segunda-feira, 28 de setembro de 2015

AUTORETRATO

Entre o computador, um lápis e uma máquina de escrever
passo metade do meu dia. Daqui a pouco farei meio século.
Vivo em cidades estranhas e por vezes falo
com estranhos acerca de assuntos estranhos para mim.
Ouço bastante música: Bach, Mahler, Chopin, Shostakovich.
Vejo três elementos na música: fraqueza, poder e dor.
O quarto não tem nome.
Leio poetas, vivos e mortos, que me ensinam
tenacidade, fé e orgulho. Tento compreender
os grandes filósofos – mas habitualmente apanho
apenas fragmentos dos seus preciosos pensamentos.
Gosto de dar longos passeios pelas ruas de Paris
e olhar os meus próximos, agitados pela inveja,
ira e desejo; observar a moeda de prata
que passa de mão em mão e lentamente perde
a sua forma redonda (o perfil do imperador está apagado).
A meu lado crescem árvores que não exprimem nada,
a não ser a sua verde e indiferente perfeição.
Aves negras caminham pelos campos,
sempre à espera de algo, pacientes como viúvas espanholas.
Já não sou jovem, mas há gente mais velha do que eu.
Gosto de dormir profundamente, como se deixasse de existir,
de corridas de bicicleta por caminhos rurais quando álamos e casas
se dissolvem como cúmulos em dias de sol.
Às vezes nos museus os quadros falam para mim
e a ironia esfuma-se de repente.
Encanta-me contemplar o rosto da minha mulher.
Todos os domingos telefono ao meu pai.
De duas em duas semanas reúno-me com os amigos,
para provar a minha fidelidade.
O meu país libertou-se do mal. Desejo
que outra libertação se siga.
Posso eu fazer alguma coisa por isso? Não sei.
Não sou um filho do mar,
como António Machado escreveu sobre si mesmo,
mas um filho do ar, da menta e do violoncelo,
e nem todos os caminhos do alto mundo
Se cruzam com os caminhos da vida que – até ver–
me pertencem.

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