A BONECA - A dizer a verdade, eu nunca me enganei...Mas nunca faço nada porque tenho medo de me enganar!...
O BONECO - (A ralhar.) Pareces mais uma menina que uma boneca!!!
A BONECA - Mas o que é que queres?...Eu sou assim...A ti que és boneco, não te ficava mal levantares-te por tua própria iniciativa e sem que ninguém saiba... (A crescer de interesse.) Mas
achas que me ficava bem a mim uma boneca, levantar-me por minha própria vontade, sem mais nem menos?
O BONECO - Estou-te a dizer que todas as noites me fartei de puxar por ti!...
A BONECA - Eu julgava que era o Homem!
O BONECO - Ora aí está! De que serviu eu ter puxado tanto por ti, se tu te punhas a julgar outras coisas!...
A BONECA - (Perfil.) Chiu!...Supõe tu que era o Homem.
O BONECO - Mas não era o Homem, era eu!!!
A BONECA - (3/4.) Mas eu é que não sabia!...
O BONECO - Olha! digo-te outra vez: Pareces mais uma menina do que uma boneca!
A BONECA - E não dizes nada mal!...pois quantas vezes eu me esqueço de que sou uma boneca e me ponho a pensar, exactamente como se fosse uma menina!
O BONECO - (Ri.) Isso é mesmo de boneca!
A BONECA - Mas que queres que eu faça? Eu sou assim...Não fui eu que me fiz!...E tu também não podes falar!...Tu levantas-te quando te apetece e mexes-te à tua vontade, como se fosses uma pessoa...e isto, para um boneco parece a mais!...
O BONECO - És mesmo parvinha de todo! É o que eu te digo: nem pareces uma boneca! Então tu não sabes, minha estupidazinha, que um boneco, quando não está ninguém a ver se mexe à sua vontade?
A BONECA - Já me quis parecer isso ...tenho pensado muito a esse respeito...mas a certa altura começa-me a doer a cabeça e nunca consegui, até hoje, pensar esse assunto todo até ao fim!
O BONECO - Tu és uma fraca!
A BONECA - Pois sou...Não tenho coragem nenhuma! Eu nem tive nunca coragem para me mexer de posição em que o Homem me deixasse!...E tu? Lembravas-te sempre, exactamente, da posição em que o Homem te tinha deixado?
O BONECO - Sempre!
Almada Negreiros in Antes de Começar. Colecção BARATINHA. Raiz Editora. Lisboa, 1995
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