sábado, 20 de novembro de 2010

C. v. L. (1707 -1778)

 Uma loucura diferente da nossa: a loucura de um clássico.
Claro, seco e lacónico. Naquele tempo era tudo mais pequeno.
Era quase um anão, nervoso, impaciente, rodopiante,
mas o olhar cor de âmbar sob a pesada cabeleira
era penetrante e frio: é preciso rejeitar tudo o que sejam
características acidentais. Coleccionar, definir, classificar.
Todas as parecenças obscuras foram apenas inventadas para
vergonha da ciência. Lâminas terminiológicas para extrair
o imutável da carne e de um mundo cego e trémulo.

Inventários, nomenclaturas, reportórios. A natureza,
um quadrado intemporal, uma quadrícula imóvel.
Gravuras coloridas à mão, árvores genealógicas, tabelas.
Na espuma dos fenómenos, esta linguagem não se mexe.
Uma gramática do mensurável: da espessura de um cabelo,
da fundura de um umbigo, com a forma de uma vulva,
espiralada como a concha de uma orelha. Classificando,
minuciosamente e «com sentido». Trabalhando dia e noite,
para não perder um minuto enquanto permanecesse em Upsala.

Num país pobre, no mais miserável dixhuitième:
juventude pedregosa, sem dinheiro para meias-solas, comendo
do prato alheio, uma cama sempre fria, subterfúgios
para obter títulos e táleres. Finalmente, a fuga para o inóspito.
Lá, onde quase nada mais vive, ele quase revive.

Lapónia, 1745: vi verão e inverno num só dia,
atravessei nuvens, busquei o fim do mundo,
os asilos nocturnos do Sol. No frio, floresce o seu
coração seco. Líquenes rangíferos, tundra, liberdade do Ártico.

Depois, regresso aos cortesãos, aos jardins e gabinetes.
Sonhos infernais, meditações, trevas «cheias de sentido».
Nos olhos âmbar o brilho da loucura. Estático.
Finalmente, professor, médico pessoal da rainha (a mão certa
para curar as doenças do peito), presidente da academia.
Condecorado: Estrela Polar com fita preta. Tudo tarde de mais.
Azedume, desconfiança, noites sombrias em estufas,
depois a apoplexia. Os últimos quatro anos com
paralisia parcial, numa triste fraqueza de corpo e espírito.

Ninguém sabia que ele, que tinha encontrado tantas provas
da providência divina entre as coisas naturais, há muitos anos
vinha coleccionando exemplos semelhantes nos destinos humanos;
e que também os milagres, os pecados, obedecem à taxonomia.
Mania das perseguições, alucinações. Paralelamente à histoire admirable
des plantes, a história natural de doenças e vícios:
Nemesis divina, o noctário, guardado num estojo,
cheio de premonições, augúrios, intuições, leitura para Strindberg.
Teologia empírica. O investigador como espião de Deus.

Tudo tem a sua ordem: fogo posto luxúria infanticídio traição
manha e envenenamento. Melander, professor de teologia,
tece intrigas no consistório, até que, às seis da tarde, a sua cabeça
se volta para as costas. Caí, é levado para casa, nunca mais
verá o dia da cura. Deus é um rectângulo intemporal,
a Sua retaliação uma quadrícula, imóvel: execução, fogo
defenestração cabeça cortada. A senhora Psilanderhjelm, leviana
deita-se com um cortesão em Estocolmo. Apanha uma doença do ventre,
morre em breve. Abrem-na, encontram uma pedra no lugar da criança.

E assim tudo se revela. O pecador apodrece em vida.
Um modo de vida bastante monótono. Os castigos
são coleccionados, definidos e classificados. Minuciosamente e «com sentido»,
como o mecanismo da reprodução: estame seco e pólen,
semente estilete e estigma. Systema sexualis: uma obsessão fatal.
A vida não existe; só existem seres vivos.
Cada vez mais pequeno, o grande ancião medita, imóvel,
sobre uma vingança divina que fosse lógica. «Com sentido».
Sem sentido. «Com sentido». «Nós» não fazemos parte da sua loucura.

A flor que traz o seu nome, linnaea borealis L.,
é insignificante, minúscula, e quase toda branca.


Hans Magnus Enzensberger. Mausoléu. Trad. e prefácio de João Barrento. Edições Cotovia, Lisboa, 2004., p. 73-77

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