sábado, 27 de novembro de 2010

 
«Esta casa já não pode suportar-me.
Eu já não posso carregá-la no dorso.
É necessário ter sempre cuidado, ter muito cuidado,
escorar a parede com o armário grande
escorar o armário com a velha mesa entalhada
escorar a mesa com cadeiras
escorar as cadeiras com as mãos
meter o ombro na trave que acaba de ceder.
E o piano com um soturno caixão fechado. Sem
coragem para o abrir,
estar sempre com cuidado, sempre atenta que
nada caia, que eu própria não caia. Não posso
mais.
Deixai-me ir convosco.
 
Esta casa, apesar de todos os seus mortos, não
deseja morrer.
Obstina-se a viver com os seus mortos
a viver dos seus mortos
a viver da certeza da sua morte
e a colocar os seus mortos em camas e em prate-
leiras demolidas.
Deixai-me ir convosco.
Aqui, por mais macios que sejam os meus passos
na bruma da tarde,
que eu ande de pantufas ou com os pés descalços,
alguma coisa estilhaçará - um vidro de janela ou
um espelho.
Ouvem-se certos passos - não são os meus.
É possível que fora, na rua, tais passos não se
ouçam
 - dizem que o arrependimento calça tamancos -
e se nos voltarmos e nos olhamos nesta ou naquela
vidraça
apercebemos, atrás da poeira e das fendas,
o nosso rosto ainda mais embaciado e estilhaçado,
o rosto para o qual, na vida, tínhamos pedido
apenas
a possibilidade de o manter puro e indivisível.»
 
(...)
 
 
 
 
Yannis Ritsos. poemas. Selecção e Trad. de Egito Gonçalves. Prefácio de Carlos Porto. 1ª ed. Fevereiro, 1984. Editora Limiar., p.22

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