segunda-feira, 9 de maio de 2016

"Agora, és outra pessoa,
cheia de banalidades e pequenas alegrias.
O tempo e a distância encarregaram-se disso.
Sim, na minha ausência é costume desmoronarem-se
as encostas, outrora cuidadosamente escoradas.
Mas, mesmo colocando de parte o meu ego,
é evidente o encanto da normalidade,
da paz doméstica e social
e do correcto dimensionamento de cada um,
sem megalomanias nem paióis de pólvora seca,
sem insónias nem gritos
nem fantasmas de grandes artistas e pequenos ditadores
(ou vice-versa)
a correrem pela casa.
Não gosto de gatos nem de crianças,
de celebrações colectivas e famílias,
de prolongadas distensões estivais,
nem sei estar indubitavelmente presente,
como o frasco dos picles, na prateleira de baixo do armário.
Nunca soube nem fingi saber – conceder-me-ás isso,
assim como reconheço que nunca, sequer, senti culpa
por todos os pecados que pequei e pecarei
enquanto o tabaco não me paralisar os pulmões.
Os meus dias são feitos de excessos e vazios
e o vazio excessivo é a própria matéria por que pugno
o muito tempo todo em que não me calha compor
estas vagas linhas sobrepostas
a que insistem em chamar poesia
mas que são apenas a minha maneira de bocejar sem sono.
Era impossível permanecermos juntos –
dizem-mo a razão e a urgência de um impulso vital
para qualquer coisa só por ser a seguinte. No entanto,
uma mágoa moinha-me a pequena hélice do coração,
enquanto, à pressa, trinco uma sandes de mundo
na cantina do niilismo (ou vice-versa)
ou conduzo um carro de vento rumo ao Magreb medieval.
Das horas que passámos juntos não há remissão
e isso consola-me como nada mais, num recanto
muito fotogénico da memória ou talvez disso a que se chama alma.
Espero que esta te vá encontrar bem,
com meninos à ilharga, um marido que leia
o Diário de Notícias e romances históricos
e, apesar de tudo, um sorriso
ante a imensa precisão com que coloco uma mão toda
nas feridas dos outros
para evitar o ardor da tintura de iodo
nas minhas."

Miguel Martins
7/5/2016

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