sábado, 2 de setembro de 2017

Mundo, se te conhecemos,
porque tanto desejamos
teus enganos?
E, se assim te queremos,
muito sem causa nos queixamos
de teus danos.


Tu não enganas ninguém,
pois a quem te desejar
vemos que danas;
se te querem qual te vem,
se se querem enganar,
ninguém enganas.


Vejam-se os bens que tiveram
os que mais em alcançar-te
se esmeraram;
que uns, vivendo, não viveram,
e os outros, só com deixar-te,
descansaram.


E se esta tão clara fé
te aclara teus enganos,
desengana ;
sobejamente mal vê
quem, com tantos desenganos,
se engana.


Mas como tu sempre morres
no engano em que andamos e que vemos,
não cremos o que tu podes,
senão o que desejamos
e queremos.


Nada te pode estimar
quem bem quiser estimar-te
e conhecer-te;
que em te perder ou ganhar,
o mais seguro ganhar-te
é perder-te.


E quem em ti determina
descanso poder achar,
saiba que erra;
que sendo a alma divina,
não a pode descansar
nada da terra.


Nascemos para morrer,
morremos para ter vida,
em ti morrendo.
O mais certo é merecer
nós a vida conhecida,
cá vivendo.


Enfim, mundo, és estalagem
em que pousam nossas vidas
de corrida;
de ti levam de passagem
ser bem ou mal recebidas
na outra vida.

Luís Vaz de Camões, in «Cartas»

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