quinta-feira, 4 de novembro de 2010

«Um dia estes anos serão
vistos como uma laje de mármore
raiado de veias (...) »
 
 
Iosif Brodskii. Paisagem Com Inundação. Edição Bilingue. Introdução e tradução de Carlos Leite. Edições Cotovia, Lisboa, 2001., p.233

Holy Virgin, 2003

À memória de Clifford Brown

Não é a cor azul, é a cor frio.
É a cor do Atlântico em meados de Fevereiro.
E seja como for que estejas vestido, estás nu,
deitado de costas, num bloco de gelo.
 
Não é um simples bloco de gelo, feito de gelo,
mas o argumento de que todo o calor está ausente.
Está sozinho no oceano, e tu estás em cima dele
sozinho; e o som do trompete é como o mercúrio cadente.
 
Não é uma voz ingénua que arranha no escuro,
mas os dedos gelados em ré maior, sem luvas;
e uma gota de chuva cintilante eleva-se para o zénite,
para observar do alto o espaço por essa retina.
 
Não é uma simples retina, é um brocado faiscante,
uma nova língua musical feita de riscas e estrelas. O gelo
não se funde, tal um foco de luz errando
para a escuridão dos bastidores onde se esconde o pólo.
 
 
Fevereiro de 1993
 
 
 
Iosif Brodskii. Paisagem Com Inundação. Edição Bilingue. Introdução e tradução de Carlos Leite. Edições Cotovia, Lisboa, 2001., p.225

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Ode ao cimento

Tu sobreviver-me-ás, meu bom e velho cimento,
como eu sobrevivi, parece, a alguns homens que
me tomaram, também, por uma espécie de arruamento
e citavam a cor dos olhos, ou o semblante.
 
Por isso, não por inveja, mas porque somos parentes,
gabo o teu inanimado, poroso aspecto
-menos duradouro, padecendo de juntas trementes,
mas mesmo assim grato ao arquitecto.
 
Aplaudo-te as origens humildes - insignificantes,
melhor dito - o rugido selvagem, o grasnido hiante
que uma finalidade abstracta no entanto combina
perfeitamente e está fora do meu alcance.
 
Não porque o igual reproduza o igual,
mas porque o futuro prefere acorrer a um
encontro absolutamente imprevisível
e se envolve em longo e petrificante manto.
 
1995
 
 
Iosif Brodskii. Paisagem Com Inundação. Edição Bilingue. Introdução e tradução de Carlos Leite. Edições Cotovia, Lisboa, 2001., p.209
 
«Como Confúcio indiferente,
quase inconsciente,
poderá não nos amar,
mas ''Sempre'' há-de murmurar.»
 
 
Iosif Brodskii. Paisagem Com Inundação. Edição Bilingue. Introdução e tradução de Carlos Leite. Edições Cotovia, Lisboa, 2001., p.191
«Tu, chora os massacrados.
Reza pelos que são acocorados
algures num buraco de cimento
e que têm a traição pela frente.»
 
 
 
Iosif Brodskii. Paisagem Com Inundação. Edição Bilingue. Introdução e tradução de Carlos Leite. Edições Cotovia, Lisboa, 2001., p.177

terça-feira, 2 de novembro de 2010


«Terei de reconhecer que falo de mim mais do que devia mas, em prosa, ninguém me voltará a encontrar noutro sítio – prometo»


Eugénio de Andrade in À Sombra da Memória (1993)

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Papers and Books Thrown Away, 1974

Entre aves de rapina

Quem aqui quer descer,
quão depressa
a profundeza o traga!
- Mas tu, Zaratustra,
amas ainda o abismo,
queres igualar o abeto?

Esse finca raízes, ali
onde mesmo o penedo, arrepiado,
olha para as profundas - ,
fica hesitante à beira dos abismos
onde tudo em volta
quer precipitar-se:
entre a impaciência
do cascalho à solta, do regato que se despenha
sofrendo, paciente, duro, calado
solitário...

Solitário!
Pois quem se atreveria
a ser hóspede aqui,
a ser teu hóspede?...
Talvez uma ave de rapina:
essa, sim, suspende-se
com regozijo dos cabelos
do mártir inabalável,
com loucas gargalhadas,
gargalhadas de aves de rapina...

Para quê tão inabalável?
-escarnece ela cruel:
É preciso ter asas quando se ama o abismo...
não se deve ficar dependurão
como tu, enforcado! -

Ó Zaratustra,
crudelíssimo Nimrod!
Há pouco ainda caçador de Deus,
rede de agarrar toda a Virtude,
seta do Mal!
Agora -
por ti mesmo perseguido,
presa de ti mesmo,
em ti mesmo afuroado...

Agora -
solitário contigo,
em diálogo com a própria ciência,
entre cem espelhos
falso ante ti mesmo,
entre cem lembranças
incerto,
cansado a toda a ferida.
frio a todo o gelo,
esganado nos teus próprios baraços,
Conhecedor de ti mesmo!
Carrasco de ti mesmo!

Para que é que te amarraste
com o baraço da tua sabedoria?
Para que te atraíste
ao paraíso da velha Serpente?
Para que te insinuaste
em ti - em ti?...

Um doente agora,
doente do veneno da Serpente;
um prisioneiro agora
que tirou a pior sorte:
na própria mina
trabalhando agachado,
em ti mesmo encovado,
minado para dentro de ti mesmo,
canhestro,
hirto,
um cadáver -,
sobrepujado pela carga de cem cargas,
sobrecarregado de ti,
um Sábio!
um Conhecedor de si mesmo!
o sábio Zaratustra!...

Buscavas a carga mais pesada:
e a ti te encontraste -,
e não podes arrojar-te a ti de ti...

