«-És um homem muito estranho, não concordas?
- Talvez, sim. Mas… não fui eu que me transformei. Foi o meu compromisso com Deus.
- Ouve lá, não serás capaz de acabar com essa palavra “Deus”? Pões-me nervosa; não
consigo relacioná-la com nada. Não me diz nada. Desde os meus tempos de colégio que me
sinto totalmente alheia a essa palavra que os padres estrangeiros trazem constantemente na
boca.
- Perdão. Se não te agrada, podemos trocá-la por outra. Podemos chamar-lhe, sei lá,
Tomate, ou Cebola, se achares preferível.
- Está bem. Diz-me então, quem é esse Cebola para ti? Disseste na universidade, quando
alguém te perguntou se Deus existe, que não o podias compreender muito bem.
- Perdão… falando honradamente, nessa altura não o compreendia. Mas agora, embora à
minha maneira, sei quem é.
- Explica-te.
- Mais do que uma existência, Deus é uma força. Esse Cebola é alguém que se exprime e
comunica em gestos de amor.
- Pior! Mais repulsivo ainda! Como podes usar essa palavra amor, que não liga puto com a
cara de aço que lhe vi na Kultur Heim? E o que entendes por gestos?
- Supõe, por exemplo, que o Cebola me encontrou abandonado em qualquer sítio e,
estendendo-me a mão, fez de mim alguém.
Mitsuku riu-se abertamente.
- O que é que isso tem a ver com o poder do teu Cebola? Foram só os teus sentimentos que
te levaram nessa direcção.
- Não é verdade. Foi um gesto do Cebola acima da minha vontade. – Pela primeira vez,
Otsu falou com decisão e levantou os olhos para a enfrentar»
ENDO, Shusaku – Rio profundo. Porto: ASA, 1997, p. 98-100
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