quarta-feira, 4 de agosto de 2010

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Houve um dia, na nossa primeira viagem - no nosso primeiro circuito do Paraíso - em que, para gozar os meus fantasmas em paz, decidi firmemente ignorar o que não podia deixar de compreender: que, para ela, não era um namorado, nem um homem sedutor, nem um camarada, nem sequer uma pessoa, e sim, apenas, dois olhos e um palmo de músculo ingurgitado - para mencionar somente as coisas mencionáveis. Houve um dia em que, depois de recusar e cumprir a promessa funcional que lhe fizera na véspera (qualquer coisa em que o seu engraçado coraçãozinho tinha empenho - um rinque de patinagem com um piso especial de plástico ou uma matinée a que queria ir sozinha), vi por acaso, da casa de banho, graças a uma ocasional combinação de espelho inclinado e porta entreaberta, uma expressão no seu rosto...uma expressão que não consigo descrever exactamente...uma expressão de tão perfeito desespero que parecia transmutar-se gradualmente noutra de confortável inanidade, precisamente porque fora atingido pelo próprio limite da injustiça e da frustração - e cada limite pressupõe algo para além dele, daí a compreensão neutra. E, se tiverem em mente que se tratava das sobrancelhas arqueadas e dos lábios entreabertos de uma criança, poderão avaliar melhor os abismos de carnalidade calculada e o pensado desespero que me contiveram e impediram de cair aos seus queridos pés e desfazer-me em lágrimas humanas, e sacrificar o meu ciúme aos prazeres que Lolita esperasse, porventura, encontrar na companhia de crianças sujas e perigosas num mundo exterior que era real para ela.
Mas ainda tenho outras recordações sufocadas, que se desdobram agora em monstros de dor desprovidos de membros. Uma vez, numa rua de Beardsley envolta no poente, ela voltou-se para a pequena Eva Rosen (eu levava as duas ninfitas a um concerto e caminhava atrás delas, mas tão perto que quase lhes podia tocar com o meu corpo), voltou-se para Eva e, muito serena e seriamente, em resposta a qualquer coisa que a outra dissera acerca de ser melhor morrer do que ouvir Milton Pinski, um estudante qualquer que ela conhecia, falar de música, a minha Lolita observou:
- Sabes, o que há de tão terrível em morrer é ficarmos completamente entregues a nós próprias.
Pensei então, enquanto os meus joelhos de autómato subiam e desciam que não sabia nada a respeito da mentalidade da minha querida e que, possivelmente, atrás dos horríveis clichés juvenis, havia nela um jardim e um crepúsculo, e o portão de um palácio - vagas e adoráveis regiões que me eram lúcida e absolutamente proibidas, nos meus farrapos poluídos e nas minhas miseráveis convulsões. Pois ocorreu-me muitas vezes que, vivendo como vivíamos, ela e eu, num mundo de mal absoluto, ficaríamos estranhamente embaraçados sempre que eu tentasse discutir qualquer coisa que ela e uma amiga mais velha, ela e uma pessoa da família, ela e um namorado autêntico e saudável, eu e Annabel, Lolita e um sublime, purificado, analisado, deificado Harold Haze poderiam discutir - uma ideia abstracta, um quadro, o pontilhado Hopkins ou o esbulhado Baudelaire, Deus ou Shakespeare, fosse o que fosse de natureza genuína. Boa vontade! Ela envolvia a sua vulnerabilidade em imprudência ordinária e enfado, enquanto eu, utilizando nos meus comentários desesperadamente impessoais um tom de voz artificial que me irritava, provocava na minha interlocutora tais explosões de rudeza que se tornava impossível continuar a conversa. Oh, minha pobre, minha magoada criança!





Vladimir Nabakov. Lolita. Livros de bolso europa-américa. Trad. Fernanda Pinto Rodrigues, 1995., p.294/5

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