quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Ode à indolência

Eles não trabalham,
nem fiam.

S. Mateus, VI, 28



Surgiram, numa manhã, diante de mim três formas
de perfil, com cabeças inclinadas e as mãos juntas.
Uma atrás das outras, serenamente, elas passavam
com silenciosas sandálias, ornadas apenas dos seus vestidos
brancos;
assim caminhavam como as figuras inscritas numa urna de
mármore
enquanto a voltamos, para que nos mostre a sua outra face.
E, de novo, apareceram: como se principiássemos a deslocar
mais uma vez a urna e, depois, olhássemos as mesmas
imagens.
Eram para mim desconhecidas; também para os que não
ignoram
a arte de Fídias, por vezes são misteriosas as figuras de cada
vaso.

Sombras, porque me foi impossível reconhecer-vos?
Porque surgistes ocultas por essa máscara de silêncio?
Foi, acaso, graças a um acordo secreto e furtivo
que vos esquivastes, deixando que sem destino se percam
os meus dias inúteis? Amadurecida estava a hora que se
desprendeu;
o ditoso nevoeiro que nasce da indolência estival
afogou-me os olhos; o meu pulso ficou ainda mais lento;
a dor já não me feria e a grinalda do prazer perdeu as suas flores.
Oh, porque não vos desvanecestes, deixando a minha
consciência
vazia de qualquer desígnio, a não ser o do nada.

Porque viestes de novo, tão lentas, ao meu encontro?
O meu sono fora tecido com imagens obscuras;
era a minha alma semelhante a uma planície aspergida
de flores, sombras agitadas e indistintas luzes;
as nuvens permaneciam sobre a manhã, mas a chuva não
caiu
apesar de se verem nas suas pálpebras as suaves lágrimas de
Maio;
pela janela aberta, junto de uma vinha cheia de novas folhas,
entrava a canção de uma ave, o calor das flores que nasciam.
Sombras! Foi este o momento em que vos despedistes
e, sobre a orla dos vossos vestidos, não desceu o meu
pranto

Vieram ainda uma terceira vez e, passando, cada uma
voltou para mim, durante um instante, a sua face.
Depois desapareceram; para persegui-las, sentia arder o
desejo
de ter asas, porque reconheci cheio de dor aquelas três
sombras.
A primeira era uma formosa donzela, e chamava-se Amor;
a segunda era a Ambição, de rosto pálido,
cujos olhos fatigados permaneciam sempre em vigília;
e a última, aquela que eu amei tão veementemente
apesar de todas as condenações, era a virgem indócil
em que reconheci a Poesia, meu demónio.

Assim desapareceram e, naquele momento, como queria ter
asas.
Ó loucura! Que significa o Amor, e onde encontrá-lo?
E a Ambição, que nasce apenas dum acesso de febre
e atravessa, sem se demorar, o coração estreito do homem.
Nem sequer te desejo, Poesia: a mim, nunca vieste mostrar
a alegria, tão suave como os meios-dias sonolentos
ou o anoitecer molhado pelo mel da indolência.
Ah! como gostaria de viver protegido de todos os desgostos
até esquecer qual é o movimento das luas
ou deixar de ouvir as vozes dos outros, sensatas e diligentes.

Adeus, três sombras, adeus! Não podereis fazer com que
levante
a minha cabeça, apoiada sobre a erva florida e tão fresca,
porque não quero ser, como numa parábola, o cordeiro que
todos vêm acariciar,
ou que se transformem os elogios no meu alimento.
Desaparecerei suavemente diante dos meus olhos, e mais
uma vez
transformai-vos em personagens obscuras sobre a urna do
sonho.
Adeus! Para a noite existem dentro de mim outras visões
e, para o dia, guardo ainda indistintas imagens.
Sombras, dissipai-vos agora. Longe da indolência do meu
espírito
caminhai para as nuvens, e nunca mais regresseis...

Keats
in Poesia Romântica Inglesa (Byron, Shelley, Keats)
Relógio D'Água, 1992
Trad: Fernando Guimarães

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