sexta-feira, 14 de maio de 2021

 ''O complexo universo das redes vem se multiplicando exponencialmente na contemporaneidade com o surgimento e desenvolvimento das redes digitais. Parece pertinente afirmar que, independentemente da natureza da rede em questão, há alguns princípios constitutivos do conceito de rizoma desenvolvido por Deleuze e Guattari (2004, p. 7-10) que permanecem inatacáveis e que podem ser aplicados a qualquer uma delas, sem distinção:

Para os autores, um rizoma é constituído pela interação entre sistemas e essa interação é muito mais do que a mera soma de suas partes. Retornar-se-á a esse assunto logo adiante, entretanto, antes que se avance, é necessário que se compreenda o que o conceito de autopoiese, inicialmente limitado aos domínios da biologia e fortemente relacionado a Francisco Varela e Humberto Maturana, está fazendo no título deste post, que se propõe a clarear os conceitos de rizoma e corpo sem órgãos, por seu turno, ligados umbilicalmente a Deleuze e Guattari.

A princípio, Varela e Maturana se mostraram surpresos com o interesse, para eles inusitado, das ciências humanas por sua teoria e se mostraram refratários à ideia da expansão do conceito de autopoiese para outros campos de conhecimento além da biologia. Porém, ao verem que essa expansão seria inevitável, sugeriram que deveria ser feita uma distinção entre o que chamaram de uso abusivo da transposição — aquela que se vale da utilização literal ou estrita da ideia, na qual, por exemplo, redes de processos se transformam em “interações entre pessoas”, e a membrana celular se transforma em “fronteira” de um agrupamento humano – daquela outra com a qual estariam de acordo, que seria a utilização por continuidade, ou utilização metonímica (1997, p. 53).

A utilização metonímica ou de continuidade se dá, de acordo com Varela e Maturana, quando se entende que a autopoiese procura pôr “a autonomia do ser vivo no centro da caracterização da biologia, e abre ao mesmo tempo a possibilidade de considerar os seres vivos como dotados de capacidade interpretativa desde sua origem. Quer dizer, aquela que permite que se veja o fenômeno interpretativo como contínuo desde sua origem até sua manifestação humana” (Ibid.).

Félix Guattari foi um dos interessados em ampliar o alcance da teoria da autopoiese para o domínio das ciências humanas. Em Caosmose (2012, p. 108), ele diz:

foi na condição de biólogos que Humberto Maturana e Francisco Varela formularam o conceito de máquina autopoiética para definir os sistemas vivos. Parece-me que sua noção de autopoiese, como capacidade de autorreprodução de uma estrutura ou de um ecossistema, poderia ser proveitosamente estendida às máquinas sociais, às máquinas econômicas e até mesmo às máquinas incorporais da língua, da teoria, da criação estética.

Nesta obra, Guattari apresenta, comenta e analisa a diferenciação que Varela e Maturana fizeram entre as máquinas auto- e alopoiéticas e observa que eles deixaram de fora da caracterização dos organismos vivos aspectos essenciais à vida, como o fato de se nascer, sobreviver e morrer em meio a um phylum genético, e defende a ideia de se repensar e expandir a teoria da autopoiese para outras áreas de conhecimento. Ele diz:

Parece-me, entretanto, que a autopoiese mereceria ser repensada em função de entidades evolutivas, coletivas e que mantêm diversos tipos de relações de alteridade, ao invés de estarem implacavelmente encerradas nelas mesmas. Assim, as instituições como as máquinas técnicas que, aparentemente, derivam da alopoiese, consideradas no quadro dos agenciamentos maquínicos que elas constituem com os seres humanos, tornam-se autopoiéticas ipso facto. Considerar-se-á, então, a autopoiese sob o ângulo da ontogênese e da filogênese próprias a uma mecanosfera que se superpõe à biosfera. (2012, p. 50)

A observação de Guattari é relevante. O ambiente, no campo das ciências humanas, qualquer que seja ele, é constituído pela interação de diversos tipos de sistemas auto- e alopoiéticos, de natureza material e/ou imaterial, como, por exemplo, homem/máquinas/tecnologias/cultura/sociedade/língua/economia – ou seja, por entidades coletivas de naturezas diversas, que se autorreproduzem em outros sistemas, formando novas ligações rizomáticas, e que, portanto, em última análise, podem ser considerados de natureza autopoiética. Em função disso, muito além de se apresentar apenas como uma mera perturbação que levará à evolução dos sistemas autopoiéticos, o ambiente, na perspectiva de Guattari, é responsável por sua própria constituição.

A partir deste momento, retoma-se o conceito de rizoma de Deleuze e Guattari. A ideia de rizoma está na base de todo o conjunto de ideias desenvolvido pelos autores e é parte do que tem sido chamado de teoria “eco-social” da produção, apresentada, pela primeira vez, em Anti-Édipo (1972). Essa teoria pretende funcionar como uma ontologia da mudança, da transformação, ou do devir.

O rizoma se apresenta como um emaranhado de relações, que aponta e se alastra em todas as direções ao mesmo tempo, e no qual cada nó pode ligar-se a qualquer outro; um rizoma não pressupõe uma diferenciação entre sujeito e objeto (o princípio da ontologia simétrica) e não apresenta começo nem fim, abolindo, portanto, a direção e o sentido do próprio tempo, que, por consequência, não se apresenta mais como uma sucessão de passado, presente e futuro: “Um rizoma não tem começo nem fim; está sempre no meio, entre as coisas, é um inter-ser (interbeing, na versão em inglês utilizada aqui), um intermezzo” (Deleuze & Guattari, 2004, p. 27).