À espreita,
agachado,
alguém que já nem pode estar de pé!
Inda hás-de concrescer em aleijão co'a tua sepultura,
Espírito aleijado!

E há pouco ainda tão soberdo,
nas soberbas andas da tua soberba!
Há pouco ainda o solitário sem Deus,
em convívio com o Diabo,
o príncipe escarlate de toda a altivez!...

Agora -
entre dois nadas
enroscado,
um ponto de interrogação,
um enigma estafado -
um enigma para aves de rapina...

- elas te «solverão»,
já estão com fome da tua «solução»,
já esvoaçam à volta de ti, o seu enigma.
à volta de ti, enforcado!...
Ó Zaratustra!
Conhecedor de ti mesmo!...
Carrasco de ti mesmo!...


F. Nietzche. Poemas. Antologia, Versão Portuguesa, Prefácio e Notas de Paulo Quintela. 2ª Edição Revista. Centelha, Coimbra, 1981,p. 27-33

Última Vontade

Morrer assim,
como eu o vi morrer então -,
o Amigo que atirou divinamente
relâmpagos e olhares à minha escura juventude:
arrogante e profundo,
um bailador na batalha -,

entre guerreiros o mais jovial,
entre vencedores o mais difícil,
erguendo-se, um destino sobre o seu destino,
duro, reflectindo o passado e o futuro - :

tremendo porque venceu,
exultando porque venceu morrendo...,

mandando enquanto morria
- e mandou que aniquilassem...

Morrer assim,
como eu o vi morrer então:
vencendo, aniquilando...


F. Nietzche. Poemas. Antologia, Versão Portuguesa, Prefácio e Notas de Paulo Quintela. 2ª Edição Revista. Centelha, Coimbra, 1981,p. 25

domingo, 31 de outubro de 2010

*

Para o fugitivo não há amigo nem fiel companheiro:
isto é mais doloroso do que o próprio exílio.

Teógnis. Poesia Grega de Álcman a Teócrito. Organização, tradução e notas Frederico Lourenço,Livros Cotovia, Lisboa, 2006 p.71
*

Que ninguém te convença a amares um homem vil,
ó Cirno. Para que serve um homem vil como amigo?
Não te salvaria do duro trabalho nem da desgraça,
nem na ventura nada quereria partilhar contigo.
Favor vão é fazer bem a gente reles:
é o mesmo que semear o mar cinzento.
Não é semeando o mar que terás boa ceifa,
nem fazendo bem aos maus terás boa recompensa.
Pois os maus têm uma mente insaciável. Se dás passo em falso,
desaparece a amizade provinda de todos os actos anteriores.
Mas muito se comprazem os nobres pela forma como são
tratados e mantêm no futuro a gratidão e a memória dos favores.


Teógnis. Poesia Grega de Álcman a Teócrito. Organização, tradução e notas Frederico Lourenço,Livros Cotovia, Lisboa, 2006 p.66
***

M.B
Querida, hoje saí de casa já muito ao fim da tarde
para respirar o ar fresco que vinha do oceano.
O sol fundia-se como um leque vermelho no teatro
e uma nuvem erguia a sua cauda enorme como um piano.
Há um quarto de século adoravas tâmaras e carne no braseiro,
tentavas o canto, fazias desenhos num bloco-notas,
divertias-te comigo, mas depois encontraste um engenheiro
e, a julgar pelas cartas, tornaste-te aflitivamente idiota.
Ultimamente têm-te visto em igrejas da capital e da província,
em missas de defuntos pelos nossos comuns amigos; agora
não param (as missas). E alegra-me que no mundo existam ainda
distâncias mais inconcebíveis que a que nos separa.
Não me interpretes mal; a tua voz, o teu corpo, o teu nome
já não mexem com nada cá dentro. Não que alguém os destruísse,
só que um homem para esquecer uma vida, precisa pelo menos
de viver outra ainda. E eu há muito que gastei tudo isso.
Tu tiveste sorte; onde estarias para sempre - salvo talvez
numa fotografia - de sorriso trocista, sem uma ruga, jovem, alegre?
Pois o tempo, ao dar de caras com a memória, reconhece a invalidez
dos seus direitos. Fumo no escuro e respiro as algas podres.
1989
Iosif Brodskii. Paisagem Com Inundação. Edição Bilingue. Introdução e tradução de Carlos Leite. Edições Cotovia, Lisboa, 2001., p.63


Exortação

IV
 
Nas montanhas, avança lentamente. Se tiveres de rastejar, rasteja.
Majestosas ao longe, insignificantes ao perto para quem as veja,
as montanhas são a forma que uma superfície posta ao alto tem
e o carreiro sinuoso que parece horizontal e se sustém
é de facto vertical. Deitado na montanha, estás
de pé; de pé, estás deitado. O que prova que hás
de cair para seres livre. Assim do medo se triunfa,
e da vertigem do abismo e da embriaguês dos cumes.
 
V
 
Se gritarem ''Ei, tu aí!'', não te dês por achado. Sê surdo e mudo.
Mesmo que saibas a língua, não abras a boca por nada deste mundo.
Faz por não te expores, de perfil ou de frente; de vez em
quando, simplesmente não laves a cara. E quando degolarem
um cão à tua frente com uma serra, não te arrepies. Caso fumes,
apaga o cigarro com uma bisga. Quanto a roupa, veste-te
de cinzento, a cor da terra - sobretudo a de baixo -,
para reduzir a tentação de assim te meterem no caixão.
 
VI
 
Quando no deserto fizeres uma paragem, forma uma seta
com pedras - assim, se acordas de repente, sabes logo por ela
que direcção tomar. De noite, os demónios no deserto
perseguem os viajantes. Quem escuta o seu concerto
pode facilmente perder-se: um passo ao lado e é o além.
Espíritos, fantasmas, demónios, no deserto estão em casa. Também
tu, com os pés enterrados na areia, saberás isto sem errar
quando de ti só a alma for o que restar.
 
