domingo, 9 de outubro de 2016

"A assustadora estirpe dos homens práticos e dos técnicos instalou-se, um pouco por toda a parte, nos mais secretos lugares do coração das nossas sociedades, vampirizando a sua identidade e as suas forças e sujando o seu sangue mais profundo. Os poetas foram expulsos da cidade e resistem – os que resistem e ainda não se converteram também ao espectáculo industrial em que a arte e a cultura se transformaram – em obscuras catacumbas interiores, celebrando clandestinamente aos deuses caídos da esperança e da gratuitidade.
Que futuro pode ter uma sociedade sem esperança e sem poesia? (...) Vejo a sanha com que os nossos líderes políticos e os «pivots» dos telejornais espezinham furiosamente os restos da tragédia em que descambou a utopia comunista e pergunto-me se, neles, nesses terríveis destroços, eles odeiam os crimes do socialismo real (o maior dos quais terá sido, provavelmente, o da traição à utopia igualitária) ou se não é, antes, a própria ideia de utopia e de esperança que, incapazes de compreender, eles sobretudo odeiam e perseguem. (...) E que nos oferecem eles em troca? Comércio. Como se os homens pudessem viver, viver e não tão-só sobreviver, de comércio, e como se as sociedades pudessem, desde sempre, prescindir dos grandes sonhos irrealizáveis e dos grandes mitos de que os poetas, e os artistas, e os filósofos, são a alma e o corpo. Como disse o poeta, eles não sabem (nem sonham) que é o sonho, e não as cotações da bolsa, que comanda a vida, e que pelo sonho é que vamos. (...)"

Manuel António Pina 
JN_07/10/1992

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