domingo, 8 de agosto de 2010

«Ele, o Outro, O outro de mim. Em menos de nada, já a Edite falava ao telefone com os médicos sobre esse alguém impessoal que eu estava a começar a ser.

(...)

Lembro-me de que essa manhã foi invadida por um aguaceiro desalmado, ouvia-se uma chuva grossa e pesada lá fora mas deve ter sido passageira porque quando acabou a Edite ainda estava ao telefone. A partir de então tudo o que sei é que me pus ao espelho da casa de banho a barbear-me com a passividade de quem está a barbear um ausente - e foi ali.
Sim, foi ali. Tanto quanto é possível localizar-se uma fracção mais que secreta da vida, foi naquele lugar e naquele instante que eu, frente a frente com a minha imagem no espelho mas já desligado dela, me transferi para um Outro nome e sem memória e por consequência incapaz da menor relação passado-presente, de imagem-objecto, do eu com alguém ou do real com a visão que o abstracto contém.»



José Cardoso Pires. De Profundis, Valsa Lenta. Círculo de Leitores. Lisboa, 1998., p.30/1

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