 
 
Iosif Brodskii. Paisagem Com Inundação. Edição Bilingue. Introdução e tradução de Carlos Leite. Edições Cotovia, Lisboa, 2001., p.47

André Kertész: Falsche Bucher Wie Im Bucherschrank Eines Neureich, c. 1920s

«(...) ''sem advogar a substituição do Estado por uma biblioteca'', Brodskii acredita na auto-educação, no esforço da apreensão individual do mundo e do conhecimento pela prática da escrita, não só porque talvez os livros tenham sido para ele a melhor coisa que conheceu ao longo duma vida carregada de experiências fora do comum, mas porque escrever e ler livros era a única forma de, ao despertar para a vida adulta com a invasão da Hungria e o esmagamento da revolta pelos tanques soviéticos, garantir para si um espaço onde a mentira, nenhuma mentira penetraria. E como preencheria esse espaço, só a ele caberia saber.
 
 
 
 
Iosif Brodskii. Paisagem Com Inundação. Edição Bilingue. Introdução e tradução de Carlos Leite. Edições Cotovia, Lisboa, 2001., p.13
«Para o poeta, escrever poemas e viver são uma e a mesma coisa. ''Se a arte ensina alguma coisa (ao artista, em primeiro lugar), é a singularidade (privatness) da condição humana. Sendo a mais antiga e também a mais literal forma de actividade individual (private enterprise), [a arte] confere ao homem, disso consciente ou inconsciente, um sentido da sua unicidade, de individualidade, de ser à parte - fazendo-o assim passar de animal social a um 'Eu' autónomo. Podem partilhar-se muitas coisas: uma cama, um bocado de pão, convicções, uma amante, mas não um poema, digamos, de Rainer Maria Rilke. (...) um poema (...) dirige-se ao homem a sós, estabelece com ele relações directas, sem quaisquer intermediários.''»


Iosif Brodskii. Paisagem Com Inundação. Edição Bilingue. Introdução e tradução de Carlos Leite. Edições Cotovia, Lisboa, 2001., p.12
«No tempo dos príncipes havia um, e dos mais belos, rico e moço que, andando um dia a passear no campo, por distracção pôs o pé na borda de um poço raso e caiu no fundo dele.
O sítio era ermo. Daquele poço já ninguém se serviu porque estava seco e atafulhado de silvas.
O triste moço, todo arranhado, quando deu consigo no buraco negro onde caíra barafustou, gritou e gastou as unhas nas pedras, mas tudo em vão. Rouco, quem o ouvisse já não suporia ser a sua uma voz humana. (...)»




Irene Lisboa. Uma Mão Cheia de Nada Outra de Coisa Nenhuma. Livraria Figueirinhas, Porto, 1989., p. 123

Journal d’un curé de campagne AKA Diary of a Country Priest (1951)

*

Quem mantém o pensamento separado da língua é mau
companheiro, ó Cirno, pois é melhor inimigo do que amigo.


Teógnis. Poesia Grega de Álcman a Teócrito. Organização, tradução e notas Frederico Lourenço,Livros Cotovia, Lisboa, 2006 p.65
*

Não me ames com palavras, tendo noutro lado mente e coração,
se me amas e se fiel é a tua intenção.
Ama-me com a mente pura, ou então rejeita-me
e odeia-me e opta pelo conflito aberto.

Teógnis. Poesia Grega de Álcman a Teócrito. Organização, tradução e notas Frederico Lourenço,Livros Cotovia, Lisboa, 2006 p.65

*

Encontrarás poucos homens, ó Cirno, que sejam amigos
fiéis em empreendimentos difícieis: homens
que ousem estar sintonizados contigo,
a ponto de partilharem por igual das coisas boas e das más.

Teógnis. Poesia Grega de Álcman a Teócrito. Organização, tradução e notas Frederico Lourenço,Livros Cotovia, Lisboa, 2006 p.65
*

Para grandes empresas confia em poucos homens,
para que não obtenhas, ó Cirno, uma dor insustentável.


Teógnis. Poesia Grega de Álcman a Teócrito. Organização, tradução e notas Frederico Lourenço,Livros Cotovia, Lisboa, 2006 p.65

sábado, 30 de outubro de 2010

Female nude between bench and window

28 Amor pesado (fr. 460 PMG)

O fardo do Amor.

Anacreonte. Poesia Grega de Álcman a Teócrito. Organização, tradução e notas Frederico Lourenço,Livros Cotovia, Lisboa, 2006 p.60

21 Cabelo cortado (fr. 414 PMG)

Cortaste a flor perfeita do teu cabelo macio.

Anacreonte. Poesia Grega de Álcman a Teócrito. Organização, tradução e notas Frederico Lourenço,Livros Cotovia, Lisboa, 2006 p.59

14 Sedento (fr.389 PMG)

És amável para homens estranhos: dá-me de beber, estou sedento.


Anacreonte. Poesia Grega de Álcman a Teócrito. Organização, tradução e notas Frederico Lourenço,Livros Cotovia, Lisboa, 2006 p.57

8 As rosas da Piéria (fr. 55 PLF)

Morta jazerás e de ti não haverá jamais memória
nem saudade no futuro: pois não participaste das rosas
da Piéria, mas invisível na mansão de Hades
andarás para trás e para a frente no meio dos mortos sombrios.


Safo. Poesia Grega de Álcman a Teócrito. Organização, tradução e notas Frederico Lourenço,Livros Cotovia, Lisboa, 2006 p.38.

