sexta-feira, 24 de abril de 2015

« - Às vezes tenho a impressão de que falo, ou que me escutas, de muito longe. E quando me calo, é como se nenhum de nós fosse real. - E emudeceu, a sopesar a verdade do que dizia.
   -Ao menos tu, serás real?
  Que podia eu dizer-lhe, sem a crosta dos hábitos a defender-me? Segui-lhe no rosto a minha própria emoção.
   -Deves ter razão em duvidar. Para te falar franco, chego a julgar que me inventaste - e apertei os dentes, atravessado por uma dor instantânea.
    -Mas eu não invento a tua frieza.
   Bem vi que outros pensamentos lhe galopavam de encontro às têmporas. Não lhes daria voz, porém. Pelo menos, a todos. Clarisse preferia não esticar, além de certos limites, as cordas do meu enfado. Picava-me, apenas. Ia aceitando, gradualmente, embora com espanto, fúria e terror, o pouco que eu lhe poderia oferecer.
   - Nunca quiseste saber nada de mim. Vá, que sabes tu do meu passado?
    Escorei-me nos antebraços. Procurei um cigarro nos bolsos. Media, à régua, as palavras que iria dizer.
    -Que te sentavas num café com esse arzinho provocante...E se falássemos de outras coisas? A propósito, Clarisse: usavas um gracioso colete de bombazina. Veste-o um dia destes. Ficava-te muito bem.
    Ela fixava-me, dorida, a desvendar um estranho.
    -Escuta, Jorge, agora escuta-me. Quero sentir que estás, realmente, aqui. Tu poderás compreender que eu deseje tanto que saibas tudo de mim? Só assim poderei pertencer-te, como eu quero. - Ela fazia pontaria ao meu mutismo, para o estilhaçar. Mas logo uma ira crispada lhe borbulhava nas narinas frementes. - Dá-me às vezes a impressão de que és um saco de areia. Dou um murro, a mão amolga o saco, mas não se ouve a pancada. E o saco, claro, fica na mesma. Será inútil repetir o murro.»

Fernando Namora. Domingo à Tarde. Editora Arcádia. 4ª Edição. p. 164/5