domingo, 29 de maio de 2011

MENIPO


    Um filósofo, ó Hermes, ou antes, um impostor, pleno de
charlatanice. Assim, fá-lo despir-se também! Verás muitas
coisas, e bem risíveis, que ele esconde sob o manto.

HERMES

  Põe de parte a postura, em primeiro lugar, de depois tudo
isso mais! Ó Zéus, quanta fanfarronice ele transporta, e quanta
cretinice e chicanice e gloríola e as perguntas insolúveis e os
discursos espinhosos e as conjecturas intrincadas. E ainda a
grande quantidade de esforço vão e a tagarelice não pequena e
as ninharias e a pequenez de espírito,e, por Zeus, todo esse ouro
que está à vista e a vida regalada, o descaro, a preguiça, o gozo
sensual e a moleza. Nada disso me passou despercebido, por muito
bem que o escondas. Deita fora também a mentira, a  presunção
e o acreditar que és melhor do que os outros, porque se embarcares
com tudo isso, qual o navio de cinquenta remadores, capaz de te receber?


Luciano. Diálogo dos Mortos. Textos Clássicos -31. Introdução, Versão do Grego e notas de Américo da Costa Ramalho. Instituto Nacional de Investigação Científica. Centro de estudos clássicos e humanísticos da Universidade de Coimbra, 1989, p. 43/4
HERMES

  E a crueldade e a insensatez e a insolência e a cólera, lança
também tudo isso fora!

LAMPICO

Vê lá, estou despido.




Luciano. Diálogo dos Mortos. Textos Clássicos -31. Introdução, Versão do Grego e notas de Américo da Costa Ramalho. Instituto Nacional de Investigação Científica. Centro de estudos clássicos e humanísticos da Universidade de Coimbra, 1989, p. 42
HERMES


   Deita fora também a vaidade, ó Lampico, e a altivez. Caindo
aqui dentro, elas farão peso no barco.



Luciano. Diálogo dos Mortos. Textos Clássicos -31. Introdução, Versão do Grego e notas de Américo da Costa Ramalho. Instituto Nacional de Investigação Científica. Centro de estudos clássicos e humanísticos da Universidade de Coimbra, 1989, p. 41
CNÉMON

Isto é o que diz o provérbio: o veado caçou o leão.


Luciano. Diálogo dos Mortos. Textos Clássicos -31. Introdução, Versão do Grego e notas de Américo da Costa Ramalho. Instituto Nacional de Investigação Científica. Centro de estudos clássicos e humanísticos da Universidade de Coimbra, 1989, p. 34

''Io! Foi por um homem valente que uma mulher foi vencida!''

«Caminhe adiante a cativa, triste e de cabelos desgrenhados,
     toda ela resplandecente de brancura, se o consentissem as faces magoadas.
Teria sido bem melhor que estivesse lívida de sinais deixados pelos lábios,
    e que no colo delicado mostrasse marcas dos dentes.
Enfim, se eu estava a deixar-me levar à maneira de uma torrente impetuosa,
    e uma raiva cega me tinha feito presa sua,
não teria bastante praguejar contra uma mulher assustada
    e gritar ameaças bem cruéis
ou mandar-lhe abaixo a túnica, à bruta, do cimo do rosto
   até meio corpo? No meio, a cintura, havia de trazer-lhe ajuda.
Mas não me contive e arrepanhei-lhe os cabelos da testa
   e, com crueldade, marquei-lhe, com as unhas, as faces delicadas.
Ela para ali ficou, desvairada e sem pinga de sangue na palidez do rosto,
   qual pedaço de mármore caído das colinas de Paros;
o corpo inanimado e os membros a tremer, eis o que eu vi,
   tal como a brisa agita a folhagem do choupo,
tal como é sacudido pelo sopro leve do Zéfiro o vime frágil
    ou o cimo da onda é golpeado à passagem morna do Noto.
Largo tempo contidas, começaram as lágrimas a deslizar-lhe pelo rosto,
    como de um manto de neve escorre a água.
Então, comecei eu, primeiro, a sentir-me culpado;
    eram sangue meu as lágrimas que ela derramava.»



Ovídio. Amores. Tradução, introdução e notas de Carlos Ascenso André. Livros Cotovia, Lisboa, 2006, p. 45
«(...); não receio sombras, que esvoaçam pela
                                                                noite,
    não receio mãos estendidas para minha perdição;
é a ti, por seres teimoso demais, que eu receio, só a ti quero amansar;
   és tu quem possui o raio com que podes levar-me à perdição.
Vê bem (e, para veres, dá meia folga ao portal)
   como está encharcada a porta com minhas lágrimas.»


Ovídio. Amores. Tradução, introdução e notas de Carlos Ascenso André. Livros Cotovia, Lisboa, 2006, p. 41

sábado, 28 de maio de 2011

Significa-se a própria brevidade da vida sem pensar e com padecer, assaltada pela morte

    Foi sonho ontem; será amanhã terra;
pouco antes, nada; pouco depois, fumo;
e destino ambições, até presumo
um só momento o cerco que me encerra.
     Breve combate de importuna guerra,
pr'a defender-me, sou perigo sumo;
quando com minhas armas me consumo,
menos me hospeda o corpo, que me enterra.
     Foi-se o ontem; amanhã é esperado;
hoje passa, e é, e foi com movimento
que me conduz à morte despenhado.
     Enxadas são a hora e o momento;
pagas por minha pena e meu cuidado,
cavam em meu viver meu monumento.



Francisco Quevedo. Antologia Poética. Selecção, tradução, prólogo e notas de José Bento, Assírio & Alvim, Lisboa, 1987, p.33
«palavras, hás-de lê-las nos dedos, palavras escritas com vinho puro.»



Ovídio. Amores. Tradução, introdução e notas de Carlos Ascenso André. Livros Cotovia, Lisboa, 2006, p. 37

sexta-feira, 27 de maio de 2011

(...)


«Mesmo então, não poucos, se bem te conheço, vais inflamar,
      mesmo então, ao passar, muitas serão as feridas que vais fazer;
não são capazes de descansar, ainda que tu mesmo o queiras, as tuas setas;
o ardor da chama é nefasto a quem lhe está próximo, com o seu bafo.
Assim era Baco, quando dominou as terras do Ganges;
    tu és penoso com os teus pássaros, ele foi-o com seus tigres.
Já que eu posso, portanto, ser parte do teu sagrado triunfo,
    poupa-te e não gastes em mim as tuas forças de vencedor;
contempla os exércitos venturosos do César, teu parente;
    por onde alcançou vitórias, os vencidos ele os protege com sua mão.



Ovídio. Amores. Tradução, introdução e notas de Carlos Ascenso André. Livros Cotovia, Lisboa, 2006, p. 35
"Nós somos o que fazemos. O que não se faz não existe. Portanto, só existimos nos dias em que fazemos. Nos dias em que não fazemos, apenas duramos."

(Padre António Vieira)
« Eu mesmo, a tua presa mais recente, hei-de padecer da ferida sofrida há
                                                                                                           pouco
e suportar no coração cativo novos grilhões.



Ovídio. Amores. Tradução, introdução e notas de Carlos Ascenso André. Livros Cotovia, Lisboa, 2006, p. 34
Não me falem mais sobre a justiça, porque ela já não se encontra nos homens.

É a minha convicção, de quem tudo fez e, colheu os amargos frutos.

Na antecâmara dos Amores

 «Mas o que é, afinal, o amor para este homem, versejador fácil e amante confesso e compulsivo? Uma espécie de divertimento? A busca do prazer? O culto reiterado do sexo? Um estranho caldear de emoções e afectos?
   E o que significará, para ele, a mulher? O outro parceiro de uma relação a dois? O segundo elemento de uma partilha? O simples objecto do prazer? Um alvo ou uma vítima da perversão masculina? Um mero instrumento da satisfação dos desejos do homem?
    E de que se tece a relação a dois, pois que de relação a dois se trata? Da espontaneidade de sentimentos? Da explosão do desejo e dos sentidos? Do engano? Da lealdade? Da traição? De sementes de um projecto? De jogos de sedução? De arranjos tácticos e ocasionais?
   E qual o ideal de parceiro na relação amorosa? A mulher? O homem? Com um padrão de beleza? Com um perfil de carácter?»


Introdução Carlos Ascenso André



Ovídio. Amores. Tradução, introdução e notas de Carlos Ascenso André. Livros Cotovia, Lisboa, 2006, p. 9

quarta-feira, 25 de maio de 2011

«Meu caro! Que seria a vida sem esperança? Uma Faísca que salta do carvão e se apaga; e não seríamos nós como uma rajada de vento, que se ouve em estação inóspita, e que por um momento assobia para depois deixar de se ouvir?»