1 Elogio do prazer (fr. 1 W)

O que é a vida? O que é o prazer, sem a dourada Afrodite?
Que eu morra, quando estas coisas já não me interessarem:
o amor secreto, as suaves ofertas e a cama,
que são flores da juventude sedutoras
para homens e mulheres. Mas quando chega a dolorosa
velhice, que faz até do homem belo um homem repulsivo,
tristes preocupações sempre lhe moem os pensamentos
e já não sente prazer em contemplar a luz do sol,
mas é odiado pelos rapazes e desonrado pelas mulheres.
Assim áspera foi a velhice que o deus impôs.



Mimnermo. Poesia Grega de Álcman a Teócrito. Organização, tradução e notas Frederico Lourenço,Livros Cotovia, Lisboa, 2006 p.31

10 Nocturno

Dormem os píncaros das montanhas e as ravinas,
os promontórios e as torrentes,
e todas as raças rastejantes que a terra negra alimenta:
as feras das montanhas e a raça das abelhas
e os monstros nas profundezas do mar purpúreo;
dormem as raças das aves de longas asas.



Álcman. Poesia Grega de Álcman a Teócrito. Organização, tradução e notas Frederico Lourenço,Livros Cotovia, Lisboa, 2006 p.20

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

O do Senhor da Casaquinha Verde

E o Senhor da casaquinha verde?
Que terrível sonho eu tive com ele!
Entrava num conto que me lembro de ter ouvido. Era um farsante! Saía do seu buraquinho, falava, corria as sete partidas do mundo a intrigar uns e outros, e não passava de um lagarto.
Que noite tão assustada eu passei por causa do senhor da casaquinha verde! Sonhei que estava a dormir com ele. Via-o mesmo ao pé da minha cara e sentia-me cheia de arranhões e babujada.
Mas que havia de eu fazer? Horripilante companhia! Levanto-me repentinamente da cama e atiro-me da janela abaixo. Até parece que voo. Fujo, fujo, fujo...e o senhor da casaquinha verde perseguindo-me.
Começa a chover. Não é água que cai, infelizmente, apesar de eu ter medo da chuva. São bolotas, são pedras, são bugalhos, que me magoam tanto! É castigo, penso eu, estou a ser castigada, mas de quê?
Atrás de mim o lagarto faz uma restolhada medonha, mas eu nunca me volto, nem quero ver nada.
Não quero ver...e sem querer olho...mas como é que não morro logo de susto? Perseguem-me centenas de lagartos, enormes, e todos com olhos a fuzilar. Que bocarras, que bocarras! Caio de joelhos no chão, falece-me a coragem. Estou num círculo de lagartos ferozes, estou no meio de navalhas afiadas....
Oiço então a voz do senhor de casaquinha verde: queres voltar comigo para a cama?
Ele a falar-me!
Choro, cheia de medo, e o círculo das navalhas aperta-se, aperta-se cada vez mais. Vou morrer. Já morri. Sei que estou morta, o que me não dá alegria nem tristeza. Deixo de pensar nos lagartos, vou descendo não sei para onde. É terrível e delicioso, escorrego sempre, sempre, sem jamais parar.
Acordei cansada. E jurei a mim mesma nunca mais ouvir nem ler histórias de lagartos.



Irene Lisboa. Uma Mão Cheia de Nada Outra de Coisa Nenhuma. Livraria Figueirinhas, Porto, 1989., p. 116-118
«A menina ainda é uma criança. Mas tudo já aqui se vê, tem umas linhas muito claras.
Parecia a mulher que estava a ler:
Gosta do que não tem e do que ainda não conhece, não é verdade, minha beleza? Pois, com isso tudo ainda há-de vir a ser muito afortunada. Já perdeu a sua mãezinha....
Sem mesmo querer fiz-lhe com a cabeça que sim.
E tem madrasta.
Pus-me séria.
Coitadinha!
As lágrimas vieram-me aos olhos.
Não se entristeça, minha bela menina. Ainda há-de sair daqui e ser muito afortunada, que lho digo eu. Nos seus olhos há uma luz que me não engana. Esta marca, vê a menina esta estrela de bicos? é como fala. (...)»





Irene Lisboa. Uma Mão Cheia de Nada Outra de Coisa Nenhuma. Livraria Figueirinhas, Porto, 1989., p. 108

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

«A quem confiar as minhas alegrias e as minhas dores, as secretas paixões quixotescas da minha juventude, o violento choque, mais tarde, com Deus e os homens, e finalmente o orgulho selvagem da velhice que arde mas se recusa, até à morte, a transformar-se em cinza? A quem direi eu quantas vezes escorreguei e caí, ao escalar com os pés e mãos a encosta abrupta de Deus, quantas vezes voltei a erguer-me, coberto de sangue, para recomeçar a subir?Onde encontrar uma alma trespassada de mil golpes mais insubmissa, como a minha, para me confessar a ela?»
 
 
 
Nikos Kazantzakis. Carta a Greco. Trad. Armando Pereira da Silva e Armando da Silva Carvalho. Editora Ulisseia, Lisboa, p. 11
«E apresso-me, antes de usar o «capuz negro» e descer ao pó, porque essa linha sangrenta será o único traço que deixará a minha passagem na Terra: o que escrevi, o que fiz, foi inscrito e gravado na água e desapareceu.»
 
 
 
Nikos Kazantzakis. Carta a Greco. Trad. Armando Pereira da Silva e Armando da Silva Carvalho. Editora Ulisseia, Lisboa, p. 10
« A Carta a Greco não é uma autobiografia: a minha vida pessoal só tem valor, muito relativo, para mim e para mais ninguém; o único valor que lhe reconheço é este: a sua luta para subir, degrau em degrau, e para chegar tão alto quanto a sua força e obstinação a possam levar - ao cimo a que eu próprio chamei o Olhar Cretense.»