Outra característica que se evidencia é que o rizoma se apresenta diferente cada vez que se olha para ele. Os rizomas se encontram em estado de permanente devir, ou seja, na iminência de tornarem-se outros; além disso, apresentam agentes desterritorializados e em estado simbiótico com outros agentes, o que, por consequência, promove sua modificação e favorece a emergência de uma nova e única condição, a qual se constitui na única realidade possível. O novo estado de coisas, ou a nova composição que se apresenta é caracterizada por propriedades emergentes aquém e além da mera soma de suas partes. Ou seja, tornar-se é uma combinação de partes heterogêneas, é uma aliança e não apenas uma mera filiação entre as partes: “A árvore é filiação, mas o rizoma é uma aliança, exclusivamente uma aliança” (idem).

Na dimensão abstrata e virtual da aliança rizomática dos sistemas, ecoa o conceito deleuziano de corpo sem órgãos, introduzido no livro A Lógica do Sentido de Gilles Deleuze (1969), mas que, no entanto, ganhou maior relevância e tornou-se proeminente a partir de seu trabalho em colaboração com Félix Guattari.

Segundo os autores, cada corpo tem (ou expressa) um conjunto único de características, hábitos, movimentos etc., mas que, além disso, possui também uma dimensão virtual, um reservatório de características, potencialidades, conexões e movimentos possíveis. Esse conjunto de potenciais é o que eles chamaram de corpo sem órgãos. O corpo sem órgãos é ativado ou torna-se real de fato por meio da ação/interação com outros corpos e/ou com outros corpos sem órgãos. Os conceitos por detrás dos termos real e actual (real de fato) têm relação com o que, em filosofia, são os princípios de potencialidade e realidade — dicotomia utilizada por Aristóteles a fim de analisar o movimento, a causalidade, a ética e a fisiologia em suas obras Física, Metafísica, Ética e De Anima. Real remete a algo real, mas que ainda pode estar apenas em um estado de potencialidade, não se tendo tornado efetivo. Actual, por outro lado, remete ao “de fato real”, isto é, efetivo, algo que se torna real por meio de ação, interação, movimento, mudança ou atividade que representa o exercício ou cumprimento de uma possibilidade. Exemplo: uma tesoura tem o potencial de cortar tecido ou matar alguém e ambos, a tesoura e seu potencial, são reais, mas, se a tesoura for guardada na gaveta, seu potencial de cortar ou matar não será consumado. A tesoura só atingiria a capacidade de cortar ou matar de fato se a ação de cortar um tecido ou matar alguém fosse executada.

O conceito de corpo sem órgãos, inicialmente, se referia apenas à dimensão virtual do próprio corpo, mas, em Mil Platôs (1980), Deleuze e Guattari começaram a utilizar o conceito em sentido mais amplo, para se referir à dimensão virtual da realidade em geral.

O desenvolvimento dos conceitos de rizoma e corpo sem órgãos, no trabalho conjunto com Gilles Deleuze, e a argumentação de Guattari em defesa da expansão da teoria autopoiética para além do domínio biológico, em Caosmose, ajudaram a preencher, pelo menos em parte, a lacuna deixada por Maturana e Varela no aprofundamento das questões relativas à interação dos sistemas/organismos com o ambiente – ao menos no que diz respeito à transposição do conceito de autopoiese para o campo das ciências humanas, no qual as redes não exclusivamente biológicas operam em alianças rizomáticas, como anteriormente explorado.

A partir de Deleuze e Guattari, o ambiente se transformou de uma mera perturbação que conduz à adaptação dos sistemas autopoiéticos – como em Varela e Maturana – em corresponsável pela própria constituição dos sistemas e das alianças em questão. Além disso, passou a contribuir com o modo como esses sistemas interagem uns com os outros, independentemente de serem de mesma natureza ou de natureza diversa, ou seja, de natureza alo- ou autopoiética. A partir dos conceitos de Deleuze e Guattari, a complexa aliança entre sistemas pode ser identificada, descrita e analisada no ambiente das contingências e dos contextos associativos.

 

REFERÊNCIAS 

DELEUZE, Gilles. Lógica do Sentido. Tradução: Luiz Roberto Salinas Fortes. São Paulo: Perspectiva, 2007.

DELEUZE, Gilles and Félix Guattari. A Thousand Plateaus: Capitalism and Schizophrenia. London/ NY: The Continuum Publishing Company, 2004.

FANAYA, Patrícia. Autopoiese, Semiose e Tradução: Vias para a Subjetividade nas redes Digitais. 2014. F. 151. Tese de doutorado em Comunicação e Semiótica (maiúscula pois é o nome do Programa) – Pontifícia Universidade Católica, SP.

GUATTARI, Félix. Caosmose: um novo paradigma estético. Tradução: Ana L. Oliveira e Lúcia C. Leão. Coleção Trans. 2. ed. Rio de Janeiro, Ed. 34, 2012.

MATURANA, Humberto & Francisco Varela. De Máquinas e Seres Vivos — Autopoiese: A organização do vivo. 3. ed.; Tradução Juan Acuña Llorens. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997.

VARELA, Francisco; MATURANA, Humberto. Autopoiesis and Cognition: The Realization of the Living. Dordrecht: Holland/Boston, USA: D. Reidel Publishing Company, 1980.

VARELA, Francisco; MATURANA, Humberto. A Árvore do Conhecimento: as bases biológicas da compreensão humana. Tradução: Humberto Mariotti e Lia Diskin. São Paulo: Palas Athena, 2011.''

Sem comentários:

Enviar um comentário