Friedrich Hölderlin. HIPÉRION ou o Eremita da Grécia. Tradução e prefácio de Maria Teresa Dias Furtado. Assírio & Alvim, Lisboa, 1997, p. 39

André Ivanoff

«Sofria duma espécie de apatia e, pelo outono e pela primavera, dizia-se sempre que estava às portas da morte. Mas depois de permanecer deitado algum tempo, levantava-se e dizia espantado, logo a seguir: «Ora esta, ainda não morri!»


Anton Tcheckoff. Romance duma vida. Trad. de Cordeiro de Brito. Vasco Rodrigues Editor, Porto, 1938, p.19/20

terça-feira, 24 de maio de 2011

    O director disse-me:
    -Só continua a ser meu funcionário por causa da estima que tenho pelo seu excelente pai. Se não fosse isso já o tinha feito voar há muito pelos ares fora.
    Respondi-lhe:
     -Vossa Excelência lisonjeia-me, senhor director, supondo que eu possa voar pelos ares fora.
    Ouvi-o acrescentar:
     - Ponham lá fora este senhor; mexe-me com os nervos-
    Dois dias mais tarde fui despedido.



Anton Tcheckoff. Romance duma vida. Trad. de Cordeiro de Brito. Vasco Rodrigues Editor, Porto, 1938

XVII

O dolce sonno
Ingannala ancora tu,
un poco.
Consuma queste ultime ore,
e, inavvertito,
falle valicare la soglia.



Pier Paolo Pasolini
Bisogna bruciare per arrivare
consumati all’ ultimo fuoco.


Pier Paolo Pasolini
Una furiosa luna sulle zolle

Non arate, le secche impalcature,
spande fuoco. Tanto più folle
quanto più calmo il passo mi conduce
verso angoscie che furono pure.


