Layla Alexander-Garrett: “Tarkovsky acreditava que o amor deve ser um acto, uma acção”
Layla Alexander-Garrett colaborou com Andrei Tarkovsky em alguns momentos da sua carreira, especialmente na rodagem de Offret (O Sacrifício, 1986), na qual foi sua intérprete e assistente pessoal (função para a qual Tarkovsky insistiu durante muito tempo que tinha de ser exercida por um homem…). Licenciada em Estudos Fílmicos pela Universidade de Estocolmo e há muitos anos sediada em Londres, é autora de Andrei Tarkovsky: The Collector of Dreams e do livro-álbum fotográfico Andrei Tarkovsky: A Photographic Chronicle of the Making of The Sacrifice, organizando também frequentemente ciclos e outras iniciativas relacionadas com a obra do Mestre russo. Terminou a entrevista, realizada por Skype, a dizer-me para continuar a ter paixão naquilo que faço e, um pouco à maneira de Tarkovsky, tocou-me, sem o saber, num momento particular.
Tarkovsky era uma das pessoas, uma daquelas raras pessoas, que deixava algo na alma dos outros. Ele era uma pessoa absolutamente inesquecível. A actriz principal de Zerkalo (O Espelho, 1975), Margarita Terekhova, disse que Tarkovsky criava uma espécie de “círculo mágico” e que as pessoas que entravam nesse círculo ficavam aí para sempre. Não havia muita gente a quem ele permitia que entrassem nesse círculo, mas, se entrassem, não mais saíam de lá. Tarkovsky queria trabalhar [na rodagem de Offret] com um intérprete masculino, porque a rodagem ia decorrer muito muito cedo, nas “noites brancas”, pelas 3h00 da manhã, e achava que uma mulher não ia aguentar. Ele entrevistou muitos homens para essa função e rejeitou-os porque eram intérpretes profissionais, estritamente profissionais. Ele estava à procura de uma espécie de alquimia com essa pessoa, alguém que sentisse próximo ou ligado a si. Eu não sou uma intérprete profissional. Já nos conhecíamos de Moscovo e estivemos juntos em Itália, quando ele rodava o Nostalghia (Nostalgia, 1983). Eu não trabalhava na indústria, Tarkovsky é que me telefonou quando veio para a Suécia e perguntou-me se eu estava livre. Eu estava naquele momento a preparar-me para um exame de condução e estava muito nervosa, mas disse que claro que me encontraria com ele. Nessa noite, fomos ver o documentário Dokument Fanny och Alexander (Fanny e Alexander: Diário de uma Filmagem, 1986). O produtor chamou-me para o primeiro dia, para o segundo dia, para o terceiro dia, e depois para todo o período de rodagem.
Sim, sempre, a todo o momento. E não eram só saudades da sua pátria, da sua amada Rússia, mas também da sua família. O seu segundo filho estava na Rússia, retido pelas autoridades. O filho conseguiu ir vê-lo a Paris [i.e., o regime autorizou tal visita], mas apenas quando nós lhes enviámos [às autoridades soviéticas] uma cópia dos Raios-x de uma pessoa a morrer. E isto foi já na altura da Perestroika do Gorbatchev! Portanto, ele conseguiu ver o filho no ano em que morreu. Claro que ele tinha saudades da Rússia e dos amigos, estava sempre a dizer que queria voar para visitar os amigos, beber vodka, ver o seu cão! Numa vez que telefonou para Moscovo, passou-me o telefone e disse: “Ouve, ouve, o meu cão gosta tanto de mim, ele tem saudades minhas e lembra-se de mim!”. Tudo isto lhe partia o coração.
Absolutamente, na literatura e no cinema russos. Nostalghia é um filme sobre esse sentimento, essa espera pelo regresso à nossa terra. Mas podemos discutir, visto que o Tarkovsky era tão multifacetado e genial, o que é a nossa “terra”, a nossa “casa” – onde é que a nossa alma tenta regressar? Não é necessariamente à Rússia, é voltar à origem, a um estado superior, ao Paraíso, a Deus, a qualquer coisa a esse nível.
