segunda-feira, 28 de maio de 2012
domingo, 27 de maio de 2012
atavismo
nome masculino
condição que exprime o reaparecimento, num indivíduo, de caracteres que pertenciam a gerações antepassadas e que tinham já deixado de se
manifestar |
(Do latim atăvu-, «antepassado; pai do trisavô» +-ismo)
segunda-feira, 21 de maio de 2012
« - Tu és ingénuo e pedante...patrão, salvo o devido respeito - disse finalmente. - Tudo o que digo é como se estivesse a cantar.
- Como assim? - protestei eu. - Compreendo-te muito bem, Zorba!
- Sim, compreendes com a cabeça. Tu dizes: «Isso é justo, é assim, ou não é assim; tens razão ou não tens. Mas a que nos leva isso? Eu, enquanto tu falas, observo os teus braços, o teu peito. Pois bem, que fazem eles? Ficam mudos. Nada dizem. Como se não tivessem uma gota de sangue. Então como queres tu compreender? Com a cabeça? Pff!»
Nikos Kazantzaki. O Bom Demónio. Tradução de Fernando Soares. Editora Ulisseia, Lisboa,p. 239
«Cala-te!Cala-te! - gritou. - Porque me dizes isso patrão? Porque me envenenas o coração? Eu estava bem aqui; porque me transtornas? Tinha fome, e o bom Deus ou o Diabo ( que eu seja enforcado se vejo alguma diferença) dava-me um osso que eu lambia. E mexia a cauda dizendo: «Obrigado! Obrigado!» Agora...
Nikos Kazantzaki. O Bom Demónio. Tradução de Fernando Soares. Editora Ulisseia, Lisboa,p. 199
''Só eu era impotente e racional, o sangue não me fervia, não amava nem odiava com paixão.''
«Só eu era impotente e racional, o sangue não me fervia, não amava nem odiava com paixão. Ainda agora tentara compor as coisas, deixando tudo, a cargo do destino.»
Nikos Kazantzaki. O Bom Demónio. Tradução de Fernando Soares. Editora Ulisseia, Lisboa,p. 177
Nikos Kazantzaki. O Bom Demónio. Tradução de Fernando Soares. Editora Ulisseia, Lisboa,p. 177
«Pela minha carta, compreenderás como sou um homem infeliz. É só quando falo contigo que tenho a esperança de aliviar um bocado a minha neurastenia. Pois tu tens, como eu, um diabo dentro de ti, mas não sabes ainda como ele se chama, e, como não sabes, abafas. Baptiza-o, patrão, e alivias-te!»
Nikos Kazantzaki. O Bom Demónio. Tradução de Fernando Soares. Editora Ulisseia, Lisboa,p. 160
«Eu também, patrão, tenho assim um diabo em mim e chamo-lhe Zorba. O Zorba de dentro não quer envelhecer, não envelheceu, nunca envelhecerá. É um comilão, tem os cabelos pretos como um corvo, trinta e dois dentes e um cravo vermelho atrás da orelha. Mas ao Zorba de fora deu-lhe a bolha, pobre-diabo, apareceram-lhe os cabelos brancos, tem rugas, está encarquilhado, os dentes caem-lhe e a grande barriga está cheia de pêlos brancos da velhice, de compridas crinas de burro.»
Nikos Kazantzaki. O Bom Demónio. Tradução de Fernando Soares. Editora Ulisseia, Lisboa,p. 159
'' o coração do homem é uma sepultura cheia de sangue''
Nikos Kazantzaki. O Bom Demónio. Tradução de Fernando Soares. Editora Ulisseia, Lisboa,p. 131
Mulher
«Quem criou portanto esse dédalo da incerteza, esse templo de presunção, esse cântaro de pecados, esse campo semeado de mil ardis, essa porta do Inferno, esse cesto transbordante de astúcias, esse veneno que lembra o mel, essa cadeia que prende os mortais à terra: a mulher?»
Nikos Kazantzaki. O Bom Demónio. Tradução de Fernando Soares. Editora Ulisseia, Lisboa,p. 124
domingo, 20 de maio de 2012
Neste círculo são castigados os culpados de gula
«É o terceiro círculo, o da chuva eterna, maldita, fria e densa, que cai sempre abundante e com a mesma persistência. Grande granizo, água negra e neve caem em turbilhão através das trevas, a terra enlameada exala um odor hediondo. Cerbero, fera cruel e monstruosa, ladra com as três caninas fauces contra os infelizes que ali permanecem submersos. Tem olhos avermelhados, pelagem negra e hirsuta, ventre desmedido; e com as patas crava as unhas nos condenados, arranca-lhes a pele e esquarteja-os. A chuva fá-los uivar; umas vezes os desgraçados apresentam um lado do corpo à chuva, outras vezes o outro.»
