domingo, 8 de setembro de 2013
metade da minha vida passou-se no esforço pela tua conquista
«Também eu sempre te amei, Narciso, metade da minha vida passou-se no esforço pela tua conquista. Sabia que também eras meu amigo; mas nunca esperei que mo dissesses, tu, tão orgulhoso. Disseste-mo neste momento em que mais nada possuo, neste momento em que a vida errante e a liberdade, o mundo e as mulheres, me desertaram. »
Hermann Hesse. Narciso e Goldmundo. Tradução de Manuela de Sousa Marques. Guimarães Editores, Lisboa, 2005., p. 254
«Passaram-se semanas, há muito que o castanheiro florira, há muito que escurecera e endurecera a folhagem verde-láctea da faia, há muito que as cegonhas tinham feito ninho na torre da portada e tinham ensinado a voar as crias.»
Hermann Hesse. Narciso e Goldmundo. Tradução de Manuela de Sousa Marques. Guimarães Editores, Lisboa, 2005., p. 248
«Em verdade, teria o homem sido criado para estudar Aristóteles e Tomás de Aquino, saber grego, mortificar a carne e fugir do mundo? Não fora, antes, criado com sentidos e instintos, com as trevas do sangue e o pendor para o pecado, para o prazer e para o desespero?»
Hermann Hesse. Narciso e Goldmundo. Tradução de Manuela de Sousa Marques. Guimarães Editores, Lisboa, 2005., p. 247
engrolar
verbo transitivo
1. cozer levemente
2. assar à pressa
3. figurado dizer ou fazer atrapalhadamente
4. figurado decorar à pressa; empinar
5. figurado intrujar
1. cozer levemente
2. assar à pressa
3. figurado dizer ou fazer atrapalhadamente
4. figurado decorar à pressa; empinar
5. figurado intrujar
«Debateu-se com grandes dificuldades, maiores do que as previstas. A obra dava-lhe cuidados, mas eram suaves cuidados. Lutou por ela, com arroubo e desespero, como se luta pela conquista de uma mulher esquiva, com a obstinação e precaução do pescador à linha empenhado na captura de um peixe de grandes dimensões; todos os obstáculos o ensinavam e lhe afinavam a sensibilidade.»
Hermann Hesse. Narciso e Goldmundo. Tradução de Manuela de Sousa Marques. Guimarães Editores, Lisboa, 2005., p. 235
«- Ninguém notava que, nos últimos tempos, se modificava muito e apresentava um envelhecimento precoce: ninguém o conhecera antes. As agruras da vida errante já decerto o teriam minado; depois, o período da peste com os seus sustos e, por fim, a prisão e aquela pavorosa noite na cave do castelo, tinham-no abalado profundamente e deixado vestígios; fios grisalhos na barba loira, finas rugas na pele do rosto, insónias e, por vezes, na alma, um certo esgotamento, um afrouxamento da curiosidade e do prazer, uma morna e cinzenta sensação de fartura e saciedade.»
Hermann Hesse. Narciso e Goldmundo. Tradução de Manuela de Sousa Marques. Guimarães Editores, Lisboa, 2005., p. 233
« - Tens toda a razão - disse com calor - desabafa à vontade, diz-me tudo o que te oprime. Há, porém, um ponto em que te enganas muito: julgas que são pensamentos o que estás a comunicar-me. Mas não, são sentimentos! São os sentimentos de alguém a quem o pavor da existência dá que cismar. Não te esqueças, porém, que, em contrapartida desses sentimentos melancólicos e desesperados, há outros completamente diferentes, a compensá-los. Quando te sentes feliz a cavalo, ao atravessar uma linda região, e quando, com razoável leviandade, te introduzires à noite, no palácio do conde para lhe cortejar a amada, o mundo reveste-se para ti, nessa altura, de aspectos bem diferentes; nem as casas pestilentas nem os judeus queimados te impedem de procurar o que te dá prazer. Não será assim?»
Hermann Hesse. Narciso e Goldmundo. Tradução de Manuela de Sousa Marques. Guimarães Editores, Lisboa, 2005., p. 221
terça-feira, 3 de setembro de 2013
«(...), demorou-se especialmente no mercado do peixe onde viu os rudes peixeiros e peixeiras apregoar a mercadoria, tirando das celhas os peixes prateados e húmidos que, de bocas dolorosamente abertas e dourados olhos, fixos e apavorados, se resignavam quietos à morte ou se debatiam furiosos e desesperados contra ela. Sentiu-se possuído, como de outras vezes, de intensa compaixão por aqueles bichos e de entristecido desgosto pelos homens tão obtusos e rudes, tão desmedidamente estúpidos e imbecis; como era possível que fossem assim cegos, os pescadores, as peixeiras e os compradores, que não vissem aqueles olhos mortalmente assustados, os espasmos violentos daquelas caudas, em luta pavorosa e inútil, a intolerável transformação dos peixes misteriosos e maravilhosamente belos, percorridos, antes de morrer, por um ligeiro frémito, e depois, mortos e sem brilho, lamentáveis pedaços de carne para mesa dos glutões. Aquela gente nada via, nada sabia e em nada reparava, nada lhes faltava ao coração! Era-lhes indiferente ver estrebuchar à sua frente um lindo peixe, era-lhes indiferente que tal mestre tivesse manifestado, com verdade arrepiante, toda a esperança, toda a nobreza e todo o sentimento angustioso da vida humana, no rosto de uma santa - nada viam, nada os comovia. Andavam distraídos ou atarefados, afadigados com importantes afazeres, berraram, riam, arrotavam, faziam alarido, diziam chalaças, discutiam por dá cá aquela palha, e sentiam-se felizes, tudo estava em ordem e eles contentes consigo próprios e com o mundo.»
Hermann Hesse. Narciso e Goldmundo. Tradução de Manuela de Sousa Marques. Guimarães Editores, Lisboa, 2005., p. 148
«Goldmundo não pertencia ao número daqueles inditosos artistas que, possuindo altos dons, não encontram todavia nunca os meios adequados para os exprimir. Muitos são aqueles a quem é dado sentir profundamente a beleza do mundo, que trazem na alma nobres e sublimes imagens, mas que não sabem a maneira de se desfazer delas, de fixá-las e comunica-las para alegria dos outros. Godmundo não sofria dessa carência. Não lhe custava servir-se das mãos e dava-lhe prazer a aprendizagem dos truques e habilidades do ofício;»
Hermann Hesse. Narciso e Goldmundo. Tradução de Manuela de Sousa Marques. Guimarães Editores, Lisboa, 2005., p. 134