segunda-feira, 17 de abril de 2023

VIA DELLE OMBRE

 Na maior parte dos dias, é o sol que me acorda.

Mesmo nos dias mais escuros, há sempre muita luz de manhã -

linhas esguias onde as persianas não fecham.

É manhã - abro os olhos.

E todas as manhãs vejo outra vez como este lugar é imundo, sinistro.

Por isso, nunca chego atrasado ao trabalho - isto não é lugar para

se estar,

para ficar a ver a imundice a acumular-se enquanto o Sol resplandece.


Durante o dia de trabalho, esqueço o assunto.

Penso no trabalho: meter contas coloridas em frasquinhos de vidro.

Ao anoitecer, quando chego a casa, o quarto está sombrio -

a sombra da escrivaninha cobre por inteiro o chão despido.

Diz-me que quem aqui vive está condenado.


Quando é este o meu estado de espírito,

vou a um bar, fico a ver desporto na televisão .


Às vezes, falo com o dono.

Ele diz que os estados de espírito não querem dizer nada -

as sombras significam que a noite se aproxima, não que o dia nunca

mais irá voltar.

Diz-me para mudar a escrivaninha de lugar; terei outras sombras,

talvez

um diagnóstico diferente.


Se estamos sozinhos, ele baixa o som da televisão.

Os jogadores continuam a esbarrar uns nos outros,

mas só conseguimos ouvir as nossas próprias vozes.


Se não há jogo, ele escolhe um filme.

É a mesma coisa - o som mantém-se no mínimo, por isso restam 

as imagens.

Quando o filme acaba, trocamos opiniões para ter a certeza de que 

assistimos à mesma história.

Às vezes, passamos horas a ver este lixo.


Quando volto a pé para casa, já é noite. Por uma vez, escapa-nos a 

pobreza das casas.

Trago o filme na cabeça: convenço-me de que estou a trilhar o mesmo

caminho que o herói.


O herói atreve-se a sair à rua - culpa do amanhecer.

Quando sai, a câmara recolhe imagem de outras coisas.

Quando volta, já sabe tudo o que há para saber,

só de vigiar o quarto.


Agora não há sombras.

Está escuro dentro do quarto; a brisa noturna vem fresca.

No Verão, consegue-se sentir o aroma das flores de laranjeira.

Se não há vento, basta uma árvore - não é preciso um pomar inteiro.


Faço como o herói.

Ele abre a janela. Tem a sua reunião com a terra.


 Louise Glück. Uma Vida de Aldeia. Tradução de Frederico Pedreira. Relógio D'Água. 2021., p. 65

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