Pier Paolo Pasolini

Heráclito e Filosofia: a vida humana, o destino e a morte

Heráclito também quer apreender o drama concreto da vida humana. São numerosos os testemunhos doxográficos que nos fornecem preciosos esclarecimentos sobre este movimento que conduz do nascimento à morte, e, para além da morte, a novos nascimentos. Ainda que todos estes testemunhos sejam, e devam permanecer sendo, relativamente suspeitos, não deixam de nos esclarecer, ainda que indiretamente. O incansável doxógrafo Aetius escreve: “Heráclito e os Estóicos dizem que os homens começam a atingir sua perfeição por volta dos quatorze anos, época na qual o líquido seminal se põe em movimento”. O gramático romano Censorinus precisa: “Um século é a maior duração da vida humana, que é limitada pelo nascimento e pela morte. Aqueles, por consequência, que reduziram o século a um espaço de trinta anos, cometeram manifestamente um grande erro. É Heráclito que chama este lapso de tempo de ‘geração’, já que ele envolve uma revolução da idade do homem; e ele chama de revolução da idade do homem todo o período durante o qual a natureza humana faz o retorno do semeado à semeadura”. E Plutarco de Querônia: “A duração de uma geração é de trinta anos, segundo Heráclito, espaço de tempo no qual o pai vê seu filho capaz de engendrar”.
A criança é um ser incompleto; ela se torna (devém) homem. A verdade do ser humano está em seu desenvolvimento. Quando tem quatorze anos, a criança entra na fase de puberdade e começa desse modo a atingir a perfeição humana; seu líquido seminal está formado. O úmido é sempre o que está ligado ao nascimento, e, como “a alma exala dos úmidos”, o úmido do líquido seminal é o que faz nascer o homem enquanto homem adulto. A partir da puberdade o ser humano pode participar direta e ativamente do movimento do devenir, pois ele é capaz de engendrar. Aquele que foi engendrado pode novamente engendrar no espaço dos trinta anos, que constituem assim os limites extremos de uma “geração”. Duas vezes quinze anos formam uma geração, justamente porque durante este período o ser humano tem o tempo para ser avô; o líquido seminal descreve com seu movimento um círculo e retorna, por assim dizer, a seu ponto de partida, mas em um nível superior: a fivela está afivelada, o caminho para cima “e” o caminho para baixo se unem no círculo.
A duração temporal da vida humana ultrapassa portanto os trinta anos que são apenas uma “geração”. A duração da vida é o período que se estende do nascimento até a morte. Os momentos principais de uma vida humana são então os seguintes: nascimento (começo de uma vida humana), puberdade e capacidade de engendrar e de ter engendrado (quatorze ou quinze anos), revolução da idade do homem, onde aquele que foi engendrado vê por sua vez seu filho capaz de engendrar ( a idade de trinta anos, “geração”, morte (fim da duração da vida humana). As linhas e as cores desse afresco são sóbrias e se restringem ao absolutamente necessário, àquilo que torna possível o correr do rio da vida humana no tempo. No curso desse devenir os contrários se unem; a colocação de uma criança no mundo por um homem já significa o começo da morte desse homem que realizou o estritamente necessário de sua tarefa na tragédia humana. A dialética harmoniosa da vida torna o homem capaz de engendrar um ser que, por sua vez, vai ultrapassá-lo. O tempo total é uma brincadeira de criança. O tempo da vida humana faz o ser humano (dado à luz) passar da infância e da adolescência à idade madura, à velhice (onde o homem retorna à infância) e à morte. Enquanto isso, o homem começa a “morrer” a partir do momento em que seu filho é dado à luz. Este é o jogo do tempo, que brinca com as crianças que são os homens.
O movimento do líquido seminal não é de natureza erótica? Sem qualquer dúvida, o Eros no Cosmos é o que mantem unidas entre si as “partes” do mundo, fazendo com que se religuem a despeito de suas lutas antagônicas. “Também a natureza ama os contrários, e é com eles e não com os semelhantes que ela produz o acordo; é assim, por exemplo, que ela une o macho à fêmea, mas não cada ser a seu igual, e que ela efetua a concordância primeira pela união dos contrários e não dos iguais... As uniões são inteiras e não-inteiras, concórdia e discórdia, acordo e desacordo”, lemos no fragmento 10. O movimento do devenir provém, com efeito, da união dos contrários. A união de dois seres opostos assegura a permanência do devenir humano. Com o eros unificador se compõe a guerra inevitável.
O ser humano, enquanto ser cósmico, nasce portanto de um encontro entre dois seres opostos e perpetua, por sua vez, a espécie; o que o impele são as forças cósmicas “e” o movimento de seu próprio líquido seminal, que, sendo uma das manifestações da água e do úmido, torna-se igualmente fogo ao correr do processo das metamorfoses. Toda a dialética é apenas um encadeamento das engendrações; o movimento do nascimento articula o movimento do devenir. O úmido e o fogo do Universo estão estreitamente ligados e alimentam o úmido e o fogo do organismo humano (indissociavelmente psicossomático). Nesta coesão biocósmica se manifestam as potências eróticas. O úmido é o elemento que caracteriza o nascimento, e o fogo está ligado ao desenvolvimento. Os Estóicos, com sua teoria do logos espermático universal, explicitam, extrapolam e racionalizam o que está implicitamente contido no pensamento heraclitiano; eles estabelecem o movimento de potências transformadoras. “Apesar de seu heraclitianismo, o mundo estóico dá mais a impressão de estabilidade que de fluxo contínuo”, conclui com justeza Émile Brehier em seu livro Chrysippe et l'Ancien Stoïcisme. Qual é o significado da vida humana, deste ponto que conduz do nascimento até a morte, passando pela reprodução? Da vida humana dada pela natureza, passamos à vida que os homens se dão. Quando nascem, querem viver e receber seus mortos, ou então repousar; e abandonam as crianças para que nasçam os mortos (Frag. 20). Entramos e não entramos nos mesmos rios, somos e não somos (49 A). Lutar contra seu coração é difícil; tudo o que ele quer, ele compra ao preço da alma (85). O ethos do homem é seu demônio (110).
O ciclo da vida humana - nascimento, infância, morte - se realiza inelutavelmente; os tons são sombrios. Exprime Heráclito um pessimismo fundamental? É o nascimento considerado como infelicidade e a morte como liberação? Parte de vida (moira) e parte de morte (moros) serão idênticas? Os temas das infelicidades da vida humana aparecem na poesia e no pensamento helênicos muito antes de Heráclito, e não apenas na sabedoria helênica. O homem é fraco e impotente, diz a Odisséia, passa como as folhas, nos ensina a Ilíada. Hesíodo, em O Trabalho e os Dias, não faz outra coisa que por em relevo as infelicidades humanas. O poeta iâmbico Semônides de Amorgos queixa-se que os homens não têm sabedoria, que vivem como animais, sustentados apenas pela ilusão e pela esperança, ameaçados pelas doenças, pela velhice e pela morte. Solon também se queixa do destino, que não pode ser suplantado pelo conhecimento que possamos ter dele, e declara: “nenhum homem é feliz”. E este ditado da sabedoria arcaica: “não considere nenhum homem feliz até que ele chegue à morte” exprime o mesmo ponto de vista sobre a vida. Os Pitagóricos se esforçam apaixonadamente para purificar a vida da infelicidade do nascimento, e os grandes poetas trágicos exprimem no mais alto grau as terríveis (e grandiosas) contramarchas da existência dos mortais. Heráclito retoma, condensa e pensa todas essas meditações com uma intensidade singular, e ele as exprime sob formas lacônicas e radicais. É isso melancolia e pessimismo? Partindo de idéias esquemáticas preconcebidas e imaginando os poetas e pensadores gregos como “belas almas” que vivem sob os encantos da beleza da vida, não chegaremos a compreender do que se trata. O mito feliz da Hélade feliz ignora quase deliberadamente a Grécia de verdade, a Grécia trágica. É um erro de perspectiva que nos faz embelezar o antigo, sob o jugo da infelicidade atual. Os gregos também cometem o mesmo erro, situando a idade de ouro no passado. Toda a obra de Platão não exprime a nostalgia profunda de um horizonte perdido, nostalgia que alimenta o mito da reminiscência da alma?
Os pensamentos pré-heraclitianos e heraclitianos que enfrentam a ferida enunciam verdades evidentes, reconhecidas como tais pela época. Eles não querem levar o homem a se lamentar, mas a suportar com coragem e a viver sua vida. É uma visão dramática e trágica do mundo e da vida; dramática, porque ela exprime os fundamentos das realizações e ações dos homens, trágica porque visualiza o que é fragmentário sob um prisma universal e aprofunda a fenda e as ruturas inerentes à totalidade. E como a arte trágica e arcaica dos séculos 7 e 6 (a. C.) se “individualiza” a seguir, aprofundando a forma e o fundo do destino individual (que ainda assim permanece fortemente ligado ao universal), da mesma maneira este pensamento pré-sofista só tem olhos para o que se situa na dimensão do universal. Isto é particularmente verdade em Heráclito. Seu pensamento abrange a totalidade da vida humana e aponta seu caminho comum. Ele não chora o curso inevitável da existência humana, não deplora a perda do absoluto, pois a necessidade se realiza inelutavelmente, ainda que com maior ou menor perfeição. Ao invés de se fixar nas misérias da subjetividade sofredora, e sem mesmo levar isso em conta, Heráclito observa, a um só tempo com alegria e tristeza, o grande espetáculo da sucessão de gerações sobre a Terra. Se ele considera a morte como repouso, isto não deve levar a uma interpretação cristã. A morte é apenas uma mudança de situação, e nós já sabemos que “tudo repousa na mudança”. (84a).
Serão as escolas socráticas, e sobretudo os filósofos menores, como Hegésias, conselheiro da morte, que nos trarão uma atitude psicologicamente pessimista e melancólica. A filosofia que aconselha a morte é que partirá do princípio do prazer, desenvolverá sua própria negação e se colocará sob o signo da morte, aconselhando o suicídio como meio de chegar a ela. Hoje em dia damos voluntariamente um caráter nostálgico e romântico ao pessimismo; mas todo romantismo está ausente na época que viu nascer o pensamento de Heráclito. Ele repensa os temas da intuição popular no próprio nível dos grandes problemas que concernem a vida e a morte. A sabedoria das nações (filosofia popular) e a filosofia pretensamente eterna (philosophia perennis) são mais interdependentes do que pensam. Heráclito se coloca a igual distância tanto de uma como de outra. Em consonância discordante com a sabedoria de seu tempo e de seu povo, ele questiona os três grandes temas da vida humana e os traz ao nível de questões. O juízo heraclitiano não pode ser designado como melancólico, romântico ou pessimista; o ritmo de seu pensamento é inteiramente dramático e trágico, de acordo com o Mundo.
A vida conduz irresistivelmente à morte. O arco (biós) leva o nome da vida (bíos), mas causa a morte; o rio da vida conduz o homem à morte. Os contrários se unem. A unidade inata da vida e da morte manifesta esta unidade harmoniosa e discordante dos contrários que lutam entre si no decurso do devenir que é rio e guerra. O arco é uma arma de guerra e mortal, e o jogo de palavras (biós-bíos) também traz a marca da morte. A perspectiva da morte ilumina as sombras da vida. O arco, símbolo da harmonia dos contrários e instrumento guerreiro, não é ele também um símbolo de Apolo, o deus da luz? Entre os 130 fragmentos de Heráclito, quinze se referem diretamente à morte. Ensinando-nos o logos do cosmos, nos reconciliando com a justiça da guerra e nos persuadindo da unidade dos contrários, Heráclito nos mostra como filosofar é aprender a viver e a morrer. O homem deve ficar sereno diante do inevitável e reconhecer o inevitável caminho que, enquanto caminho cíclico, leva constantemente da vida à morte e da morte à vida. O homem deve fixar seus olhos no termo fatal de sua viagem, e o pensador não se ocupa em consolar os homens, mas em desmascarar sua situação, destruir suas ilusões. O rio corre como a vida, e a vida é inesgotável como o rio. Ela é sempre cambiante e nós não podemos reviver (NT - revivre. Acho que Axelos queria dizer vivre, viver) duas vezes o mesmo momento, pois nós também mudamos: ao móvel corresponde o móvel. Nós corremos como um rio e nos dissipamos como uma chama, ao decorrer do tempo que é a unidade do passado, do presente e do futuro. Nós somos e não somos, porque a negatividade, que anima o processo de transformações de tudo aquilo que é, nos leva a nos transformarmos em amanhãs diferentes. O segredo de nosso ser é o futuro.
No decorrer deste futuro que é o tempo, o homem se dá cruelmente conta de que é difícil lutar contra as paixões que, levando-nos na direção da satisfação dos desejos, fazem com que esqueçamos que não somos seres particulares, mas fragmentos da totalidade. Tudo aquilo que queremos é comprado ao preço de uma parcela de nossa alma. A luta, o antagonismo, domina também a existência do homem. A satisfação do desejo, o prazer, leva as almas a se tornarem úmidas, e este prazer úmido é a morte da alma (fr. 77). Por que é então doloroso lutar contra a morte da alma? É tão difícil lutar contra seus desejos porque a violência do desejo (thymos) e a pureza da alma (psyché) estão em relação inversamente proporcional. Se damos livre curso aos nossos desejos o fogo sábio e vivificante da alma se volta contra o animal da umidade mortal. Dar livre curso às paixões do desejo é coisa fácil. A tarefa dolorosa e difícil consiste na luta contra as paixões, porque uma paixão, mesmo vencida, tem repercussões dolorosas sobre nossa alma. Além disso, é penoso lutar contra os prazeres que conduzem a alma na direção da umidade, quer dizer, em direção à morte, porque no fundo é penoso para a alma lutar contra suas próprias tendências mortuais. Nós devemos lutar, talvez, com a morte na alma contra a morte da alma. A proporção thymos e psyché não é algébrica, mas dramática. O homem é este ser situado entre o animal e o deus que tem todas as dores do mundo para edificar um ethos para si, porque as forças que o movem se compensam uma à outra, necessariamente e justamente. A negatividade (origem da negação) está sempre ativa e impede a estagnação do ser vivo. A realização total dos desejos, no limite, é impossível, portanto nefasta; a maior realização possível daquilo que nos ordenam as paixões e os desejos avilta a alma. Portanto é difícil lutar contra seu coração, pois tudo o que ele deseja é comprado ao preço da alma (fr. 85), e ao mesmo tempo é melhor que todos os nossos desejos não se realizem (fr. 110). Tanto a satisfação do desejo como a vitória sobre o desejo afetam profundamente a alma. A integridade da alma é talvez mais bem preservada no infortúnio. A luta contra os desejos particularizadores, quer dizer, o combate claro e não a retirada, se impõe como necessária e dolorosa. O homem, ser que não é unicamente movido por suas próprias forças psicofísicas, pode empreender e manter esta luta, sabendo que é o negativo que nos conduz ao positivo. Repitamos mais uma vez: Heráclito não quer de maneira nenhuma trazer violência à natureza humana em nome da moral ou da espiritualidade; ele apenas se esforça em revelar aos humanos o que é em realidade, em verdade, a natureza humana, em seu devenir.