Tarkovsky era uma pessoa muito charmosa, que encantava toda a gente, as mulheres particularmente. Toda a gente gostava dele, até porque era um homem muito bonito. Mas quando a rodagem de Offret começou, começaram também os problemas com Sven Nykvist [director de fotografia e colaborador habitual de Ingmar Bergman], porque o Andrei era, por vezes, um pouco insensível. Estava sempre a saltar para a frente da câmara, a filmar, a controlar a mise en scène, tudo. E, de repente, dizia simplesmente: “agora é para filmar!”. E o Sven dizia: “mas eu ainda nem vi o ensaio!”. Sven estava um bocado chateado, sentia como se o Tarkovsky lhe quisesse roubar a sua função. Eu traduzi isto para o Andrei e ele pediu imensas desculpas e disse que não queria incomodar ou magoar o Sven, mas que não conseguia ver o filme apenas através da câmara. Era a única forma de ele conseguir observar a composição, a mise en scène, o movimento dos actores – eu chamar-lhe-ia de “coreografia”, o modo como ele coreografava o movimento dos actores durante o plano, de uma forma nunca estática. Ele era muito exigente e as pessoas ficavam por vezes irritadas. Ele metia o nariz nos assuntos de toda a gente. Se fosse um jornalista, ele ia ter com ele e dizia-lhe: “O que estás a escrever?”. Ele era assim! As pessoas comentavam: “porquê que ele não se mete nos assuntos dele?”, mas ele queria participar em tudo, fazer parte de todo o processo. Ele não era do tipo de chegar, sentar-se na cadeira do realizador, começar e acabar. Ele era diferente.
Ele era uma pessoa muito séria, mas muito divertida [risos]. Nós rebolávamos a rir quando ele contava anedotas ou piadas. Ontem, participei num ciclo de conferências no Freud Museum [Londres], convidaram-me para debater o Offret. Muitas pessoas fizeram-me exactamente essa pergunta: “ele era uma pessoa com sentido de humor?”. Na verdade, li algures que alguém está a escrever um livro ou artigo chamado “Tarkovsky e o sentido de humor”. No Offret, há momentos com muito humor e, como você disse, no Andrey Rublyov. Também no Nostalghia, quando a anedota é contada junto à piscina… Sim, há humor. Mas claro que o seu propósito não era esse, não era entreter as pessoas com os seus filmes, mas sim fazê-las pensar e levá-las talvez a outra dimensão, mostrar-lhes que há outra dimensão. O conselho que ele deixou aos realizadores mais jovens foi para não separarem as vidas, os sentimentos, os pensamentos, dos filmes. A alma do realizador, os seus pensamentos, sentimentos, mágoas, medos, devem estar sempre no filme. Tarkovsky era muito espirituoso, gostava de entreter as mulheres. Ele costumava dizer-me: “Oh, Layla! Se uma mulher se aborrecer comigo, eu dou um tiro em mim próprio!”. Muitas vezes, durante a rodagem de Offret, eu estava cansada e aborrecia-me, mas dizia-lhe para ele não se matar! [risos]. Ele era um grande homem, engraçado, inspirador, nunca ninguém se sentia aborrecido com ele. Era também muito carinhoso com as mulheres e, se alguém da equipa não estivesse bem disposta, ele pedia-me: “Layla, vai perguntar-lhe o que se passa, se calhar aconteceu-lhe alguma coisa, ela parece que esteve a chorar…”. Preocupava-se muito com as pessoas, era como uma esponja, alguém muito sensível.
Concordo e discordo. Quando Tarkovsky estava a filmar, ele disse ao Erland Josephson [actor e colaborador habitual de Ingmar Bergman]: “Imagina que estás tão desesperado, que não há ajuda, que não há ninguém a recorrer, que compreendes que é o fim do mundo. E que o teu filho e os teus próximos deixarão de existir em breve. Tu não irás provavelmente pensar provavelmente em Deus, porque Alexander [personagem interpretada por Josephson] é mais um ateu do que um homem religioso. Tu tens que cair no chão, mas o espectador não deve perceber se é porque estás desesperado, bêbedo, doente ou outra coisa qualquer. Mas tens que cair no chão. E tens que te lembrar duma reza. E começar a dizê-la, porque essa é reza é a mais pura”. É basicamente um momento de desespero e a única esperança é Deus, não porque Alexander pense em comunicar com ele directamente, mas porque existe um medo absoluto, desesperante. Não há nenhuma Mãe para o proteger, ninguém, só Deus. Isso acontece nesse momento, ele fala com Deus. E porque ele faz a promessa, ele tem de a cumprir. No início do filme, Alexander diz: “Palavras, palavras, palavras. Agora eu compreendo o que Hamlet queria dizer”… As pessoas falam demais, os políticos, nós mesmos nas nossas relações… fazemos promessas, falamos e falamos. Mas ninguém faz nada! E é por isso que, quando Alexander faz uma promessa a Deus, não podem ser apenas palavras. Isso é algo que acontece com aquelas pessoas que vão à igreja e que, mesmo não sendo realmente crentes, repetem automaticamente o que lhes dizem para repetir. Mas Alexander tem que agir. Eu penso que Tarkovsky acreditava que o amor, em especial o amor divino, não é apenas sentar-se numa cave a meditar. Sim, pode servir para algumas pessoas, mas tem que se agir, o amor deve ser um acto, uma acção.