Nikos Kazantzakis. Carta a Greco. Trad. Armando Pereira da Silva e Armando da Silva Carvalho. Editora Ulisseia, Lisboa, p. 9
«O coração tem sempre de pagar...Ou o vão matando aos poucos ou ele se gasta.»


Irene Lisboa. Uma Mão Cheia de Nada Outra de Coisa Nenhuma. Livraria Figueirinhas, Porto, 1989., p. 97
«Que alegria de andar sozinho, de não ver ninguém e de nem saber para onde ir!»

Irene Lisboa. Uma Mão Cheia de Nada Outra de Coisa Nenhuma. Livraria Figueirinhas, Porto, 1989., p. 80
«Habituei-me a sair muito cedo, sozinho, quando o céu ainda parece branco.»


Irene Lisboa. Uma Mão Cheia de Nada Outra de Coisa Nenhuma. Livraria Figueirinhas, Porto, 1989., p. 78

terça-feira, 26 de outubro de 2010


Toda a minha vida é um grito
e toda a minha obra a interpreta-
ção desse grito.



Nikos Kazantzakis. Carta a Greco. Trad. Armando Pereira da Silva e Armando da Silva Carvalho. Editora Ulisseia, Lisboa.
Três espécies de almas, três orações:

a) Sou um arco nas tuas mãos, Senhor;
curva-me, senão apodrecerei.

b) Não me curves demasiado, Senhor;
posso quebrar.

c) Curva-me até onde desejares, Senhor;
e tanto pior se eu quebrar.

1956



Nikos Kazantzakis. Carta a Greco. Trad. Armando Pereira da Silva e Armando da Silva Carvalho. Editora Ulisseia, Lisboa.
«O meu caixão era de puro cristal, transparente. A todo o momento me parecia que o mar e o céu se juntavam para me engolirem. Era uma ilusão, uma curiosa ilusão.»



Irene Lisboa. Uma Mão Cheia de Nada Outra de Coisa Nenhuma. Livraria Figueirinhas, Porto, 1989., p. 64
«Os cabelos soltos da jovem, como ela anda de cabeça baixa, virada para as suas flores, tapam-lhe os olhos. Solícito o cavaleiro quer-lhos arredar e pedir que descanse. Ela sorri-lhe. Ele corresponde-lhe e só deseja falar, explicar-se. Mas que há-de dizer? Não sabe...É ela que lhe pergunta então se alguma coisa lhe falta, se tem fome, se não tem pena de nada...
Ele só lhe responde com a mais feliz convicção: de nada, de nada.»

Irene Lisboa. Uma Mão Cheia de Nada Outra de Coisa Nenhuma. Livraria Figueirinhas, Porto, 1989., p. 48/49

segunda-feira, 25 de outubro de 2010


« (...) Florêncio, filho desta casa.
Coitado!
Já sem esperança pôs os olhos naquela estrela...
Naquela estrela e pedia-lhe: dá-me o que me falta, ó estrela!
E ela adormeceu-o.
Mas ele ficou a dormir, acordado.
A estrela velava-o.
Velava-o...»



Irene Lisboa. Uma Mão Cheia de Nada Outra de Coisa Nenhuma. Livraria Figueirinhas, Porto, 1989., p. 38
«O meu tempo corria como o tempo corre...ao acaso. Nada me pertencia já. Bastarda a casa, bastardos os ares respirados nela. Quantos anos teria eu então?Doze, treze, catorze. Até o gosto de vestir perdi porque tudo me retiravam; de vestir e de andar limpa e bem pregada. Só a imaginação me sustinha. A imaginação, digo; isto que aos jovens compensa de muitas faltas, da ternura, das satisfações, dos desejos realizáveis, de pequenas e grandes coisas.»



Irene Lisboa. Uma Mão Cheia de Nada Outra de Coisa Nenhuma. Livraria Figueirinhas, Porto, 1989., p. 35
Tudo se abrasa de súbito e depois escurece.


Irene Lisboa. Uma Mão Cheia de Nada Outra de Coisa Nenhuma. Livraria Figueirinhas, Porto, 1989., p. 12

Elephant Man

The Library of America

It's like heaven: you've got to die
To get there. And you can't be sure.
The publisher might go out of business.
Or you yourself might not be good enough.
The vagaries of taste might swerve,
Suddenly, leaving you disaudienced.

Marquand. Aiken. cummings. Mailer.
What are their chances now, which once
Loomed so large? Ubi sunt, as they say
In France, while their language
Expires. It's sad, this transience
We share, but look on the bright side:

It makes us, even the snottiest,
Human, which is a good thing to be.
And, in any case, inalterable. We die,
Others occupy our premises, decide
They don't need so many bookshelves,
And redecorate. Every vanity

Will be deaccessioned, as Islam
Deaccessioned Alexandria. Ubi sunt.
Cling as you may, assert whatever claims,
Once you have fallen into the public domain,
There's precious little hope, and all that
Little is reserved for those who had no doubts.

The man who carved the Sphinx's nose:
What was his name again? For centuries,
Millennia, that nose was there, and now
It's not. We are—I am—like him
Ephemeral, a million Ozymandiases
Drifting about in a vast Sahara.

Sift those sands, you archeologists.
Number the shards of the shattered nose.
Reprint the words that once we shivered
To read, and annotate each line. Still,
When we die, we are certainly dead,
And only a few of our books will be read.

And then even those will be forgotten.



