir como eu
quero”

Daniel Jonas, Canícula, pag.48

Bob Dylan - Visions of Johanna


Ain't it just like the night to play tricks when you're tryin' to be so quiet?We sit here stranded, though we're all doin' our best to deny itAnd Louise holds a handful of rain, temptin' you to defy itLights flicker from the opposite loftIn this room the heat pipes just coughThe country music station plays softBut there's nothing, really nothing to turn offJust Louise and her lover so entwinedAnd these visions of Johanna that conquer my mind
In the empty lot where the ladies play blindman's bluff with the key chainAnd the all-night girls they whisper of escapades out on the "D" trainWe can hear the night watchman click his flashlightAsk himself if it's him or them that's insaneLouise, she's all right, she's just nearShe's delicate and seems like the mirrorBut she just makes it all too concise and too clearThat Johanna's not hereThe ghost of 'lectricity howls in the bones of her faceWhere these visions of Johanna have now taken my place
Now, little boy lost, he takes himself so seriouslyHe brags of his misery, he likes to live dangerouslyAnd when bringing her name upHe speaks of a farewell kiss to meHe's sure got a lotta gall to be so useless and allMuttering small talk at the wall while I'm in the hallHow can I explain?It's so hard to get onAnd these visions of Johanna, they kept me up past the dawn
Inside the museums, infinity goes up on trialVoices echo this is what salvation must be like after a whileBut Mona Lisa musta had the highway bluesYou can tell by the way she smilesSee the primitive wallflower freezeWhen the jelly-faced women all sneezeHear the one with the mustache say, "Jeez, I can't find my knees"Oh, jewels and binoculars hang from the head of the muleBut these visions of Johanna, they make it all seem so cruel
The peddler now speaks to the countess who's pretending to care for himSayin', "Name me someone that's not a parasite and I'll go out and say a prayer for him"But like Louise always says"Ya can't look at much, can ya man?"As she, herself, prepares for himAnd Madonna, she still has not showedWe see this empty cage now corrodeWhere her cape of the stage once had flowedThe fiddler, he now steps to the roadHe writes ev'rything's been returned which was owedOn the back of the fish truck that loadsWhile my conscience explodesThe harmonicas play the skeleton keys and the rainAnd these visions of Johanna are now all that remain