sábado, 9 de outubro de 2010

Nas arcas negras da terra dos camponeses

Nas arcas negras da terra dos camponeses
está escrito que eu terei de morrer no Inverno,
abandonado pelos meus sóis e pelo sussurro dos baldes,
dos baldes cheios de leite mungido,
pronunciando o tormento e o fim sob os golpes do vento de Março,
que me esmaga com a evocação
das macieiras em flor e do feitiço das eiras!
Nunca aniquilei uma noite com palavras afrontosas
nem com lágrimas, mas este tempo, este tempo absurdo,
extinguir-me-á
com a sua poesia seca e afiada como uma faca!
Terei não só de suportar o abandono, mas também
de conduzir o gado dos meus pais e das minhas mães através dos milénios!
Terei de criar chuva
e neve e maternalidade
para os meus crimes e louvar a raiva
que me arruína a seara nos meus próprios campos!
Reunirei os negociantes e as prostitutas de sábado num ponto da
floresta
e oferecerei esta terra, esta terra triste,
ao seu feroz desespero!
Farei entrar mil sóis na minha
fome! Amanhã criarei
algo de transitório para a imortalidade,
perto das fontes e das torres e longe
dos artesãos,
numa madrugada que está farta dos meus sofrimentos
e na qual não acontece senão o retorno das estrelas à sua morada...
...é aí que quero falar com os desesperados
e deixar tudo
o que foi desprezo, amargura e nojo deste mundo.




Thomas Bernhard. Na Terra e no Inferno. Trad. e introdução José A. Palma Caetano. Assírio & Alvim, 2000, p. 31-33

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