domingo, 20 de março de 2016
«Os cães estão deitados à tua espera.
Ninguém tocou nas tuas roupas ou mudou
o sítio dos teus parcos objectos.
A tua falta é uma clareira aberta
no coração dos dias. Eu retorno à escrita,
vacilante, animal atordoado pelo estio,
agastado por um desespero grave e incolor.
Os cães ladram à espera que regresses,
percorrem a noite de extremo a extremo
com o seu passo miúdo, e eu fico de pé
com o sal das lágrimas a arder nos lábios.
Não te demores, que há uma incandescente
flor azul no lugar onde te sentavas,
um livro ilegível à míngua de enredo,
uma concha de murmúrios em que te digo:
a tua voz continua a iluminar os quartos.»
José Jorge Letria. O Fantasma da Obra II. Antologia Poética 1993-2001. Hugin, 2002, Lisboa, 2003., p. 63
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