Assim o homem não deve jamais perder de vista a totalidade de seu problema, e o problema é bastante concretamente o de seu destino. O ethos do homem é seu demônio, nos declara o famoso fragmento 119. O ethos é a natureza profunda do homem e constitui seu ser em devenir, e o demônio é uma potência divina. À representação que vê o destino humano como uma potência exterior, regulando o decurso da vida humana em seus menores detalhes, à concepção da potência total dos deuses e dos demônios e da impotência total do homem e seu demônio, Heráclito opõe sua atitude dramática e responsável diante do futuro. Ele marca o surgimento do homem ocidental que quer agir e reagir em face de seu destino, enquanto o homem oriental parece suportá-lo resignando-se. O pensamento helênico acreditava em princípio que uma Moira, fatal por definição, governa a vida dos homens e a dirige de maneira meio cega; por outro lado, acreditava na onipotência divina, ficando os deuses, alternativamente, dominadores desta Moira e submissos a ela. No pensamento homérico em particular se manifesta uma profunda antinomia: os humanos são como marionetes nas mãos dos deuses, mas cada herói é quase responsável pelo que é; na hora do veredito, à solução imposta pelos deuses, responde, independente, mas sempre correspondente, a resolução assumida pelos heróis. Heráclito dá um passo decisivo ao proclamar: O ser do homem (seu ethos) é um ser divino (seu demônio) (fr. 119). Ao fazer isto ele não considera o homem individual como fundador de seu destino; não torna o destino psicológico, nem mesmo antropológico. O ser do homem (seu ethos) é simplesmente declarado como sendo um ser divino (um demônio). Como o fogo do mundo é seu próprio destino, é o ser divino do homem que constitui o motor interno do devenir humano. Heráclito não diviniza o homem nem humaniza o divino; naturalmente o demônio deixa de ser uma potência exterior, estranha enquanto estrangeira, e se transforma em forma e fundo da vida humana. Assim como a necessidade cósmica e divina do destino forma a estrutura do Universo, o ser divino do homem constitui sua harmonia discordante. Necessidade e liberdade se unem graças à harmonia dos contrários, e a liberdade do homem consiste na aceitação plena de sua natureza demoníaca.
A tragédia exprimirá também esta relação entre o ethos e o démon (NT - acho que Axelos gostaria de ter escrito daimon), entre o ser do homem e o ser divino. No Prometeu de Ésquilo não podemos discriminar onde acaba seu ethos e onde começa seu demônio, porque destinação (humana) e destino (divino) se sobrepõe. Para a Antígona de Sófocles é justamente seu ethos que é seu demônio; aqui está precisamente o verdadeiro drama. Draw (NT - lê-se dráo) significa agir, e agir, em sentido profundo, significa realizar um destino e uma destinação. Só o ethos realizador é dramático, no sentido a um só tempo ativo e trágico do termo. Toda a atitude de Sócrates não consistia no esforço desenvolvido para fazer coincidir o ethos do homem e as prescrições de seu demônio? Heráclito teria visto em uma tragédia o princípio de elaboração de seu pensamento, desta apreensão simultânea de ethos e de demônio, que nos faz ver como o ser do homem concorda com seu destino. Ainda mais, os grandes traços da grande tragédia já se revelam em Heráclito: pensamento heraclitiano e tragédia são "inacabados" e fragmentários, porque querem envolver e compreender a totalidade do destino cósmico e humano; estão à procura da unidade e por toda parte encontram ruptura; seu ritmo é dramático, e toda a atividade humana lhe parece livre e alienada, realizando desse modo o acordo discordante entre a liberdade e a necessidade. Os dois lutam apaixonadamente para introduzir luz nas trevas, ainda que a obscuridade esteja instalada no coração do luminoso.
Hoje tendemos a pensar em função das diversas disciplinas do pensamento e das ciências, e é verdadeiramente difícil para nós agir de outra maneira. Ethos nos faz pensar em ética, até em moral, caráter em caracterologia, psyché em psicologia. Em Heráclito, ao contrário, estas "disciplinas" só existem enquanto disciplinas; o ser não se separa do pensamento, e o que é plenamente não se separa daquilo que deve ser. O pensamento heraclitiano permanece sempre "holístico". O ethos é a totalidade do ser do homem, e o démon indica sua parte divina no devenir do grande Todo. Martin Heidegger apreendeu da seguinte maneira o fragmento 119, transpondo-o para a linguagem que lhe é própria e ligando-o ao testemunho de Aristóteles (De part. anim., A 5, 645 a, 17 - D. A. 9), segundo o qual Heráclito queria declarar aos estrangeiros visitantes que pararam quando o viram se aquecendo diante da lareira: "aqui também estão presentes os deuses". Segundo Heidegger, Ethos significa morada, lugar de habitação. Esta palavra nomeia a região aberta onde habita o homem. A abertura (das Offene) de sua morada deixa aparecer o que avança em direção à essência do homem, e nesta chegada se interrompe nas proximidades. A morada do homem contém e guarda a chegada daquilo ao qual o homem pertence em sua essência. É, segundo a palavra daimon de Heráclito, o deus. Diz a sentença: o homem habita, enquanto homem, nas proximidades de deus." (Carta Sobre o Humanismo).
Todavia, o homem se encaminha para a morte. Antes, enfrenta ainda as doenças. A doença (Heráclito não distingue entre doenças somáticas e psíquicas) é uma ruptura da harmonia que mantém ligados os opostos. A doença é causada pela predominância excessiva de um dos elementos da totalidade que é o organismo psicossomático do homem. ela aparenta-se assim estreitamente ao prazer. Ela rompe a unidade dialética do bem e do mal, fazendo predominar o mal. Mesmo a presunção, que indica uma rutura dos laços que ligam o homem individual ao universal, é chamada de doença por Heráclito; mais ainda, é chamada de doença sagrada (fr. 46), porque afeta diretamente o pensamento do homem, cujo corpo pode continuar sendo saudável. E a medicina não pode impedir a si mesma de praticar simultaneamente o bem e o mal, em sua tentativa de restabelecer o equilíbrio perturbado da saúde (fr. 58). O mal e a doença, o prazer e a presunção, são partes da totalidade que se tornaram autônomas, rompendo deste modo o equilíbrio unitário. Nos tratados hipocráticos, e em particular no De Victu, encontramos claramente os traços desta concepção dialética da saúde e da doença.
Com efeito, é prazer para as almas tornarem-se úmidas, pois a umidade, em oposição à secura da alma sábia, significa embriaguez e predominância da sensualidade; a umidade da alma conduz assim à morte final, o que já sabemos pelo fragmento 36. O úmido é a um só tempo a origem e o fim da vida da alma. A alma nasce do úmido (neste estágio o úmido se encontra estreitamente ligado ao prazer) e finalmente volta ao úmido após sua morte. O começo volta à partida - pois a implica desde o início - o fim. Parece-nos ouvir ainda o eco da voz de Anaximandro: "O ilimitado é a origem do que existe (dos seres); ali onde os seres nascem, ali mesmo se faz sua destruição, como deve ser; pois se fazem justiça e expiam uns pelos outros por suas injustiças, segundo a ordem do tempo"(D. 12 B 1). Como a alma nasce do úmido, seu nascimento está ligado ao prazer. Entretanto, a umidade também engendra a perda da alma. A potência do fogo, ao contrário, procura liberar a alma da empresa corruptora e mortal da umidade, conduzindo-a à posse da verdadeira vida que é, não prazer, mas vida conforme o universal. O impulso do prazer que nos faz nascer do úmido procura a todo custo realizar os desejos de nosso coração, conduzindo-nos assim em direção à morte; este impulso é difícil de ser dominado e nos impede de saber para onde vamos, nos transformando neste homem embriagado que é conduzido por uma criança e não sabe para onde vai porque sua alma está úmida. A verdadeira vida, obedecendo ao fogo, exige a sabedoria: o homem que não se afasta dela vive verdadeiramente sua vida, tendo os olhos fixos no termo fatal de sua viagem.
Como podemos viver portanto a morte de nossa alma, e como vive ela sua própria morte? E como os imortais são mortais e os mortais imortais? O movimento da dialética heraclitiana é constantemente cíclico; o caminho para o alto e para baixo é um só e o mesmo. Nascimento e morte, juventude e velhice, morte e imortalidade são contrários dialeticamente unidos; um conduz eternamente ao outro, e o movimento não cessa jamais. Estudando o pensamento teológico e religioso de Heráclito pudemos ver o elo que une os homens ao divino, porque o ethos do homem não reside em sua idiossincrasia, mas naquilo que o liga à universal divindade. Desta maneira, a morte (como falecimento) se encontra superada; o ser e o não-ser se unem no devenir. Nós vivemos efetivamente a morte de nossa alma, e ela vive nossa própria morte, porque no decurso de nossa existência nós podemos apreender o processo da morte de nossa alma, dando-nos conta de nosa marcha em direção à morte que, em verdade, nos habita por toda nossa vida. A alma, por sua vez, vive nossa própria morte, porque ela possui o dom da superação que a liga ao Todo.
O homem, como todo ser cósmico que se move no interior do Universo, segue os dois caminhos: aquele em direção ao alto, conduzindo da terra à água, da água ao ar e do ar ao fogo, e aquele para baixo, conduzindo do fogo ao ar, do ar à água e da água à terra. O caminho para o alto é o do nascimento da alma, e o caminho para baixo é o da morte. Mas, como o caminho para o alto e para baixo é um e o mesmo (fr. 60), e como na circunferência do círculo o começo e o fim coincidem (fr. 103), o caminho para o alto também é o da morte da alma, e o para baixo o de seu nascimento. O nascimento é a um só tempo ascenção e queda, assim como a morte. A terra, começo e fim do processo cíclico, é o verdadeiro lugar do drama humano. A alma humana participa do fogo; assim, após ter sido água e terra, quer dizer, corpo humano, ela volta a ser fogo. Ela era em princípio o fogo que anima o corpo, e quanto mais seca ficava, mais sábia era.
Os mortais são então imortais, porque ligados ao fogo imortal. Os imortais se "encarnam" nos mortais. Vida e morte, morte e imortalidade, intercambiam-se mutuamente e, sendo contrários, se unem no decurso do movimento incessante. O pano de fundo de todos estes pensamentos heraclitianos é constituído pela mitologia homérica, pelas crenças hesiodianas, pelo simbolismo órfico e pitagórico. O pensador de Éfeso despe estes grandes temas de suas vestes multicoloridas e põe a nu seu sentido último. Naturalmente, o problema de saber em que espaço e em que tempo estes processos dialéticos ocorrem fica sem resposta. Nós apreendemos a direção da especulação heraclitiana num clarão, mas o papel concreto dos protagonistas do grande drama quase sempre nos escapa. Será que Heráclito não deixa as trevas, ou nós é que nos perdemos neste jogo de sombra e luz?
Perseveremos então em nosso esforço para ver claro. A morte possui uma potência suprema. Não podemos chegar a ver a significação da morte senão no estado de vigília. Quando dormimos, em troca, não nos damos conta de nada, só fazemos dormir. A originalidade do fragmento 21 consiste na inversão dos termos da comparação; o que se encontra ligado não é a vida e o estado de vigília, por um lado, a morte e o sono por outro. O sono nada mais é que uma situação intermediária entre a vida e a morte. A vida, se ela se desenrola em estado de vigília, nos coloca em face da morte; ela só é até que venha o grande sono, a morte definitiva. Heráclito quer constantemente clarear as trevas, ao ensinar que a vida não é a morte, e até ela nos mergulha na obscuridade. A vida só faz nos encaminhar em direção à morte; os contrários são unidos, sem estarem identificados por causa disso.
Quando o homem dorme, ele está "morto", ainda que continue vivo. O sono realiza provisoriamente a unidade dos dois contrários. "À noite o homem acende uma luz quando sua visão está apagada", nos é dito no fragmento 26. A luminosidade do fogo se manifesta igualmente na obscuridade da noite. Constitui-se ela então na luminosidade indispensável à visão dos sonhos? Não o sabemos. O que podemos compreender é que o ser adormecido é o ser vivo mais próximo da morte, pois ele dorme e sai provisoriamente da vida. O ser acordado também toca o ser adormecido, porque ele próprio não pode escapar ao sono; nem ao sonambulismo, nem ao sono provisório, nem ao sono definitivo. O homem participa duplamente de sua morte: tanto no sono como na vigília. Vida e morte são "estados" muito próximos um do outro; o sono é o signo de sua analogia e torna-se então uma metáfora que, como toda metáfora, transfere as propriedades de um domínio para outro. Além do mais, o homem toca o ser adormecido quando vive, porque os homens não possuem a visão necessária de seu destino mortal e agem frequentemente como pessoas sonolentas e adormecidas. O sono torna-se desta maneira a situação mais aparentada à morte, afastando-nos dela em aparência, pela via do esquecimento em que nos envolve. Os humanos em seu sono fecham os olhos à vida (e à morte); quando se agitam, fecham os olhos à morte (e à vida). A vida torna-se assim um sonho inconsistente para os homens que não sabem olhá-la no rosto para descobrir nela as linhas de força que conduzem à morte.
O que é jovem, vigilante e vivo, envelhece, adormece e morre (fr. 88). A unidade combativa dos contrários e o processo de suas (deles) transformações ocorrem no tempo, e pelo tempo, que constitui o ritmo necessário do devenir. Para que todas estas etapas do devenir possam se transformar em seu contrário, é preciso que já estejam unidas de antemão; com efeito, elas o estão no seio da totalidade cósmica e elas constituem a via antitética do homem. O tempo nos leva de uma estação a outra; nos faz envelhecer e nos faz morrer. O tempo é a alma da harmonia combativa dos contrários, porque a unidade dos contrários é harmonia, já que a passagem de um estado a outro é ao mesmo tempo movimento e repouso. O sono é apenas um pequeno repouso, o repouso é a morte. Toda mudança é um repouso; "transformando-se ele repousa", havíamos aprendido no fragmento 84. Os homens, não podendo interromper o curso inevitável do devenir, tentam ainda assim escapar à fadiga, recusando a luta e o combate; isto é impossível e ultrapassa a medida de suas possibilidades. Durante toda sua vida eles apenas se transformam, indo de uma posição à outra, pela luta inevitável; eles repousarão quando pararem de viver. O ritmo do destino humano é inelutável, e o tempo é todo-poderoso. O pensamento verdadeiro pode ajudar os homens a viver sua vida sem esquecer sua morte. Ao procurar a estagnação e o repouso imóvel eles se esquivam do curso do Mundo e são mal sucedidos na vida. Estar aterrorizado com a morte não significa coabitar com a morte; continuando a viver pela metade, os homens apenas fecham os olhos antes da hora. Enquanto que aquilo que o pensador ensina deve levar todos que o querem escutar a viver sua vida como homens acordados, ligados ao universal e enfrentando com sabedoria sua morte.
Heráclito não deixa de avisar  que devem sempre saber esperar o inesperado e esperar reencontrar o inesperado (fr. 18). A incredulidade pura e simples denota um espírito obtuso e fechado ao enigma do Mundo. Assim como os homens não pensam em sua vida e em seu termo fatal, também não pensam no que os espera depois de sua morte.

