domingo, 31 de outubro de 2010

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M.B
Querida, hoje saí de casa já muito ao fim da tarde
para respirar o ar fresco que vinha do oceano.
O sol fundia-se como um leque vermelho no teatro
e uma nuvem erguia a sua cauda enorme como um piano.
Há um quarto de século adoravas tâmaras e carne no braseiro,
tentavas o canto, fazias desenhos num bloco-notas,
divertias-te comigo, mas depois encontraste um engenheiro
e, a julgar pelas cartas, tornaste-te aflitivamente idiota.
Ultimamente têm-te visto em igrejas da capital e da província,
em missas de defuntos pelos nossos comuns amigos; agora
não param (as missas). E alegra-me que no mundo existam ainda
distâncias mais inconcebíveis que a que nos separa.
Não me interpretes mal; a tua voz, o teu corpo, o teu nome
já não mexem com nada cá dentro. Não que alguém os destruísse,
só que um homem para esquecer uma vida, precisa pelo menos
de viver outra ainda. E eu há muito que gastei tudo isso.
Tu tiveste sorte; onde estarias para sempre - salvo talvez
numa fotografia - de sorriso trocista, sem uma ruga, jovem, alegre?
Pois o tempo, ao dar de caras com a memória, reconhece a invalidez
dos seus direitos. Fumo no escuro e respiro as algas podres.
1989
Iosif Brodskii. Paisagem Com Inundação. Edição Bilingue. Introdução e tradução de Carlos Leite. Edições Cotovia, Lisboa, 2001., p.63


4 comentários:

  1. «Pois o tempo, ao dar de caras com a memória, reconhece a invalidez
    dos seus direitos»

    Conheci Brodskii recentemente , perdido no país dos czares . Há qualquer coisa nos russos - na literatura , como no cinema , como na forma com que encaram a vida - uma coisa que é dilacerantemente infantil e ao mesmo tempo fascinante , peculiar , verdadeira , indesmentível .

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  2. Também encontrei Brodskii recentemente. Não o acho sublime, contudo, estou a conhecer.

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  3. Eu não disse que ele era sublime , disse que ele era genuíno....

    http://dosvidannia.blogspot.com/2010/10/os-amores-risiveis.html

    Da Russia , trouxe uns 20 filmes dos anos 70 e 80 , verdadeiramente fascinante , vou levar algum tempo a vê-los com vagar ( um dos grandes problemas é que não têem legendas ) , depois se quiseres passo te alguns títulos que eu ache bons...

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  4. Ah...pronto;)

    Olhe não consigo aceder ao blogue (só reservado a leitores convidados ahahahhahah)

    Eu conheço pouca coisa dos russos, muito embora me interesse.

    Li, muito nova (e, talvez por isso nutra um infantil fascínio pelo Doutor Jivago do Boris Pasternak)

    e, já com a Gaivora de Tchekhov e teatro de Máximo Gorki na mira, para as noites do meu «doce» Novembro.


    Claro, se quiser partilhar, partilhe, que eu gosto muito de cinema;)

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