Dante. A Divina Comédia (Tomo I). Tradução Rui Viana Pereira. Ediclube., p. 29/30
turba
nome feminino
1. | magote de gente; multidão |
2. | povo; vulgo |
3. | coro de vozes;
em turba tumultuosamente
|
(Do latim turba-, «idem»)
Perguntei ainda: «Mestre, que amarga dor os faz lamentarem-se tanto?»
Dante. A Divina Comédia (Tomo I). Tradução Rui Viana Pereira. Ediclube., p. 20
«Porque guardas tanta cobardia no coração?»
Dante. A Divina Comédia (Tomo I). Tradução Rui Viana Pereira. Ediclube., p. 18
pugnar
verbo transitivo
1. | tomar a defesa de (algo ou alguém); defender |
2. | combater; lutar; pelejar |
3. | discutir
acaloradamente |
(Do latim pugnāre, «idem»)
«Se bem compreendi as tuas palavras - respondeu a sombra veneranda - a tua alma está possuída do medo que muitas vezes impede o homem de prosseguir uma empresa honrada, como uma sombra irreal assusta a fera que devassa a escuridão.»
Dante. A Divina Comédia (Tomo I). Tradução Rui Viana Pereira. Ediclube., p. 17
Canto Primeiro
«Dante, afundado no pântano do pecado (a selva escura)
pelas paixões da luxúria, da soberba e da avareza,
simbolizadas por feras no poema, anseia por libertar-se
e é auxiliado na fuga por Virgílio»
Dante. A Divina Comédia (Tomo I). Tradução Rui Viana Pereira. Ediclube
pelas paixões da luxúria, da soberba e da avareza,
simbolizadas por feras no poema, anseia por libertar-se
e é auxiliado na fuga por Virgílio»
Dante. A Divina Comédia (Tomo I). Tradução Rui Viana Pereira. Ediclube
sábado, 19 de maio de 2012
Misantropo
Arrefeceu. Tenho andado a apanhar lenha,
Com os dedos entorpecidos, quase insensíveis,
Revolvendo as folhas quebradiças para encontrar
Galhos húmidos. Tenho andado curvado
Toda a tarde, empilhando-os para secar,
E, toda a tarde, tenho ouvido, vezes sem conta,
Duas notas decrescentes: uma suave e melancólica melodia,
Como se uma ave chamasse, do seu abrigo de ramos,
Agora não, agora não, agora não.
Dos silvados, retiro um a um galhos para queimar.
Surpreendido pela sombra, ergo-me e vejo,
Ficando meio cego, o frio pôr-de-sol vermelho
Por entre os ramos enredados de uma árvore sem folhas.
Recordo-me de anteriores poentes, especialmente em
Que assim coloria o ferro, branco acinzentado
E escurecido, e o cimento enrugado de um posto de sentinela
Com o seu alaranjado frio. Deixem-me ver, um segundo,
Agora não, agora não, agora não.
É tão dolorosa e apagada essa recordação,
Embora eu ali também vivesse o dia-a-dia.
Porém a comparação torna-se consciente
Do calor e da luz ténues, que eram
Ou pareceram ter sido menos ténues que hoje.
A ave cala-se. Indiferente neste instante isolado
Eu sei que, ouvindo o vento agitar-se num galho,
Sempre hei-de escutar assim um incessante
Agora não, agora não, agora não.
Thom Gunn. A Destruição do Nada e outros poemas. Tradução de Maria de Lourdes Guimarães. Relógio D' Água, Lisboa, 1993., p. 35
« - O seu secreto e silencioso desgosto.»
Thom Gunn. A Destruição do Nada e outros poemas. Tradução de Maria de Lourdes Guimarães. Relógio D' Água, Lisboa, 1993., p. 31
quinta-feira, 17 de maio de 2012
quarta-feira, 16 de maio de 2012
''Escolhera permanecer morto,''
Thom Gunn. A Destruição do Nada e outros poemas. Tradução de Maria de Lourdes Guimarães. Relógio D' Água, Lisboa, 1993., p. 17
''Eu fui tudo o que sou e fui o que não sou.''
