quarta-feira, 24 de novembro de 2010

«(...) Todas as suas obras apodreceram e enferrujaram, e ele próprio queimou os seus papéis, desenhos e projectos. Desempenhou um papel importante na história do pão.

IV


Muitas das palavras que utilizou (era construtor de carruagens) desapareceram: lança, tamancos, copa e albas. Teria sido capaz de nos explicar o que é um céu recolhido.

V

...uma espécie que manipula a sua própria evolução por meio de intervenções planificadas nas suas condições de vida e no seu programa genético. A este processo chama-se auto-evolução. (Exemplo: o construtor de carruagens que desaparece enquanto tal ao inventar um carro a vapor. Também o moleiro não se extingue por si próprio.) Desconhece-se o fim último daquela intervenção planificada.

VI

O grão é levado da carrada de taleigos para a moega; daqui passa pelo orifício fundo da moega e corre pelo olho da mó para a caleira; escoa-se da caleira, para ser comprimido entre a mó andadeira e a fixa, cai pelo veio, vai dar ao tremonhado, acaba no limpador, a farinha é levada para a eira, peneirada, passa depois à câmara de mistura, junta-se no silo, passa pela mangueira de enchimento e cai na barrica. O moinho está cheio de moleiros suados; mestres-moleiros, homens com horas de moer, ajudantes; numa roda viva, vão movimentando os carolos, a farinha macia e a áspera, a farinha de primeira, de segunda, de resíduo, a flor-de-farinha, levantam-na e carregam-na, arrumam e transportam.
Depois aparece o inventor e constrói um moinho de onde desaparecem os moleiros. A única agitação no edifício sem vivalma é a das correias transportadoras de alcatruzes, dos monta-cargas, dos alimentadores, dos hélices da moagem: aparelhos pelos quais o grão, ora na horizontal, ora na vertical vai passando de um dispositivo para o outro através da máquina, evitando assim todo o trabalho manual e toda a sujidade.»


Hans Magnus Enzensberger. Mausoléu. Trad. e prefácio de João Barrento. Edições Cotovia, Lisboa, 2004., p. 121/123

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