A sorte do corpo morto é rapidamente regrada: é para ser rejeitado. O cadáver não exprime mais o homem; formado de terra e água, só lhe resta reganhar a terra, sobre a qual o homem vivo dá seus passos. A alma também morre? Entendamos, não se trata da alma pessoal e de sua sobrevivência individual. Não há traços de uma doutrina da imortalidade (pessoal) da alma (individual) no pensamento autêntico de Heráclito.A alma que vive, não sendo de modo nenhum subjetiva, como poderia ela, após a morte do homem que ela animava, sobreviver individualmente? A alma é um fragmento do Universo. Aetius escreveu (IV, 7, 2 - D.A. 17): "Heráclito diz que a alma é indestrutível, pois ao deixar o corpo ela retorna à alma do Universo, com a qual é homogênea".

As almas farejam talvez no Hades os aromas do fogo divino e eterno, e, como Hades é o mesmo que Dionisyus (fr. 15), elas continuam a viver para além de sua morte, mas não num além evangélico. Pode ser ainda que as (almas) daqueles mortais que morreram pelo fogo, heroicamente, e sabiamente se tornem imortais; os heróis e os sábios seriam assim os "guardiães" dos vivos e dos mortos. As estrelas mortas também animam o Universo. A vida e a morte, a parte e o Todo, os mortais e os imortais, sendo e não sendo idênticos, continuam assim a constituir as etapas e as esferas do devenir que, se modificando eternamente e se transformando em seu oposto, dão desta maneira um sentido ao movimento.

O fragmento 63, tirado dos escritos de Santo Hipólito, deforma o pensamento heraclitiano cristianizando-o; não há ressurreição da carne nem Julgamento final para o Efesiano, ainda que assim o pense o bispo de Roma. Heráclito permanece pagão e pensa que a alma humana - depois de haver animado o corpo de um homem que vive, tem um destino e morre - junta-se de novo à Totalidade cósmica que nunca deixou de a englobar.


Lucrécio e a Poesia do Materialismo

Na própria Antigüidade o epicurismo não sofreu reformulações. Os seguidores imediatos de Epicuro limitaram-se a cultuar a memória do mestre e a preservar e propagar suas idéias. Segundo Diógenes Laércio, a obra de Epicuro compreendia cerca de trezentos títulos, dentre os quais só Sobre a Natureza compreenderia 37 livros. Dessa grande quantidade de escritos, todavia, restou muito pouco: o próprio Diógenes Laércio conservou uma Carta a Heródoto (que trata da física), uma Carta a Pítocles (de "autenticidade contestada e tratando dos meteoros) e uma Carta a Meneceu (sobre moral); Diógenes Laércio faz seguir essas cartas de quarenta sentenças atribuídas a Epicuro e conhecidas sob a denominação de Máximas Principais.