Thom Gunn. A Destruição do Nada e outros poemas. Tradução de Maria de Lourdes Guimarães. Relógio D' Água, Lisboa, 1993., p. 11
sexta-feira, 11 de maio de 2012
A PROPÓSITO DE CERTAS POESIAS AINDA NÃO ESCRITAS
«(...) virá um momento em que faremos poemas cansados, vazios de promessas, aqueles que justamente assinalarão o fim da aventura.»
Cesare Pavese.Trabalhar Cansa. Tradução e introdução de Carlos Leite. Edições Cotovia, Lisboa, 1997., p. 299
O Ofício de Poeta
«Tornava-me cada vez mais capaz de subentendidos, de meios tons, duma composição rica, e cada vez menos convencido da necessidade do meu trabalho.»
(...)
«Obstinava-me em narrar e não podia, certamente, perder-me na decoração gratuita.Mas é um facto que as minhas imagens - as minhas relações imaginárias - se complicavam, ramificando-se incessantemente
em atmosferas rarefeitas.»
em atmosferas rarefeitas.»
(Novembro de 1934)
Cesare Pavese. Trabalhar Cansa. Tradução e introdução de Carlos Leite. Edições Cotovia, Lisboa, 1997., p. 299
''Não há coisa mais amarga do que a aurora dum dia
em que nada acontecerá. Não há coisa mais amarga
do que a inutilidade. Pende cansada no céu
uma estrela esverdeada, surpreendida pela madrugada.
Vê o mar ainda escuro e a mancha de fogo
a que o homem, para fazer alguma coisa, se aquece;
vê e cai de sono entre as pardas montanhas
onde há um leito de neve. A lentidão da hora
não tem piedade de quem já nada espera.''
em que nada acontecerá. Não há coisa mais amarga
do que a inutilidade. Pende cansada no céu
uma estrela esverdeada, surpreendida pela madrugada.
Vê o mar ainda escuro e a mancha de fogo
a que o homem, para fazer alguma coisa, se aquece;
vê e cai de sono entre as pardas montanhas
onde há um leito de neve. A lentidão da hora
não tem piedade de quem já nada espera.''
Cesare Pavese. Trabalhar Cansa. Tradução e introdução de Carlos Leite. Edições Cotovia, Lisboa, 1997., p. 273
segunda-feira, 7 de maio de 2012
carpideira
nome feminino
1. | pessoa a quem se paga para chorar os defuntos durante os funerais |
2. | figurado mulher que anda sempre a lastimar-se |
3. | figurado lamúria; choradeira |
«Grécia, pátria, dever, na verdade nada querem dizer, mas é por esse nada que vamos morrer voluntariamente.»
Mas porque te escrevo isto? Para te dizer que nada esqueci do que vivemos juntos. Para ter também uma ocasião de exprimir aquilo que nunca, por causa do hábito bom ou mau que adoptámos de nos contermos, me é possível revelar quando estamos juntos.
Agora que não estás na minha frente, que não vês a minha cara e que não corro o risco de parecer ridículo, digo-te que te amo muito.»
Nikos Kazantzaki. O Bom Demónio. Tradução de Fernando Soares. Editora Ulisseia, Lisboa,p. 103
«Ao espírito voltam todas as recordações amargas enterradas no coração - separações de amigos, sorrisos de mulheres que se apagaram, esperanças que perderam as asas como borboletas de que só resta o verme. E o verme está pousado nas folhas do meu coração e rói-as.»
Nikos Kazantzaki. O Bom Demónio. Tradução de Fernando Soares. Editora Ulisseia, Lisboa,p. 99
A mulher é a história eterna.
« Amaste-a assim tanto, a essa Nussa? - perguntei uns instantes mais tarde.
Zorba abriu os olhos.
- Tu és novo, patrão, és novo, não podes compreender. Quando também tiveres cabelos brancos, voltaremos a falar dessa eterna história.
-Que história eterna?
- A mulher, claro! Quantas vezes é preciso repetir-te? A mulher é uma história eterna. Para já, és como os galos novos que cobrem as galinhas em dois tempos e em três movimentos e depois incham o papo, sobrem ao monte de estrume e põem-se a cantar e a pavonear-se. Não é para a galinha que olham, é para a crista deles. Sendo assim, podem perceber do amor? Nada de nada.»
Nikos Kazantzaki. O Bom Demónio. Tradução de Fernando Soares. Editora Ulisseia, Lisboa,p. 97-8
« - É que já tenho cabelos brancos, patrão, e os dentes começam a tremer; já não tenho tempo a perder. Tu és novo, podes ter paciência ainda. Eu não posso. Palavra de honra, quanto mais velho me faço, mais selvagem fico! Não me venham cá contar que a velhice abranda o homem e lhe acalma o ardor! Nem que ao ver a morte ele estica o pescoço, dizendo: «Corta-me a cabeça, se fazes o favor, para que eu vá para o Céu!» Eu, quanto mais velho mais rebelde. Não cedo, quero conquistar o mundo!»