Não concordo totalmente. Não penso que se lhe possa chamar um gesto “materialista”. Alexander quer salvar o seu filho e a humanidade. Eu perguntava frequentemente a Tarkovsky: “Porquê que ele não se suicida? Porquê que ele destrói a sua casa e priva a família?”. Ele respondeu-me: “Tu não estás a compreender. Porque a vida não significa nada para ele. Ele podia fazer isso facilmente. Mas ele sacrifica algo que é o mais importante, sagrado, na sua vida: o seu filho e a sua casa”. Isto é, de certa forma, algo imperdoável… No início do filme, quando Alexander se apercebe de que há uma guerra, ele vai ao quarto onde o filho está e quer matá-lo, mas não o faz. Pode dizer-se que um anjo ou algo o impede de o fazer, porque ele não o faz, de facto. Mas, no final, ele tem que cumprir com a sua promessa e incendiar a sua casa e…
Não sei. Não é um “action movie”, é um “awakening movie”, é o que eu lhe chamaria. Nós pensamos que o que acontece no Iraque ou na Síria só acontece lá. Mas não pensamos que amanhã pode ser em Portugal, Inglaterra, França… Colocamos um cobertor por cima de tudo e achamos que está tudo bem. Não fazemos nada desde que aqui esteja tudo bem. Este é um filme que mostra que algo de horrível pode acontecer na nossa casa, no nosso aniversário… Por isso é que eu lhe chamo um film of rebirth, porque, no aniversário de Alexander, ele renasce espiritualmente. Até aí, ele tem a sua vida, o seu trabalho, a sua vida, é rico e está tudo bem. Mas esta situação é um renascimento para ele, numa noite apenas. Ele é encostado à parede e está para ser morto, ele e tudo à sua volta.
Sim! Bom, não ia à igreja todos os dias, mas sim, era muito espiritual. Ele era um searching man. A certa altura, ele quis tornar-se católico e, quando era mais novo, estudou o Corão. Ele estava envolvido em muitos movimentos espirituais ou religiosos, digamos assim. Mas ele era um cristão ortodoxo e ia à igreja. Em Londres, conheceu o Padre Anthony Bloom, um homem extraordinário de quem ele disse que mudou a sua vida. Tarkovsky foi falar com ele sobre Offret, sobre o apocalipse, a traição, o medo e outros assuntos que o preocupavam. Tarkovsky também era alguém muito interessado no Oculto: em todas as cidades que existiam bruxas ou curandeiros, ele queria conhecê-los.
Foi um searching man eternamente. Não conseguimos nunca entender o que é Deus, Deus não é para nós entendermos. Mas temos a curiosidade, o ser humano estaria morto sem a curiosidade! O que quer que façamos, somos curiosos, queremos explorar. Alguns exploram como ganhar dinheiro na bolsa de valores, Tarkovsky fez a sua exploração através da sua obra. O seu filme seguinte, que era um projecto muito pessoal, seria sobre Santo António e sobre os tormentos da alma desse homem, o que poderia ter dado um grande filme, porque Tarkovsky ligou-me muito a essa figura religiosa. Tudo em que ele tocava era a um nível filosófico, não ficava à superfície. Ele queria penetrar no que está para além disso.
Será interessante ver quem irá ver assistir aos filmes do ciclo aí em Portugal. Há um mês atrás, o British Film Institute exibiu todos os filmes do Tarkovsky. As salas estavam praticamente cheias e havia muito pouca gente da minha idade. Havia muito gente nova a assistir aos filmes e a debatê-los! Tarkovsky é extraordinário, ele ressoa em toda a gente, porque é eterno, é como a música clássica: Bach, Beethoven… Toda a gente quererá sempre ouvi-los, seja numa igreja ou na soiréede uma família real. Continuamos a ouvi-los porque nos tocam, pois o que é importante para o ser humano são as coisas eternas: o amor, o medo, a traição, a dedicação, a pureza, a procura. Sabia que Tarkovsky recebeu imensas cartas de prisioneiros depois do lançamento do Zerkalo? Esses prisioneiros escreviam-lhe a dizer que o filme era sobre as suas vidas! Eu conheci um japonês na Suécia que aprendeu russo para poder ver os filmes de Tarkovsky e disse-me: “Zerkalo é um filme sobre mim!”. Um professor escocês também escreveu uma carta a Tarkovsky a dizer o mesmo.