Em 1888, K. Wotke descobriu, num manuscrito da biblioteca do Vaticano, 81 máximas de Epicuro, algumas já inseridas nas Máximas Principais. Por outro lado, as escavações realizadas em Herculanum trouxeram à luz uma biblioteca epicurista, contendo inclusive o Sobre a Natureza de Epicuro. Mas, se os escritos de Epicuro só são conhecidos de forma fragmentária, existe uma outra fonte para o conhecimento de sua doutrina: o poema Da Natureza das Coisas, de seu seguidor Lucrécio, que viveu em Roma entre os anos 99 e 55 a.C.


Pouco se sabe da vida de Tito Lucrécio Caro. Nasceu provavelmente em Roma, onde foi educado. Quando conheceu a doutrina de Epicuro — "honra da raça grega" —, Lucrécio deslumbrou-se com seus ensinamentos, que lhe pareceram a chave para desvendar os segredos do universo e para abrir as portas da felicidade humana. Seguindo as pegadas do mestre, Lucrécio propõe-se à tarefa de libertar os romanos da religião que os oprimia e que sobre eles pesava com mais força do que outrora pesara sobre os gregos.


Além de servir de fonte para conhecimento da doutrina epicurista, o poema de Lucrécio temimensa importância literária: através dele Lucrécio se revela um dos maiores poetas dalíngua latina. Lucrécio matou-se em 55 a.C. Seu poema, escrito em intervalos de ataques de loucura, ficou inacabado e foi completamente revisado, para publicação, segundo algumas fontes, por um irmão de Cícero chamado Quinto. Segundo outras fontes, aquele trabalho foi feito pelo próprio Cícero, que tinha pelo poeta do materialismo profunda admiração.




Fonte: Coleção Os Pensadores

terça-feira, 17 de maio de 2011

Passei a viver mais deliberadamente só

«Passei a viver mais deliberadamente só, e o suave espírito da juventude quase tinha desaparecido por completo da minha alma. Tornara-se-me evidente o estado deplorável do século, a partir de coisas que conto e de outras, que não conto, e faltava-me também o doce consolo de encontrar o meu mundo numa alma, de abraçar a minha espécie numa criatura amável.»



Friedrich Hölderlin. HIPÉRION ou o Eremita da Grécia. Tradução e prefácio de Maria Teresa Dias Furtado. Assírio & Alvim, Lisboa, 1997, p. 39

segunda-feira, 16 de maio de 2011

Oh, a mim,...

«Oh, a mim, a mim a grandeza dos antigos dobrava-me, como uma tempestade, a cabeça, arrancava-me a floração do rosto, e muitas vezes ficava, sem que ninguém me visse, banhado em mil lágrimas, como um abeto abatido sobre um ribeiro, de copa murcha mergulhada nas águas. Como gostaria de ter comprado com o meu sangue um momento da vida de um grande homem!»


Friedrich Hölderlin. HIPÉRION ou o Eremita da Grécia. Tradução e prefácio de Maria Teresa Dias Furtado. Assírio & Alvim, Lisboa, 1997, p. 34
«Onde poderia eu encontrar refúgio, senão nos amados dias da juventude?»


Friedrich Hölderlin. HIPÉRION ou o Eremita da Grécia. Tradução e prefácio de Maria Teresa Dias Furtado. Assírio & Alvim, Lisboa, 1997, p. 33
CORO

estrofe



Eu penso nele com piedade, porque
sem ter mortal que o assista,
sem a presença de um rosto amigo,
o infeliz, sempre sozinho,
sofre de cruel doença
e vagueia por todo o lado
em busca do que lhe falta. Como pode, como,
resistir o desgraçado?
Ó planos dos mortais,
ó desventurada raça humana,
quando excede a mediania.



antístrofe

E este homem que por certo às mais ilustres
famílias nada fica a dever,
privado de tudo na vida,
aqui está, sozinho, longe dos outros,
por companhia as malhadas e hirsutas
feras; e grita, a um tempo por dores
e fome torturado e incuráveis
cuidados oprimido,
enquanto o loquaz
Eco que vem dos seus tristes
lamentos ressoa ao longe.





Sófocles. Filoctetes. Textos clássicos - 4. Introdução, versão do grego e notas de José Ribeiro Ferreira. 3ª edição. Textos Universitários de Ciências Sociais e Humanas. Fundação Calouste Gulbenkian. Junta Nacional de Investigação Científico Tecnológica, 1997, p. 44
Ulisses


   Filho de nobre pai, também eu, quando era jovem tinha a língua preguiçosa e pronto o braço. Hoje, com a experiência, vejo que, entre os mortais, são as palavras e não as acções que conduzem tudo.





Sófocles. Filoctetes. Textos clássicos - 4. Introdução, versão do grego e notas de José Ribeiro Ferreira. 3ª edição. Textos Universitários de Ciências Sociais e Humanas. Fundação Calouste Gulbenkian. Junta Nacional de Investigação Científico Tecnológica, 1997, p. 39

domingo, 15 de maio de 2011

«Andava errante como um fogo-fátuo, agarrando tudo, sendo por tudo agarrado, mas só momentaneamente, e as forças inúteis esgotavam-se em vão. Sentia em todo o lado que algo me faltava e não era capaz de encontrar o meu objectivo.»



Friedrich Hölderlin. HIPÉRION ou o Eremita da Grécia. Tradução e prefácio de Maria Teresa Dias Furtado. Assírio & Alvim, Lisboa, 1997, p. 28
«A inexperiência e a ingenuidade não lhe deixam distinguir perfeitamente o bem do mal e, por isso, é bastante influenciável. Sente-se enredado na argumentação sofística e pouco límpida de Ulisses. Dizem-lhe que o seu dever é obedecer, e ele, embora a custo, obedece; que não é vergonha dizer mentiras, e ele acredita. Com o evoluir da acção, porém, Neoptólemo confronta-se com a vida, com o sofrimento, com a injustiça, vê-se na necessidade de se definir, e então revolta-se contra as ordens e as leis que considera injustas. Não tinha experiência de vida, não lhe conhecia os meandros, nem sabia distinguir as variadas faces de um mesmo rosto; por isso, se deixou enredar. Depois, por experiência própria, por se ver no meio dos acontecimentos, por ter de decidir e tomar partido entre a justiça e a injustiça, a honradez e a traição, o humanitarismo e o interesseirismo, amadureceu e viu até onde tinha sido conduzido, até onde descera. Sentiu dentro de si uma dor profunda: sofria pela acção infame e baixa que cometera, sofria pela injustiça e traição que praticara. No entanto, está sob as ordens de Ulisses e deve-lhe obediência. Obedecer-lhe é, contudo, cometer uma acção injusta, desonesta, desonrosa. Neptólemo não sabe o que fazer nem onde está a verdade. Sofre, como bem demonstra a agitação que o toma a determinada altura e que Filoctetes detecta e sublinha nestas palavras:

Isso está bem patente agora na sua aflição pela falta que cometeu e pelo sofrimento que me causou.

(vv. 1011-1012)

É esta luta íntima que o amadurece, o torna homem.
[...] O contacto com Filoctetes mostra-lhe um outro modo de pensar a vida e de sentir os valores humanos e os problemas morais, bem diferente do de Ulisses. Dentro dele processa-se uma confrontação activa com duas maneiras tão díspares de actuar e de pensar, que lhe permitiram fazer a destrinça e proceder a uma escolha. Quando regressa no v. 1218, vem totalmente mudado: parece um outro homem. Cortara com Ulisses para aderir a Filoctetes. A honradez deste, a sua amizade, a confiança que nele depositara, a sua vida de sofrimento e a injustiça de que fora alvo conquistaram a alma generosa e justa do filho de Aquiles. Se, por momentos, a inexperiência e a ambição o haviam traído, a vida é, contudo, uma grande mestra, e Neoptólemo aprendeu à sua custa a distinguir o bem do mal; amargamente comprovou que, entre a argumentação e a realidade, entre as palavras e a verdade, medeia, por vezes, uma abissal distância.»



