quinta-feira, 28 de outubro de 2010

O do Senhor da Casaquinha Verde

E o Senhor da casaquinha verde?
Que terrível sonho eu tive com ele!
Entrava num conto que me lembro de ter ouvido. Era um farsante! Saía do seu buraquinho, falava, corria as sete partidas do mundo a intrigar uns e outros, e não passava de um lagarto.
Que noite tão assustada eu passei por causa do senhor da casaquinha verde! Sonhei que estava a dormir com ele. Via-o mesmo ao pé da minha cara e sentia-me cheia de arranhões e babujada.
Mas que havia de eu fazer? Horripilante companhia! Levanto-me repentinamente da cama e atiro-me da janela abaixo. Até parece que voo. Fujo, fujo, fujo...e o senhor da casaquinha verde perseguindo-me.
Começa a chover. Não é água que cai, infelizmente, apesar de eu ter medo da chuva. São bolotas, são pedras, são bugalhos, que me magoam tanto! É castigo, penso eu, estou a ser castigada, mas de quê?
Atrás de mim o lagarto faz uma restolhada medonha, mas eu nunca me volto, nem quero ver nada.
Não quero ver...e sem querer olho...mas como é que não morro logo de susto? Perseguem-me centenas de lagartos, enormes, e todos com olhos a fuzilar. Que bocarras, que bocarras! Caio de joelhos no chão, falece-me a coragem. Estou num círculo de lagartos ferozes, estou no meio de navalhas afiadas....
Oiço então a voz do senhor de casaquinha verde: queres voltar comigo para a cama?
Ele a falar-me!
Choro, cheia de medo, e o círculo das navalhas aperta-se, aperta-se cada vez mais. Vou morrer. Já morri. Sei que estou morta, o que me não dá alegria nem tristeza. Deixo de pensar nos lagartos, vou descendo não sei para onde. É terrível e delicioso, escorrego sempre, sempre, sem jamais parar.
Acordei cansada. E jurei a mim mesma nunca mais ouvir nem ler histórias de lagartos.



Irene Lisboa. Uma Mão Cheia de Nada Outra de Coisa Nenhuma. Livraria Figueirinhas, Porto, 1989., p. 116-118

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