Nikos Kazantzaki. O Bom Demónio. Tradução de Fernando Soares. Editora Ulisseia, Lisboa,p. 65
domingo, 6 de maio de 2012
REVOLTA
O morto está todo torcido e não olha para as estrelas:
tem os cabelos colados ao empedrado. A noite pôs-se mais fria.
Os vivos regressam a casa ainda a tremer.
É difícil acompanhá-los; dispersam-se todos
e um sobe as escadas, outro desce à adega.
E outro caminha até de madrugada e deita-se num prado,
ao sol. Amanhã no trabalho, alguém fará um sorriso
de desespero. Depois, também isto passará.
Quando dormem, parecem o morto: se também há uma mulher,
é mais pesado o odor, mas parecem mortos.
Cada corpo agarra-se, torcido, à cama,
como ao rubro empedrado: o longo cansaço
que dura desde a aurora vale bem uma breve agonia.
Sobre cada corpo coagula uma escuridão suja.
Solitário, o outro corpo morto está estendido às estrelas.
Também parece morto o monte de farrapos que o sol
escalda com força, encostado ao muro. Dormir
na rua demonstra confiança no mundo.
Há uma barba entre os farrapos e percorrem-na
moscas atarefadas; na rua, os transeuntes vão e vêm
como moscas; o pedinte faz parte da rua.
A miséria recobre de barba os sorrisos tensos.
como uma erva, e dá um aspecto pacato. Este velho
que podia morrer todo torcido, em sangue,
parece mais uma coisa e está vivo. Assim,
tirando o sangue, cada coisa é uma parte da rua.
E no entanto as estrelas viram sangue na rua.
Cesare Pavese. Trabalhar Cansa. Tradução e introdução de Carlos Leite. Edições Cotovia, Lisboa, 1997., p. 229
envilecer
verbo transitivo,
intransitivo e pronominal
1. | tornar(-se) vil; rebaixar(-se) |
2. | diminuir o valor (de); depreciar(-se) |
« - Aborreci-te, patrão? - disse, deixando de sorrir.
Tínhamos chegado à nossa choupana. Zorba olhou-me com ternura e inquietação.
Não respondi. Senti que o meu espírito estava de acordo com Zorba, mas o coração resistia, queria arremessar-se, romper a animalidade, abrir um caminho.
-Não tenho sono esta noite, Zorba - disse eu. - Vai deitar-te tu.
As estrelas cintilavam, o mar suspirava e beijava as conchas, um pirilampo acendeu sobre o ventre o seu pequeno farol erótico. Os cabelos da noite escorriam de orvalho.»
-Não tenho sono esta noite, Zorba - disse eu. - Vai deitar-te tu.
As estrelas cintilavam, o mar suspirava e beijava as conchas, um pirilampo acendeu sobre o ventre o seu pequeno farol erótico. Os cabelos da noite escorriam de orvalho.»
Nikos Kazantzaki. O Bom Demónio. Tradução de Fernando Soares. Editora Ulisseia, Lisboa,p. 64
sábado, 5 de maio de 2012
''Quando eu morrer, tudo morrerá.''
Nikos Kazantzaki. O Bom Demónio. Tradução de Fernando Soares. Editora Ulisseia, Lisboa,p. 63
«De repente gritou
que se o mundo sofria, se a luz do sol
arrancava blasfémias, não era o destino:
o culpado era o homem. Ao menos pudéssemos partir,
rebentar de fome em liberdade, dizer não
a uma vida que utiliza o amor e a piedade,
a família, o bocado de terra, para nos atar as mãos.»
Cesare Pavese. Trabalhar Cansa. Tradução e introdução de Carlos Leite. Edições Cotovia, Lisboa, 1997., p. 229
PAISAGEM IV
(Para a Tina)
Os dois homens fumam na margem. A mulher que nada
sem quebrar a água apenas vê o verde
do seu estreito horizonte. Entre o céu e as árvores
estende-se a água e a mulher desliza nela
sem corpo. No céu pousam nuvens
quase imóveis. O fumo detém-se no ar.
Sob o gelo da água também há erva. A mulher
atravessa-a, suspensa: mas nós calcamo-la,
a erva verde, com o corpo. Em toda aquela água não há
outro peso. Só nós os dois sentimos a terra.