Tom Disch

Nineteen Thirty-Eight

That was the year the Nazis marched into Vienna,
Superman made his debut in Action Comics,
Stalin was killing off his fellow revolutionaries,
The first Dairy Queen opened in Kankakee, Ill.,
As I lay in my crib peeing in my diapers.
“You must have been a beautiful baby,” Bing Crosby sang.
A pilot the newspapers called Wrong Way Corrigan
Took off from New York heading for California
And landed instead in Ireland, as I watched my mother
Take a breast out of her blue robe and come closer.
There was a hurricane that September causing a movie theater
At Westhampton Beach to be lifted out to sea.
People worried the world was about to end.
A fish believed to have been extinct for seventy million years
Came up in a fishing net off the coast of South Africa.
I lay in my crib as the days got shorter and colder,
And the first heavy snow fell in the night.
Making everything very quiet in my room.
I believe I heard myself cry for a long, long time.

Charles Simic

Klara and Edda belly-dancing


Fundación mítica de Buenos Aires

¿Y fue por este río de sueñera y de barro
que las proas vinieron a fundarme la patria?
Irían a los tumbos los barquitos pintados
entre los camalotes de la corriente zaina.
Pensando bien la cosa, supondremos que el río
era azulejo entonces como oriundo del cielo
con su estrellita roja para marcar el sitio
en que ayunó Juan Díaz y los indios comieron.
Lo cierto es que mil hombres y otros mil arribaron
por un mar que tenía cinco lunas de anchura
y aún estaba poblado de sirenas y endriagos
y de piedras imanes que enloquecen la brújula.
Prendieron unos ranchos trémulos en la costa,
durmieron extrañados. Dicen que en el Riachuelo,
pero son embelecos fraguados en la Boca.
Fue una manzana entera y en mi barrio: en Palermo.
Una manzana entera pero en mitá del campo
expuesta a las auroras y lluvias y suestadas.
La manzana pareja que persiste en mi barrio:
Guatemala, Serrano, Paraguay y Gurruchaga.
Un almacén rosado como revés de naipe
brilló y en la trastienda conversaron un truco;
el almacén rosado floreció en un compadre,
ya patrón de la esquina, ya resentido y duro.
El primer organito salvaba el horizonte
con su achacoso porte, su habanera y su gringo.
El corralón seguro ya opinaba YRIGOYEN,
algún piano mandaba tangos de Saborido.
Una cigarrería sahumó como una rosa
el desierto. La tarde se había ahondado en ayeres,
los hombres compartieron un pasado ilusorio.
Sólo faltó una cosa: la vereda de enfrente.
A mí se me hace cuento que empezó Buenos Aires:
La juzgo tan eterna como el agua y como el aire


Jorge Luis Borges

Susana Bombal

Alta en la tarde, altiva y alabada,
cruza el casto jardín y está en la exacta
luz del instante irreversible y puro
que nos da este jardín y la alta imagen
silenciosa. La veo aquí y ahora,
pero también la veo en un antiguo
crepúsculo de Ur de los Caldeos
o descendiendo por las lentas gradas
de un templo, que es innumerable polvo
del planeta y que fue piedra y soberbia,
o descifrando el mágico alfabeto
de las estrellas de otras latitudes
o aspirando una rosa en Inglaterra.
Está donde haya música, en el leve
azul, en el hexámetro del griego,
en nuestras soledades que la buscan,
en el espejo de agua de la fuente,
en el mármol de tiempo, en una espada,
en la serenidad de una terraza
que divisa ponientes y jardines.

Y detrás de los mitos y las máscaras,
el alma, que está sola.


Jorge Luis Borges

El Puñal

En un cajón hay un puñal.

Fue forjado en Toledo, a fines del siglo pasado; Luis Melián Lafinur se
lo dio a mi padre, que lo trajo del Uruguay; Evaristo Carriego lo tuvo
alguna vez en la mano.

Quienes lo ven tienen que jugar un rato con él; se advierte que hace
mucho que lo buscaban; la mano se apresura a apretar la empuñadura
que la espera; la hoja obediente y poderosa juega con precisión en la
vaina.

Otra cosa quiere el puñal.

Es más que una estructura hecha de metales; los hombres lo pensaron y
lo formaron para un fin muy preciso; es, de algún modo eterno, el puñal
que anoche mató un hombre en Tacuarembó y los puñales que mataron
a César. Quiere matar, quiere derramar brusca sangre.

En un cajón del escritorio, entre borradores y cartas, interminablemente
sueña el puñal con su sencillo sueño de tigre, y la mano se anima cuando
lo rige porque el metal se anima, el metal que presiente en cada
contacto al homicida para quien lo crearon los hombres.

A veces me da lástima. Tanta dureza, tanta fe, tan apacible o inocente
soberbia, y los años pasan, inútiles.


Jorge Luis Borges

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

«(...) será que a verdade tem de ser feia? Será que não estaremos a fazer uma ofensa ao mundo - ou a ser, se preferirmos - vestindo a verdade ou, mais precisamente, a busca da verdade, com as roupas mal costuradas de uma racionalidade deformada, mutilada pela recusa à poesia?»

Alexandre Belfort. Nietzsche e o Corpo: O Nascimento da Tragédia e a Genealogiada Moral.
Tese

The Spirit Leaves the Body


quinta-feira, 21 de outubro de 2010

«Uma camada de neve impoluta cobria a vegetação do bosque e acumulava‑se nas copas das árvores, caindo lentamente para o chão com um queixume seco. Quando me virei, vi um oceano invernal, que se espraiava do lado oposto ao do separador da auto‑estrada,sereno e tranquilo, como um mar de cor azul brilhante. Tudo o que via me enchia de nostalgia. Fechei firmemente o meu coração e voltei as costas ao mar.
A neve do bosque foi‑se tornando mais profunda, os ramos partidos e os pedaços de troncos duros faziam com me fosse mais difícil caminhar do que aquilo que eu tinha imaginado. De repente, um pássaro levantou voo por entre as árvores com um chilrear agudo. Parei e pus‑me a escuta, mas não ouvi mais nada, era como se não restasse mais ninguém neste mundo. Ao fechar os olhos, escutei o som das correntes dos carros que circulavam pela estrada, que soavam como cascavéis. Tive a sensação de não saber onde estava, de não saber quem era.»




