«Sou filho de camponeses, passei a infância numa daquelas aldeias da Beira Baixa que
prolongam o Alentejo e, desde pequeno, de abundante só conheci o sol e a água. Nesse
tempo, que só não foi de pobreza por estar cheio do amor vigilante e sem fadiga de minha
mãe, aprendi que poucas coisas há absolutamente necessárias. São essas coisas que os
meus versos amam e exaltam. A terra e a água, a luz e o vento consubstanciaram-se para
dar corpo a todo o amor de que a minha poesia é capaz. As minhas raízes mergulham desde
a infância no mundo mais elementar. Guardo desse tempo o gosto por uma arquitectura
extremamente clara e despida, que os meus poemas tanto se têm empenhado em reflectir; o
amor pela brancura da cal, a que se mistura invariavelmente, no meu espírito, o canto duro
das cigarras; uma preferência pela linguagem falada, quase reduzida às palavras nuas e
limpas de um cerimonial arcaico - o da comunicação das necessidades primeiras do corpo e
da alma. Dessa infância trouxe também o desprezo pelo luxo, que nas suas múltiplas
formas é sempre uma degradação; a plenitude dos instantes em que o ser mergulha inteiro
nas suas águas, talvez porque então o mundo não estivesse dividido, a luz cindia (dividida),
o bem e o mal compartimentados; e, ainda, uma repugnância por todos os dualismos, tão do
gosto da cultura ocidental, sobretudo por aqueles que conduzem à mineralização do desejo
num coração de homem. A pureza, de que tanto se tem falado a propósito da minha poesia,
é simplesmente paixão, paixão pelas coisas da terra, na sua forma mais ardente e ainda não
consumada»
ANDRADE, Eugénio – Poesia e Prosa. 3ª ed. Lisboa: Círculo de Leitores, 1987, vol. 3, p. 123-124.
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