quarta-feira, 15 de agosto de 2012

''cálice com cicuta que bebera por engano''


«sentia numa onda o torpor de quem lentamente adormece; é o veneno, pensou; veneno não da aranha mas do cálice, do cálice com cicuta que bebera por engano, não tanto por engano como os outros poderiam pensar, mas ele cuspia no que os outros fossem dizer ou pensar, só que se antecipara, vira o líquido tão belo, tão fascinante colorindo o cálice e não resistira e quando quis impedir a boca de beber tinha já pelo veneno refrescados os lábios e quando ainda quis obstar a que a garganta engolisse já o estômago arrefecera com as primeiras gotas e todo ele se sentia do líquido que o convertia na sua cor, a cor daquele líquido tão belo, tão fascinante aquele líquido; o escravo viera interromper a conversa com os discípulos, o escravo trazia um cálice em sua negra mão, o escravo era o ponteiro do relógio que marcava a hora;»



Almeida Faria. Rumor Branco. Portugália Editora, Lisboa, 1962., p. 134