terça-feira, 13 de fevereiro de 2024


        Hilda Hilst. Fotomontagens de Fernando Lemos



Dez chamamentos ao amigo

.

I

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Se te pareço noturna e imperfeita
Olha-me de novo. Porque esta noite
Olhei-me a mim, como se tu me olhasses.
E era como se a água
Desejasse

.

Escapar de sua casa que é o rio
E deslizando apenas, nem tocar a margem

.

Te olhei. E há tanto tempo
Espero
Que o teu corpo de água mais fraterno
Se estenda sobre o meu. Pastor e nauta

.

Olha-me de novo. Com menos altivez.
E mais atento.

.

II

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Ama-me. É tempo ainda. Interroga-me.
E eu te direi que nosso tempo é ágora.
Esplêndida avidez, vasta ventura
Porque é mais vasto o sonho que elabora

.

Há tanto tempo sua própria tessitura.

.

Ama-me. Embora eu te pareça
Demasiado intensa. E de aspereza.
E transitória se tu me repensas.

.

III

.
Se refazer o tempo, a mim, me fosse dado
Faria do meu rosto de parábola
Rede de mel, ofício de magia

.

E naquela encantada livraria
Onde os raros amigos me sorriam
Onde a meus olhos eras torre e trigo

.

Meu todo corajoso de Poesia
Te tomava. Aventurança, amigo,
Tão extremada e larga

.

E amavio contente o amor teria sido

.

IV

.
Minha medida? Amor.
E tua boca na minha
Imerecida.

.

Minha vergonha? O verso
Ardente. E o meu rosto
Reverso de quem sonha.

.

Meu chamamento? Sagitário
Ao meu lado
Enlaçado ao Touro.

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Minha riqueza? Procura
Obstinada, tua presença
Em tudo: julho, agosto
Zodíaco antevisto, página

.

Ilustrada da revista
Editorial, jornal
Teia cindida.

.

Em cada canto da Casa
Evidência veemente
Do teu rosto.

.

V

.
Nós dois passamos. E os amigos
E toda minha seiva, meu suplício
De jamais ver, teu desamor também
Há de passar. Sou apenas poeta

.

E tu, lúcido, fazedor da palavra,
Inconsentido, nítido

.

Nós dois passamos porque assim é sempre.
E singular e raro este tempo inventivo
Circundando a palavra. Trevo escuro

.

Desmemoriado, coincidido e ardente
NO meu tempo de vida tão maduro.

.

VI

.
Sorrio quando penso
Em que lugar da sala
Guardarás o meu verso.
Distanciado
Dos teus livros políticos?
Na primeira gaveta
Mais próxima à janela?
Tu sorris quando lês
Ou te cansas de ver
Tamanha perdição
Amorável centelha
No meu rosto maduro?
E te pareço bela
Ou apenas pareço
Mais poeta talvez
E menos séria?
O que pensa o homem
Do poeta? Que não há verdade
Na minha embriaguez
E que me preferes
Amiga mais pacífica
E menos aventura?
Que é de todo impossível
Guardar na tua sala
Vestígio passional
Da minha linguagem?
Eu te pareço louca?
Eu te pareço pura?
Eu te pareço moça?

.

Ou é mesmo verdade

.

Que nunca me soubeste?

.

VII

.
Foi Julho sim. E nunca mais esqueço.
O ouro em mim, a palavra
Irisada na minha boca
A urgência de me dizer em amor
Tatuada de memória e confidência.
Setembro em enorme silêncio
Distancia meu rosto. Te pergunto:
De Julho em mim ainda se lembras?

.

Disseram-me os amigos que Saturno
Se refaz este ano. E é tigre
E é verdugo. E que os amantes

.

Pensativos, glaciais
Ficarão surdos ao canto comovido.
E em sendo assim, amor,
De que me adianta a mim, te dizer mais?

.

VIII

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De luas, desatino e aguaceiro
Todas as noites que não foram tuas.
Amigos e meninos de ternura

.

Intocado meu corpo e tão mais triste
Sempre à procura do teu corpo exato.

.

Livra-me de ti. Que eu reconstrua
Meus pequenos amores. A ciência
De me deixar amar.
Sem amargura. E que me deem

.

A enorme incoerência
De desamar, amando. E te lembrando

.

— Fazedor de desgosto —
Que eu te esqueça.

.

IX

.
Esse poeta em mim sempre morrendo
Se tenta repetir salmodiado:
Como te conhecer, arquiteto do tempo
Como saber de mim, sem te saber?
Algidez do teu gesto, minha cegueira
E o casto incendiado momento
Se ao teu lado me vejo. As tardes
Fiandeiras, as tardes que eu amava,
Matéria da solidão, íntimas, claras
Sofrem a sonolência de umas águas
Como se um barco recusasse sempre
A liquidez. Minhas tardes dilatas

.

Sobre-existindo apenas
Porque à noite retomo a minha verdade:
Teu contorno, teu rosto, álgido sim

.

E por isso, quem sabe, tão amado.

.

X

.
Não é apenas um vago, modulado sentimento
O que me faz cantar enormemente
A memória de nós. É mais. É como um sopro
De fogo, é fraterno e leal, é ardoroso
É como se a despedida se fizesse o gozo
De saber
Que há no teu todo e no meu um espaço
Oloroso, onde não vive o adeus

.

Não é apenas vaidade de querer
Que aos cinquenta
Tua alma e teu corpo se enterneçam
De graça, da justeza do poema. É mais.
E por isso perdoa todo esse amor de mim

.

E me perdoa de ti a indiferença.

.

.

Inicialmente publicado em: Júbilo, memória, noviciado da paixão.
(In: HILST, Hilda. Da poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.)

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