Sófocles. Filoctetes. Textos clássicos - 4. Introdução, versão do grego e notas de José Ribeiro Ferreira. 3ª edição. Textos Universitários de Ciências Sociais e Humanas. Fundação Calouste Gulbenkian. Junta Nacional de Investigação Científico Tecnológica, 1997, p.25/6

sábado, 14 de maio de 2011

«Quantas vezes estiveste perto de mim quando há muito tempo te encontravas longe, me transfiguraste com a tua luz e me aqueceste tanto, que o meu coração apático se reanimou, como a fonte seca quando tocada por um raio vindo do céu! »



Friedrich Hölderlin. HIPÉRION ou o Eremita da Grécia. Tradução e prefácio de Maria Teresa Dias Furtado. Assírio & Alvim, Lisboa, 1997, p. 27/8
«Oh, um Deus é o homem quando sonha, um mendigo quando pensa e quando o entusiasmo desaparece fica como um filho pródigo, expulso de casa pelo pai, e olha para os míseros tostões que a compaixão lhe deu pelo caminho.»



Friedrich Hölderlin. HIPÉRION ou o Eremita da Grécia. Tradução e prefácio de Maria Teresa Dias Furtado. Assírio & Alvim, Lisboa, 1997, p. 23

Medito e encontro-me só

«Neste cume estou muitas vezes, ó meu Belarmino! Mas um momento de reflexão derruba-me. Medito e encontro-me só, como dantes, com todas as dores da mortalidade. e o asilo do meu coração, o mundo eternamente uno, desaparece; a Natureza recusa-me os seus braços, e fico diante dela como um estranho e não a entendo.»



Friedrich Hölderlin. HIPÉRION ou o Eremita da Grécia. Tradução e prefácio de Maria Teresa Dias Furtado. Assírio & Alvim, Lisboa, 1997, p. 23
«Unir-se a tudo o que vive, regressar ao todo da Natureza, em feliz esquecimento próprio, é o mais elevado pensamento e a maior das alegrias, é o sagrado cume do monte, o lugar do eterno descanso, onde o meio-dia perde o seu ar abafado e o trovão a sua voz e o mar embravecido se assemelha à ondulação dos campos de trigo.»


Friedrich Hölderlin. HIPÉRION ou o Eremita da Grécia. Tradução e prefácio de Maria Teresa Dias Furtado. Assírio & Alvim, Lisboa, 1997, p. 23
«Agora todas as manhãs compareço nas alturas do istmo de Corinto e a minha alma, qual abelha entre flores, voa frequentemente num vaivém entre os mares, os que à direita e à esquerda refrescam o sopé dos meus montes ardentes.»



Friedrich Hölderlin. HIPÉRION ou o Eremita da Grécia. Tradução e prefácio de Maria Teresa Dias Furtado. Assírio & Alvim, Lisboa, 1997, p. 21
“Eu já não sou o que era: devo ser o que me tornei.”
''Já que tudo está na nossa cabeça, é melhor a gente não perdê-la.”

Mademoiselle Coco Chanel
    «É meia-noite. A chuva fustigava as vidraças. Estou calmo. Tudo dorme. Não obstante levanto-me e sento-me à secretária. Não tenho sono. A luz da lâmpada é firme e suave. Regulei-a para dar até de manhã. Ouço o bufo, ave nocturna. Que terrível grito de guerra! Outrora ouvia-o impassível. O meu filho dorme. Que durma. Virá a noite em que também, não podendo dormir, se sentará à mesa de trabalho. Estarei esquecido.»


Samuel Beckett. Molloy. Tradução de Rui Guedes da Silva. Editorial Presença, 1964., p 133

quinta-feira, 12 de maio de 2011

...........................Não havia homem algum no lugar,
ninguém que me socorresse e me ajudasse
a suportar a dor. Observei tudo
e nada encontrei que não fosse o desespero presente
e desse muita abundância, meu filho.

(vv. 280-284)
 
 
 
 
Sófocles. Filoctetes. Textos clássicos - 4. Introdução, versão do grego e notas de José Ribeiro Ferreira. 3ª edição. Textos Universitários de Ciências Sociais e Humanas. Fundação Calouste Gulbenkian. Junta Nacional de Investigação Científico Tecnológica, 1997, p.12

quarta-feira, 11 de maio de 2011

O Filoctetes

  « O Filoctetes (409 a. C.) baseia-se no contraste entre três figuras, duas que se opõem frontalmente, Filoctetes e Ulisses, e uma terceira que é atraída ora para a esfera de um, ora para a esfera do outro, Neoptólemo. Filoctetes, o homem abandonado que a solidão e o sofrimento endureceram, sem lhe destruírem a sensibilidade; Ulisses, o político sem escrúpulos morais que age pelo oportunismo e interesse e utiliza quaisquer meios para conseguir os seus objectivos; Neoptólemo, o jovem ingénuo, bom e generoso, que aprende com as situações embaraçosas, e sofre uma visível transformação psicológica. Da correlação de forças entre estas três personagens nasce e se desenvolve a acção.»



Sófocles. Filoctetes. Textos clássicos - 4. Introdução, versão do grego e notas de José Ribeiro Ferreira. 3ª edição. Textos Universitários de Ciências Sociais e Humanas. Fundação Calouste Gulbenkian. Junta Nacional de Investigação Científico Tecnológica, 1997, p.11

AS FOLHAS DA CEREJEIRA

A André Tarkovsky


        Por cima de Casteldeci há uma igreja sem tecto e as paredes têm entre os braços uma cerejeira que cresceu no chão e cujos ramos tocam o céu.
        Em Abril floresce e a brancura desliza da árvore até ao fundo do vale, depois nascem os frutos e comem-nos os melros e os pássaros bravos; entretanto as folhas ficam vermelhas e uma de cada vez caem no chão.
       Se alguém assoma àquelas paredes com o desejo de pedir um milagre e há uma folha que cai nesse momento é sinal de que lá de cima terá uma resposta boa.
        Tarkovsky passou lá em Novembro e precisava de fazer um pedido grande, mas as folhas já tinham caído todas e serviam de cama a duas ovelhas que dormiam.



Tonino Guerra. O Livro Das Igrejas Abandonadas. Tradução José Colaço Barreiros. Introdução de Vicente Jorge Silva. Assírio & Alvim, 1997, p. 45
       O amado solo da Pátria de novo me enche de alegria e de sofrimento.


Friedrich Hölderlin. HIPÉRION ou o Eremita da Grécia. Tradução e prefácio de Maria Teresa Dias Furtado. Assírio & Alvim, Lisboa, 1997, p. 21
      «Outrora os povos partiram da harmonia das crianças; a harmonia dos espíritos será o princípio de uma nova história do mundo. Os homens começaram a par da felicidade das plantas e cresceram, cresceram até amadurecer; a partir de então, continuaram a fermentar incessantemente, por dentro e por fora, até que o género humano, agora infinitamente desagregado, se apresenta como o caos, de tal modo que todos os que ainda sentem e vêem ficam com vertigens; porém a beleza foge da vida dos homens para as alturas do espírito; torna-se ideal tudo o que era Natureza, e se a árvore, por baixo, está seca e degradada, há ainda nela uma copa fresca que dela saiu e verdeja à luz do Sol, como outrora o tronco nos dias de juventude; é ideal o que foi Natureza. Neste ideal, nesta divindade rejuvenescida se conhecem os poucos que são uma unidade, porque neles há unidade, e a partir deles começa a segunda idade do mundo - » (Carta 26)



Friedrich Hölderlin. HIPÉRION ou o Eremita da Grécia. Tradução e prefácio de Maria Teresa Dias Furtado. Assírio & Alvim, Lisboa, 1997, p. 13

Carta a Susette Gontard

«É em Susette que o Autor reconhece a sua Diotima, e Susette, que já conhece o Hipérion, vê também em Hölderlin o seu Autor. A versão definitina é escrita em Frankfurt e é objecto de conversas entre ambos. Que Susette não estava de acordo em que a heroína morresse ficou documentado na carta 199.» 

            Aqui tens o nosso Hipérion, querida! Este fruto dos nossos dias felizes dar-te-á pelo menos um pouco de alegria. Perdoa-me que Diotima morra. Por certo te lembras que na altura não fomos completamente unânimes nesse ponto. Eu achava que era necessário, devido a todo o conjunto de pressupostos. Meu Amor! toma tudo o que aqui e ali se diz dela e de nós, da vida da nossa vida, como um agradecimento, que ainda se torna tanto mais verdadeiro, quanto mais desajeitadamente se exprime. Tivesse eu podido formar, a teus pés, em mim gradualmente o artista, em silêncio e liberdade, sim penso que depressa o chegaria a ser - por isso anseia agora o meu coração, mergulhado em sofrimento, em sonhos e à luz do dia e muitas vezes em silencioso desespero. (Hölderlin)


«A linguagem das cartas «reais» é praticamente a mesma das ficcionadas, pois a vida aproximou-se do ideal e o fracasso deste reflectiu-se na vida e até premonitoriamente, se pensarmos que Susette vem realmente a morrer cedo e que Hölderlin lhe sobrevive no afastamento completo da vida «normal», no seu cemitério da Torre de Tübingen.»