Kyoichi Katayama. Um grito de amor desde o centro do mundo.Trad. Catarina Gândara, Editora Objectiva, 1ª ed., 2009, p. 10
«Naquela manhã acordei a chorar. Como sempre. Nem sequer sabia se estava triste. A par das lágrimas, as minhas emoções iam‑se escoando para um sítio desconhecido. Deixei‑me ficar deitado no futon durante um bocado, absorto, até que a minha mãe se aproximou e me disse: «Já está na hora de te levantares.»
Kyoichi Katayama.Um grito de amor desde o centro do mundo.Trad. Catarina Gândara, Editora Objectiva, 1ª ed., 2009, p.9

“the moments we call crises are ends and beginnings”

Kermode
MAUPASSANT, Guy de. Bel-Ami. London: Penguin, 2003. “A solidão agora me invade com uma angústia horrível: a solidão no quarto, numa noite, próximo à lareira. Parece que estou sozinho sobre a terra, horrivelmente sozinho, mas cercado por ameaças e perigos desconhecidos e terríveis; e o muro que me separa do meu vizinho desconhecido torna-me tão distante dele como das estrelas que vejo da minha janela.”

Robert Bresson - Pickpocket (1959)


«O mar é grande, inesgotáveis são também os desertos,
e não se sofre melhor longe destes lugares...?»


Negras colinas

Thomas Bernhard. Na Terra e no Inferno. Trad. e introdução José A. Palma Caetano. Assírio & Alvim, 2000, p. 165

Abalo

Eu vou lá gritar, gritar bem alto
e chamar o meu pai e apresentar uma confissão,
levantar-me no fogo e meter as minhas mãos em chamas
na garganta da neve.

Vou expulsar dos campos as flores, para que regressem a casa,
e quebrar os ramos aos meus arbustos para o abalo da morte.
Vou dar uma carta à minha tristeza e recomendá-la a Deus
e dizer-lhe que ela é vida como nenhuma outra vida,
tristeza no crepúsculo das cidades natais!

Eu vou lá anunciar donde vim
e para onde vou.
Eu vou até onde ninguém me possa alcançar
com sapatos sujos. Nenhuma frialdade há-de empedernir o meu coração
perante a incerteza dos deuses ensombrados!





Thomas Bernhard. Na Terra e no Inferno. Trad. e introdução José A. Palma Caetano. Assírio & Alvim, 2000, p. 135

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Tormento

Morro diante o Sol e
diante o vento e diante as crianças que disputam o cão, morro
numa manhã que não pode vir a ser nenhum poema; só triste e verde e
interminável
é essa manhã...O meu pai e a minha mãe estão na ponte e julgam
que eu venho da cidade e não me trazem senão
as suas primaveras destroçadas em grandes cestos e vêem-me -
e não me vêem, porque
eu morro diante do Sol.

Um dia não verei mais os bosques, e a erva
há-de colher a tristeza da minha irmã. O arco da porta
ficará negro e o céu já não será
inatingível
para os meus desesperos...Num dia hei-de
ver tudo e a muitos enxugar os olhos
de manhã cedo...

Estou então de novo debaixo dos jasmins e
vejo como o jardineiro dispõe os mortos nos alegretes...
Morro diante do Sol.
Estou triste, porque há sempre dias que não voltam mais...A parte
nenhuma.



Thomas Bernhard. Na Terra e no Inferno. Trad. e introdução José A. Palma Caetano. Assírio & Alvim, 2000, p. 123

Biografia da dor

Onde eu ontem dormi é hoje dia de descanso. Em frente da porta
estão empilhadas as cadeiras e nenhuma das pessoas a quem
pergunto por mim me viu.
Os pássaros lançaram-se no espaço, para desenharem o meu rosto nas nuvens
por cima da minha casa e por cima do jardim dos mortos.

Conversei com os mortos e falei da guitarra do mundo,
que as suas bocas já não produzem nem os seus lábios,
os quais falam uma linguagem que ofende o cão do meu primo.

A terra fala uma linguagem que ninguém entende,
porque é inesgotável - dela arranquei estrelas e tirei e pus
nos desesperos
e bebi vinho do seu jarro,
que é feito das minhas dores.

Estas estradas levam ao degredo. Oiço Deus
atrás de uma vidraça e o Diabo num altifalante
e os dois chegam juntos ao meu coração, que anuncia a ruína das
almas.
Redemoinham as folhas, incessantes, nas ruas
e causam graves danos nos monumentos.
Quero, em Outubro, sonhar com a verdura.
Debaixo da porta está afixado um mandamento:
NÃO MATARÁS
...mas o jornal fala todos os dias de três homicídios,
que poderiam ter sido cometidos por mim ou por um dos meus amigos.
Leio essas notícias como uma fábula,
de uma facada para outra - sem me aborrecer.
Enquanto eles confundem carne e glória, a minha alma dorme
sob o movimento da mão de Deus.




