quinta-feira, 21 de março de 2013

3


Anoitece, e no céu azul muito escuro
Onde há pouco a igreja de Jerusalém
Resplandecia com misteriosa magnificiência,
Apenas duas estrelas sobre a confusão dos ramos,
E a neve esvoaça de algures sem ser do alto,
Mas como se da terra se erguesse,
Preguiçosa, terna, com cautela.
O meu passeio foi-me estranho nesse dia.
Quando saí, ofuscou-me
O limpo reflexo sobre coisas e rostos,
como se por todo o lado as pétalas pousadas
Dessas rosas pouco grandes amarelo-rosadas,
Cujo nome eu esqueci.
O frio ar seco e sem vento de Inverno
De tal modo acariciava e guardava cada som
Que me parecia: o silêncio não existe.
E na ponte, pela balaustrada ferrugenta
Enfiavam as mãos com pequenas luvas
As crianças, para alimentar patos sôfregos e matizados
Que mergulhavam na brecha cor de tinta.
E eu pensei: não pode ser
Que um dia eu esqueça isto.
E se um caminho difícil está à minha frente,
Eis um leve peso, que posso
Carregar comigo para na velhice, na doença,
Quem sabe, na miséria - recordar
O pôr do sol exaltado, e a plenitude
Das forças da alma, e o fascínio da vida querida.


1914-1916

Anna Akhmatova. Poemas. Edição Bilingue. Tradução do russo, selecção e notas de Joaquim Manuel Magalhães e Vadim Dmitrier. Edições Cotovia, Lisboa, 1992., p. 47