terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

“Sei apenas que esse silêncio se preenche de tudo o que não sei dizer nem sobretudo me apetece dizer. Como uma rede que sustivesse todas as impurezas, o fio da água passa e a sua pureza me comove e só ela me existe. (...) E é como se eu próprio me evolasse com essa tarde e de mim ficasse o que útil e necessário me sustentasse o viver. Tudo tão pouco – que é que resta sempre de uma vida humana? Mesmo a dos heróis, dos grandes génios da arte e do saber. Depositaram a grandeza que foi sua, o que lhes fica é o nada que os sustenta, a miséria de um corpo que se extingue. Toda a convulsão de uma vida, aguentada agora com uma breve ideia, um frágil apoio, o vazio de si. A vida realiza-se multiplicadamente com a realização de quem a realiza. Com esse nada ou esse tudo se colabora na sua diversificação. Estou só – estás só. Não penses. Não fales. És em ti apenas o máximo de ti. Qualquer coisa mais alta do que tu te assumiu e rejeitou como a árvore que se poda para crescer. (...) O que te distingue e oprime é o pensamento que a pedra não tem para se executar como pedra. E as estrelas, e os animais. Funda aí a tua grandeza se quiseres, mas que reconheças e aceites a grandeza que te excede. Há uma palavra qualquer que deve poder dizer isso, não a sabes – e porque queres sabê-la? É a palavra que conhece o mistério e que o mistério conhece – não é tua. De ti é apenas o silêncio sem mais e o eco de uma música em que ele se reabsorva”.

Vergílio Ferreira, Para Sempre, 1983