domingo, 26 de março de 2023

NOCTURNO

         Uma noite,
uma noite toda cheia de perfumes, de murmúrios e de músicas de asas,
         uma noite,
em que ardiam na sombra nupcial e húmida, pirilampos fantásticos,
ao meu lado, lentamente, a mim toda cingida,

           muda e pálida

Como se um pressentimento de amarguras infinitas,

até ao fundo mais secreto das tuas fibras te agitasse,

pelo atalho que atravessa a campina em flor

           caminhavas

          e a lua cheia

pelos céus azúleos, infinitos e profundos espargia a sua luz branca,

         e a tua sombra

         fina e lânguida,

         e a minha sombra

pelos raios da lua projectadas,

sobre as areias tristes

da vereda se juntavam

         e eram uma

         e eram uma

E eram uma única longa sombra!

E eram uma única longa sombra!

E eram uma única longa sombra!

            Esta noite

            sozinho, a alma

cheia das infinitas amarguras e agonias da tua morte,

separado de ti mesma, pela sombra, pelo tempo e a distância,

            pelo infinito negro,

            que a nossa voz não alcança

            só e mudo

           pelo atalho caminhava,

e ouvia-se o ladrar dos cães à lua,

            à lua pálida,

             e o coaxar

            das rãs…

Tive frio, era o frio que sentiam no quarto

As tuas faces e a tua testa e as tuas mãos adoradas,

            entre as brancuras níveas

            das brancas mortalhas!

Era o frio do sepulcro, era o frio da morte

             era o frio do nada…

             e a minha sombra

pelos raios da lua projectada,

             ia sozinha,

             ia sozinha,

ia sozinha pela estepe solitária!

            e a tua sombra esbelta e ágil

            fina e lânguida,

como nessa noite morta da morta primavera

como nessa noite cheia de perfumes, de murmúrios e de músicas de

                                                                                                              asas

               abeirou-se e caminhou com ela,

               abeirou-se e caminhou com ela,

abeirou-se e caminhou com ela…Oh as sombras enlaçadas!

Oh as sombras que se procuram e se juntam nas noites de negruras e

                                                                                                       de lágrimas!...


José Asunción Silva. Um País que Sonha cem anos de poesia columbiana (1865-1965). Selecção e prólogo Lauren Mendinueta. Tradução Nuno Júdice. Assírio &Alvim, 2012., p. 21-22


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