*
Desci, dando-te o braço, pelo menos um milhão de escadas
e agora que não estás aqui há um vazio em cada degrau.
Até nisso foi breve a nossa viagem.
A minha dura ainda, e já não são necessárias
as coincidências, as reservas,
as ciladas, as vergonhas de quem acredita
que a realidade é aquilo que se vê.
Desci milhões de escadas dando-te o braço
e não porque com quatro olhos talvez se veja mais.
Contigo as desci por saber que de nós dois
as únicas pupilas verdadeiras, ainda que tão ensombradas,
eram as tuas.
*
«E o Paraíso? Existe um paraíso?»
«Creio que sim, senhora, mas os vinhos doces
já ninguém os quer».
*
Sinto remorso por ter esmagado
o mosquito na parede, a formiga
no chão.
Sinto remorso mas aqui estou vestido de escuro
para o congresso, para a recepção.
Sinto dor por tudo, até pelo hilota
que me propina conselhos de participação,
dor pelo mendigo a quem não dou esmola,
dor pelo demente que preside ao conselho
de administração.
Eugenio Montale in Dez Poetas Italianos Contemporâneos em selecção, tradução e notas de Albano Martins. Publicações Dom Quixote, 1992
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