É muito difícil responder. Tudo o que posso dizer é que ele odiava que o chamassem de “dissidente”. Ele dizia: “Eu nunca pedi asilo político, eu nunca quis ser dissidente, por isso não me coloquem por favor nessa categoria!”. Porquê que ele ficou no Ocidente? Porque ele queria fazer Hamlet e outros trabalhos e as autoridades soviéticas não o permitiam na URSS. Foi [o seu exílio], por isso, o protesto de um homem orgulhoso que valorizava o seu trabalho e o que fez pela URSS. Ele trouxe muito prestígio à URSS. Tarkovsky não aguentou mais e, por isso, partiu para poder concretizar esses projectos. Se as autoridades soviéticas lhe tivessem permitido oficialmente trabalhar no Ocidente por dois anos, isto [a morte no exílio] provavelmente não teria acontecido e ele teria voltado à Rússia que ele tanto amava. Se o socialismo tiver uma “face humana”, como se diz, então acho que ele seria feliz, até porque, como ele próprio escreveu, financeiramente, foi muito difícil trabalhar no Ocidente, muito mais do que na URSS. Por isso, é um pau de dois bicos. É muito difícil dizer se ele era pró-capitalista ou pró-socialista… Claro que, se estivermos a falar do socialismo como existe na Suécia, a questão já é muito diferente! [risos]
Ele gostava muito do Sergei Parajanov [Parajanov é arménio, sendo a Arménia, à data, uma das republicas integrantes da URSS]. Para Tarkovsky, Parajanov estava no topo do Olimpo! Ele dizia que nunca faria filmes como Parajanov, sem dinheiro e com aquela fantasia extraordinária. Parajanov viu Ivanovo Detstvo (A Infância de Ivan, 1962) e, depois disso, sempre que alguém lhe tocava à porta de casa, ele perguntava se já tinham visto o filme. Se não o tivessem visto, mandava-os embora e dizia-lhes para ir ver o filme primeiro! [risos] Depois conheceram-se e tornaram-se muito amigos. Quando Parajanov esteve preso, Tarkovsky manifestou-se muitas vezes em favor da sua libertação.
Não. Também se fala num realizador russo, o Andrey Zvyagintsev. Mas eu não concordo e acho que isso não é propriamente um elogio, mas um insulto. Penso que temos de ser nós mesmos. Por exemplo, encontrei um pequeno clip do The Revenant (O Renascido, 2015) no qual se analisa como o filme foi roubado do Tarkovsky, plano por plano. É fascinante! Quando as pessoas fazem isso e não creditam o trabalho de Tarkovsky, é estúpido. Mas isto não interessa! Não se é Tarkovsky por se fazer planos muito longos. Não é a duração do plano, mas a intensidade, o talento, o pensamento, a profundidade da sua voz. Ele tem algo a dizer! Tarkovsky está a destapar a sua alma em frente do espectador nos seus filmes. Tarkovsky era uma pessoa muito reservada, mas, nos seus filmes, ele removia a pele e mostrava o que era, o que pensava, em que é que acreditava. Esses realizadores de que fala usam os filmes no sentido oposto: usam-nos para tapar, não para destapar, para revelar o que são. E é preciso uma enorme coragem para nos destaparmos, para retirarmos as máscaras que cobrem os nossos lados negros e estranhos, pois é com eles que sobrevivemos. Uma vez, num festival sobre os filmes de Tarkovsky que organizei em Londres, um homem procurou-me e disse que me queria contar algo. Disse-me que tinha vindo propositadamente de Itália para me dizer que, no ano em que saiu o Nostalghia, ele se ia suicidar. Num certo dia, ele ia mesmo para casa para se suicidar, já tinha escrito uma carta de despedida. Passou por um cinema onde se lia “Nostalghia” e sentiu que o título tinha muito que ver com o que ele sentia naquele momento. Então, decidiu ir ver o filme, mas saiu a meio porque não o entendeu, e pensou que se iria suicidar de seguida. Mas pensou para si mesmo que não era estúpido, que tinha de ver o filme novamente para o entender. Viu-o novamente e depois uma terceira vez. Disse-me que chorou e chorou… rios de choro. E que, quando saiu da sala, se sentiu vivo. O homem terminou de me contar esta história, despediu-se e desapareceu. É uma história extraordinária que mostra o efeito imprevisível que a obra de Tarkovsky provoca em nós. O que há nela? Não sei o que é, é um mistério, mas ela toca nas pessoas, nas mulheres, nas crianças… é muito difícil dizer o que é. Eu espero que a obra dele viva. Einstein disse que “quando a última abelha desaparecer, a humanidade desaparecerá”… Tarkovsky dizia que “quando o último poeta desaparecer, a humanidade desaparecerá”.
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