Talvez o seu corpo alongado, submerso,
sinta o gelo voraz absorver-lhe o torpor
dos membros escaldantes de sol, dissolvendo-a viva
no verde imóvel. A sua cabeça não se mexe.
Também ela estava deitada onde a erva está calcada.
O seu rosto semioculto repousava no braço
e olhava a erva. Não falávamos.
No ar paira ainda aquela primeira comoção
das águas que a acolheram. Por cima de nós paira o fumo.
Agora alcançou a margem e fala, o seu corpo escuro,
gotejante, ergue-se entre os troncos.
A sua voz é bem o único som que se ouve por sobre a água
-rouca e fresca, é a mesma voz de antes.
Pensemos, deitados
na margem, naquele verde mais escuro e mais fresco
que submergiu o seu corpo. Depois, um de nós
mergulha na água e atravessa, mostrando os ombros
em braçadas espumosas, o verde imóvel.
Cesare Pavese. Trabalhar Cansa. Tradução e introdução de Carlos Leite. Edições Cotovia, Lisboa, 1997., p. 199
sexta-feira, 4 de maio de 2012
JANTAR TRISTE
É por baixo da ramada, depois do jantar.
Em baixo há água que corre dócil.
Estamos calados, a escutar e a olhar para o rumor
que faz a água ao passar no rego lunar.
Este tempo suspenso é o momento mais doce.
A minha companheira goza o momento
e parece ainda morder o cacho de uvas,
tão cheia de vida é a sua boca: e o sabor perdura,
têm a doçura das uvas, mas os ombros firmes
e as faces bronzeadas encerram todo o Verão.
Na toalha branca ficaram pão e uvas.
Vazias, as duas cadeiras olham-se cara a cara.
Quem sabe que coisa ilumina o rego lunar
com aquele seu lume doce, nos bosques distantes.
Talvez antes da aurora um sopro mais frio
extinga a lua e os vapores e apareça alguém.
Uma frágil claridade mostraria a garganta
sobressaltada e as mãos febris fecharem-se
em vão sobre os alimentos. Continua o sobressalto da água,
mas no escuro. As uvas e pão continuam no mesmo sítio.
Os sabores atormentam a sombra esfomeada,
que nem sequer consegue lamber no cacho
o orvalho que já se condensa. E com todas as coisas perladas
na aurora, as cadeiras olham-se solitárias.
Por vezes, à beira da água, um cheiro,
como de uvas, de mulher, paira sobre a erva,
e a lua esvai-se em silêncio. Aparece alguém.
mas atravessa incorpóreo o arvoredo e lamenta-se
com aquele gemido rouco dos que não têm voz
e se estendem na erva e não encontram a terra:
tremem-lhe as narinas, somente. Está frio quando o dia nasce,
e estreitar um corpo seria a vida.
Mais difusa que o amarelo lunar, que tem horror
e filtrar-se nos bosques, é esta ânsia sôfrega
de contactos e sabores que macera os mortos.
Outras vezes no solo atormenta-os a chuva.
Na toalha branca ficaram pão e uvas.
Vazias, as duas cadeiras olham-se cara a cara.
Quem sabe que coisa ilumina o rego lunar
com aquele seu lume doce, nos bosques distantes.
Talvez antes da aurora um sopro mais frio
extinga a lua e os vapores e apareça alguém.
Uma frágil claridade mostraria a garganta
sobressaltada e as mãos febris fecharem-se
em vão sobre os alimentos. Continua o sobressalto da água,
mas no escuro. As uvas e pão continuam no mesmo sítio.
Os sabores atormentam a sombra esfomeada,
que nem sequer consegue lamber no cacho
o orvalho que já se condensa. E com todas as coisas perladas
na aurora, as cadeiras olham-se solitárias.
Por vezes, à beira da água, um cheiro,
como de uvas, de mulher, paira sobre a erva,
e a lua esvai-se em silêncio. Aparece alguém.
mas atravessa incorpóreo o arvoredo e lamenta-se
com aquele gemido rouco dos que não têm voz
e se estendem na erva e não encontram a terra:
tremem-lhe as narinas, somente. Está frio quando o dia nasce,
e estreitar um corpo seria a vida.
Mais difusa que o amarelo lunar, que tem horror
e filtrar-se nos bosques, é esta ânsia sôfrega
de contactos e sabores que macera os mortos.
Outras vezes no solo atormenta-os a chuva.
Cesare Pavese. Trabalhar Cansa. Tradução e introdução de Carlos Leite. Edições Cotovia, Lisboa, 1997., p. 195-197