Thomas Bernhard. Na Terra e no InfeNegritorno. Trad. e introdução José A. Palma Caetano. Assírio & Alvim, 2000, p. 119-121

Robert Bresson-Pickpocket (1959)


Tristeza

São vermelhos os montes e os meus irmãos andam no meu cérebro,
como se Jesus não tivesse sido crucificado à luz das estrelas,
que não têm medo das crueldades da minha alma, da alma
que enterrei num vale quando nem sequer era nascido, naquele tempo,
em Abril, o mês iracundo, que lava as pedras
e as torna em lousas de sepulturas, sobre as quais se encolhem as
companheiras da minha solidão,
com rostos lívidos, enquanto o vendaval lhes vai rasgando os olhos
no brilho mortiço da Lua distante.


Para quê estes dias, para quê a morte,
para quê tudo aquilo de que não gosto, o arbusto
e as flores na boca do burro e o grito
dos meus membros no Outono e a lida dos camponeses
e a glória do sofrimento com que a minha mãe me sobrecarregou ao
morrer,
oprimida pelos donos, sempre bêbados, da fábrica de cerveja na margem
do lago, que devora os meus mortos
sob o riso das estrelas.
Eu não fiz nada que pudesse prejudicar a vossa felicidade, nada,
senão escrever uns versos que fizeram chorar o meu irmão
e despertar na minha irmã - com as flores do vento de Março -
o espinho do ciúme, não comi nada
que tivesse faltado na vossa mesa, não bebi nada que cheirasse aos
vossos casamentos nem
ao cantar dos celeiros, a que eu já não posso voltar, porque
toquei o sino errado na margem do rio, que leva ao encontro
da minha aflição os crânios vazios da imortalidade,
todos os dias, uma manhã após outra, em silêncio, como seu me
tivesse desfeito em cinza, antes
de ter acordado na carne primaveril destas cidades.
Em que é que eu penso quando vejo as ruas vazias, as janelas dos
homens e das mulheres
que tanta putrefacção beberam que Deus terá de te proteger,
que despedaçaram o teu verde e o teu cinzento e o negro dos rios,
que não enalteceram a tua fonte nem a tristeza das tuas noites,
em que, com cada pedra e com cada rã, te despenhaste
no esquecimento! No esquecimento! No desespero
das raízes!
Já não vejo nenhum rosto que eu possa amar, nenhuma carne
que traga prazer ao meu anseio nem nenhuma morte
que satisfaça o meu estar só...Os campos estão vazios! As casas
estão roxas de velas! As portas rangem o seu desdém na tua fadiga
quando
tu regressas a qualquer boca depravada que possui um campo,
uma macieira, uma vaca, um pedaço de relva
te amaldiçoa...
E quando queres partir não sabes para onde!
E quando queres beber água, estás no deserto!
E quando queres mendigar, a imundície da sua riqueza já te
estrangulou!
E quando buscas a tua sepultura, trazem-te uma travessa cheia de
beleza!
...Já não vejo nenhum rosto...Só o barro negro e em decomposição
das suas enfermidades e a ira que transforma em pó a sua vida.


Thomas Bernhard. Na Terra e no Inferno. Trad. e introdução José A. Palma Caetano. Assírio & Alvim, 2000, p. 113-117
XII


Coisas terrenas,
Oh, são inúteis e frágeis, mas nelas
Me inspirando, posso esquecer as minhas angústias;
Todo o pensar que dói, as lágrimas vertidas por outros,
Todas as dores e todos os desejos nelas mergulho.
Ao pensá-las, mais dói o pensamento, daí que
Embora temendo, desejo fechar os olhos em morte breve,
Só que mais sofro ainda, pois não sei o que é a morte.
Oh, o mistério do homem, que triste tu és
E tão profundo! Que horrível é o teu rosto
Marcado pelo véu da vida mortal!
Profunda de mais p'ra dizer, grande de mais p'ra pensar.

Alexander Search (1904). Poesia. Ed e Trad. Luísa Freire. Assírio&Alvim, Lisboa, 1999., pp. 367

The sacred and the profane: Anne Wiazemsky and Balthazar in Robert Bresson’s “Au hasard Balthazar”


Literatura para crianças: O Pássaro da Alma




Quando alguém nos magoa, o pássaro da alma agita-se de lá para cá / Em todos os sentidos dentro do nosso corpo, sofre muito.

*
Decerto querem também saber de que é feito o pássaro da alma.
Ah, isso é mesmo muito fácil:
É feito de gavetas e mais gavetas.
Mas não podemos abrir as gavetas de qualquer maneira,
Pois cada uma delas tem uma chave para ela só!
E o pássaro da alma
É o único capaz de abrir as gavetas dele.
Como?
Pois isso também é muito simples:
Com a segunda pata.
**
E como o que sentimos tem uma gaveta,
O pássaro da alma tem imensas gavetas.
A gaveta da alegria e a gaveta da tristeza.
A gaveta da inveja e a gaveta da esperança.
A gaveta da desilusão e a gaveta do desespero.
A gaveta da paciência e a gaveta do desassossego.
E mais a gaveta do ódio, a gaveta da cólera e a gaveta do mimo.
A gaveta da preguiça e a gaveta do vazio.
E a gaveta dos segredos mais escondidos,
Uma gaveta que quase nunca abrimos.
E há mais gavetas.
Vocês podem juntar todas as que quiserem.
***
E o mais importante - é escutar logo o pássaro.
Pois acontece o pássaro da alma chamar por nós, e nós não o ouvirmos.
É pena. Ele quer falar-nos de nós próprios.
Quer falar-nos dos sentimentos que estão encerrados nas gavetas
Dentro de nós.
****
Há quem o ouça muitas vezes,
Há quem o ouça raras vezes,
E há quem o ouça
Uma única vez na vida.
Michal Snunit
. O Pássaro da Alma. Ilustrações de Naama Golomb. Trad. do hebraico de Lúcia Liba Mucznik. Editora Vega, Lisboa, 2007

“uma função da arte é legar um ilusório ontem à memória dos homens”

Borges
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