quarta-feira, 31 de julho de 2024

 Façanhas da memória

Há uma casa,
uma casa
que fechou
suas portas.
Foi
morrendo
em nome
e graça
da mesmíssima
vida.
Esta casa
abandonou
o salão
solenemente,
sem deixar
fotografias,
nem fantasmas
cochilando
por aí
pelas escadas;
nem sequer
um resplendor
de vozes
se gestando
nos quartos
de serviço
ofendidas na sombra
chorando
seu direito
à memória

Esta casa
onde não há
antepassados
escalando
o tempo,
enredando
parentes
terra
adentro
onde vão se
s o m a n d o.


Tardança

Foram juntando
palavras intencionadas

uma
a
uma
iam entrando

pela fissura da porta
onde aparecem cartas

algumas vezes
quando a casa
está
desabitada.

Teresa Calderón (Causas perdidas, 1984)


Exílio

I.
Ontem te chamei
e minha própria sombra
respondeu no telefone

II.
Adeus eu disse docemente
e a rua cresceu cresceu
como a noite

III.
Seu corpo luta na parede.
Meu quarto
não pode te deixar ir
sem me ferir

IV.
Fantasma tresnoitado do amanhecer
cantando seu próprio tango
de pé chorando
sobre o balcão de uma mulher
também fantasma.


Roteiro dos desaparecidos

Reconstruir a luz para os que nunca mais a verão
        a luz que nasce deles
       asilada luz permanecente no
    sótão da visão
  desaparecida
riscada
é o roteiro reconstituído dessa morte
não de todo vivida
porque volta inconclusa a aparecer
       a vigiar a vida de longe.

Roteiro do pensamento invertido na faceta subliminar
à margem de qualquer quimera subvertida

Roteiro desse sótão e sua persistência
escura
quando a cidade virada em seu próprio ofertório
se converte em santuário

Onde emergem os mortos resplandecentes

Pelo brilho ameaçante dos cactos
seus olhos veem os vivos lascivamente.

Mas há mais: eles colocam grandes placas de vidro
opacas
para resistir ao cruzamento dos edifícios
sem defesa.
Desafiando a cor do sol
com seu penetrante verde subterrâneo
inundam a cidade.
Cresce então sua antiga primavera
na qual os vivos submergem como num sonho
implacável.

Eugenia Brito (Vía pública, 1984)


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