Friedrich Hölderlin. HIPÉRION ou o Eremita da Grécia. Tradução e prefácio de Maria Teresa Dias Furtado. Assírio & Alvim, Lisboa, 1997, p.9/10


      
«O homem gostaria de estar em tudo e acima de tudo, e a máxima inscrita no túmulo de Loyola:

         non coerceri maximo, contineri tamen a minimo

tanto pode referir-se ao pendor perigoso do homem, que tudo quer possuir e dominar, como ao estado máximo e magnífico que pode alcançar. Compete ao exercício livre da sua vontade decidir em que sentido ela deva valer.»




Friedrich Hölderlin. HIPÉRION ou o Eremita da Grécia. Tradução e prefácio de Maria Teresa Dias Furtado. Assírio & Alvim, Lisboa, 1997, p.9

segunda-feira, 9 de maio de 2011

O Livro das Igrejas Abandonadas

Eu abandono Roma
Os camponeses abandonam a terra
As andorinhas abandonam  a minha aldeia
Os fiéis abandonam as igrejas
Os moleiros abandonam os moinhos
Os montanheses abandonam os montes
A graça de Deus abandona os homens
Alguém abandona tudo



Tonino Guerra. O Livro Das Igrejas Abandonadas. Tradução José Colaço Barreiros. Introdução de Vicente Jorge Silva. Assírio & Alvim, 1997, p. 18
      Como dizia o Italo Calvino, «para Tonino Guerra tudo se transforma em conto e em poesia: de viva voz ou escrito ou nas sequências do cinema, em prosa ou em verso, em italiano ou em dialecto romanholo. Há sempre um conto em cada uma das suas poesias; há sempre uma poesia em cada um dos seus contos. E poesia quer dizer uma experiência precisa e concreta e inesperada, contendo dentro de si um sentimento e com o tom de uma voz que nos fala.»


Tonino Guerra. O Livro Das Igrejas Abandonadas. Tradução José Colaço Barreiros. Introdução de Vicente Jorge Silva. Assírio & Alvim, 1997, p. 15/6

domingo, 8 de maio de 2011

domingo, 1 de maio de 2011

Siddhartha tinha um único objectivo

«Siddhartha tinha um único objectivo: ficar vazio, vazio de sede, vazio de desejo, vazio de sonho, vazio de alegria e de tristeza. Deixar-se morrer, não ser mais Eu, encontrar a paz de um coração vazio, descobrir o milagre do pensamento puro, era o seu objectivo. Quando a totalidade do Eu estiver dominado e morto, quando todos os vícios e inclinações desaparecerem do coração, então despertará o mais profundo do Ser, aquilo que já não é o Eu, o grande segredo.»




Hermann Hesse.Siddhartha Um poema Indiano. Tradução de Pedro Miguel Dias. Casa das Letras. 1ª Edição, 1998, p. 22
«(...) A carne desapareceu das suas pernas e do rosto. Sonhos ardentes tremeluziam nos seus olhos enormes, nos seus dedos secos as unhas tornaram-se compridas e no seu queixo cresceu uma barba áspera e hisurta. O seu olhar era gelado, quando observava as mulheres; a sua boca enchia-se de desdém, quando atravessava uma cidade cheia de pessoas bem vestidas. Via mercadores a negociar, príncipes a caminho das caçadas, pessoas enlutadas chorando os seus mortos, prostitutas que se ofereciam a ele, médicos ocupados com os seus doentes, sacerdotes a determinarem o dia para as sementeiras, amantes a amarem, mães a embalarem os seus filhos - e tudo isto valia a seus olhos, tudo mentia, tudo cheirava mal, tudo cheirava a mentiras, tudo fingia sentido e sorte e beleza, tudo era uma oculta podridão. O mundo tinha um sabor amargo. A vida era sofrimento.»



Hermann Hesse.Siddhartha Um poema Indiano. Tradução de Pedro Miguel Dias. Casa das Letras. 1ª Edição, 1998, p. 21/2

«É necessário encontrar a Fonte Primordial no fundo do Eu, possuí-la em nós mesmos! Tudo o resto era demanda, era desvio, era erro.
    Estes eram os pensamentos de Siddharta, esta era a sua sede, esta a sua dor.»


Hermann Hesse.Siddhartha Um poema Indiano. Tradução de Pedro Miguel Dias. Casa das Letras. 1ª Edição, 1998, p. 15

Atman

«(...) A quem fazer sacrifícios, a quem venerar, senão a Ele, ao Único, a Atman? E onde encontrar Atman, onde vive Ele, onde bate o Seu coração, senão no próprio Eu, nas profundezas imperecíveis que existem em todos nós? Mas onde, onde se encontra este Eu, esta Interioridade, esta Finalidade? Não é de carne e osso, não é o pensamento ou a consciência, assim ensinavam os mais sábios. Onde, onde era então? Penetrar no Eu, na Interioridade, em Atman - existiria outro caminho que valesse a pena ser procurado? Mas, ai, que ninguém o conhecia, nem o pai, nem os professores e sábios, nem os cânticos sagrados dos sacrifícios!»



Hermann Hesse.Siddhartha Um poema Indiano. Tradução de Pedro Miguel Dias. Casa das Letras. 1ª Edição, 1998, p. 14

TARDE DE OVELHAS

A mancha de sangue depõe-se no horizonte de aqui,
A gota de leite desponta no horizonte de lá.
Homem simples que se dissipa na flauta e cuja pru-
       [dência tem a forma de um cão negro, o pastor
                             [desce a adolescência da encosta.
Seguem-no as suas ovelhas, com dois pâmparos por
        [orelhas e dois cachos por tetas, seguem-no as
                            [suas ovelhas: vinhas ambulantes.
Tão puro o rebanho, que esta tarde estival parece                
                             [nadar na planura infantilmente.
Estes miúdos escrínios de vida roeram, lá no alto.
                             [os perfumadores e descem cheios.
Os meus Desejos também, estimulados pela flauta
 [da Esperança e o cão da Fé, subiam esta manhã
 [a encosta do Mistério, e foram-se mais alto que
                                            [as ovelhas da minha alma.
Mas, na pradaria de jacintos, a cheirosa estrela incen-
       [diou os dentes ávidos que queriam desapertar-lhe
                                                                     [o corpete fértil.
É por isso que o meu rebalho subtil, à hora das ave-
 [-marias, se adentra em mim, flancos desesperados.
As ovelhas estão no redil, e o homem simples vai
[dormir entre a sua flauta e o cão negro.




Saint-Pol Roux. Poesia do século XX. Antologia, tradução, prefácio e notas de Jorge de Sena, p.147
«Tristes lágrimas de ira:
Não minhas: da vida.»


Alfred Edward Housman. Poesia do século XX. Antologia, tradução, prefácio e notas de Jorge de Sena, p.141
«Estranho e em terror, que farei
Num mundo que não criei?»

Alfred Edward Housman. Poesia do século XX. Antologia, tradução, prefácio e notas de Jorge de Sena, p.141

«In the morning...»

De manhã, pela manhã,
No feliz campo de feno,
Oh, filtram-se um ao outro
À luz do dia sereno.

Na manhã de azul e prata
Sobre o feno de deitavam,
Oh, fitaram-se um ao outro,
E seus olhos desviavam.



Alfred Edward Housman. Poesia do século XX. Antologia, tradução, prefácio e notas de Jorge de Sena, p.140

«No Worst...»

Não pior não há. Que tensas além tensa dor,
mais mágoas, de em pre-mágoas, brancas morderão.
Ó tu que és quem consola, onde a consolação?
Maria, nossa mãe, aonde o teu calor?

Meus gritos arfam, longos de manadas, por
em de hiper-mundo-dor, em bigorna canção.
Depois sossegam, calam. A fúria estrila: « Não
demora. Que eu remate seja. Breve ardor».

A alma tem montanhas; tem escarpas terríveis
abruptas, não-exploradas. Julga-as por pequenas
quem nunca pendeu nelas. Nem podem sensíveis
lidar com tais declives. Vá. canalha, amenas
te servem ventanias, trepa! Que os possíveis
da vida a morte acaba, e o dia dorme as penas.



Gerard Manley Hopkins. Poesia do século XX. Antologia, tradução, prefácio e notas de Jorge de Sena, p.133/4
«As folhas gelam no frio;
mas que amizades amantes
podem gelar como dantes
quem no Inverno sumiu?»


Thomas Hardy. Poesia do século XX. Antologia, tradução, prefácio e notas de Jorge de Sena, p.131