domingo, 17 de fevereiro de 2013


«Como seria bom ter no bosque um pequeno túmulo sossegado. Talvez ouvisse por cima de mim o canto das aves e o sussurro das árvores.»





Robert Walser. O passeio e outras histórias. Granito Editores e Livreiros, 1ª edição, Porto, 2001, p., 47

Em cada instante ele morria e, no entanto não conseguia morrer.


«Uma dor infinita tinha expressão no cansaço e lassidão dos seus movimentos. Não estava morto, mas não era vivo, não era velho, mas também não era novo. A mim parecia-me ter centenas de milhares de anos, mas também me parecia que devia estar vivo eternamente, e eternamente morto-vivo. Em cada instante ele morria e, no entanto não conseguia morrer.»


Robert Walser. O passeio e outras histórias. Granito Editores e Livreiros, 1ª edição, Porto, 2001, p., 45

«Naquele Inverno tinha havido pouco peixe. A aldeia das dunas tinha ficado despovoada. Os tectos de zinco e palha deixavam entrar a chuva. Um dia, o mar invadiu a taberna. Eu bebia aguardente. Segurei-me a uma mesa de junco, e conheci N. Andava nua nas noites de temporal. Os barcos conheciam-na. O último olhar dos afogados ia para ela.»

 

Nuno Júdice. Poesia Reunida. 1967-2000 Prefácio de Teresa Almeida. Publicações Dom Quixote, Lisboa., p. 65

longas pestanas orvalhadas


«A viúva ergueu os olhos de longas pestanas orvalhadas e fitou-o. Queria interrogá-lo e tinha medo, ouvi-lo e sentia vergonha.»



Nikos Kazantzaki. Liberdade ou Morte. Estúdios Cor., p. 67

«(...) Mastrapas libertou o infeliz marido, que ela todas as noites prendia a uma coluna do leito, por era ciumenta e receava (oh, conhecia bem os homens!) que ele se escapulisse à socapa e fosse encontrar-se na cozinha com a gorda Amezina, de úberes de vaca. Amarrava-o à hora de se deitarem e desatava-o quando ele queria ir urinar durante a noite. Mas levava ainda a corda em volta do tornozelo, enquanto a mulher segurava a outra ponta, bem apertada na mão, com medo que o marido se desviasse do bom caminho.»



Nikos Kazantzaki. Liberdade ou Morte. Estúdios Cor., p. 50

timorato


adjetivo

1. que receia ofender alguém
2. tímido
3. que receia errar ou falhar; cuidadoso; escrupuloso
4. receoso; medroso


(Do latim timorātu-, «idem»)
«Em que mundo estonteante vivemos, ou vamos viver, se a comunidade, os cidadãos e a opinião pública não só admitem, mas, infelizmente, ainda aplaudem abertamente o que ofende a sensibilidade  requintada, o sentido do gosto, da beleza e da mediania, o que se impõe de forma doentia e, dando-lhe um ar ridiculamente acanalhado como que brada a mais de cem metros em redor, aos quatro ventos: ‘’Eu sou fulano tal. Tenho tanto e tanto dinheiro e posso permitir-me dar nas vistas com grosseria. É claro que, com as minhas exibições de fausto idiota, não passo de um labrego e dum simplório sem sensibilidade; mas ninguém pode proibir-me de ser grosseiro e presunçoso’’. Será que os caracteres dourados, brilhando e refulgindo ao longe de forma ignóbil, mantêm alguma relação aceitável e sinceramente plausível, ou algum laço de parentesco normal – com o pão? De modo nenhum! Mas o que acontece é que a odiosa jactância e a ostentação já começaram um pouco  por toda a parte e, com uma lamentável e terrível inundação, foram sempre acumulando progressos, arrastando consigo a insensatez, a impureza e a tolice, espalhando-as pelos quatros cantos do mundo, até que levaram na maré o meu honrado padeiro, corrompendo-lhe o bom gosto que até então manifestara e minando a sua tradicional modéstia. Não hesitaria em dar muito, em sacrificar mesmo o meu braço ou a minha perna esquerda, se assim pudesse contribuir para recuperar o antigo e bom sentido da probidade, a antiga e boa fragilidade, se pudesse devolver ao país e às pessoas aquela modéstia e honradez que, com pesar de todos os que sinceramente se importam, se perderam consideravelmente. Maldita seja a mórbida fantasia de se querer parecer mais do que se é. »


Robert Walser. O passeio e outras histórias. Granito Editores e Livreiros, 1ª edição, Porto, 2001, p., 31/32

frugalidade


nome feminino

1. moderação na alimentação
2. temperança; sobriedade
3. simplicidade de costumes

(Do latim frugalitāte-, «idem») frugalidade

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

ÁRIA I



Para onde quer que nos voltemos na tempestade de rosas,
a noite iluminava-se de espinhos, e o trovão
da folhagem, antes tão leve nos arbustos,
segue-nos agora de perto.


Onde quer que se apague o incêndio das rosas,
a chuva inunda-nos o rio. Oh, noite tão distante!
Mas uma folha que nos encontrou é levada pelas ondas
e segue-nos até à foz.





Ingeborg Bachmann. O Tempo Aprazado. Edição bilingue. Selecção, tradução e introdução Judite Berkemeier e João Barrento. Assírio & Alvim, Lisboa, 1992., p. 93
XV.

Tem o seu triunfo a morte, o amor é festejado,
e o grande Tempo e o tempo futuro.
A nós nenhum triunfo é dado.


À nossa volta só um afundar de astros. Eco de luz, sem voz.
Mas, sobre o pó, a canção do futuro
soará além de nós.



Ingeborg Bachmann. O Tempo Aprazado. Edição bilingue. Selecção, tradução e introdução Judite Berkemeier e João Barrento. Assírio & Alvim, Lisboa, 1992., p. 85-87

VI.



Instruída no amor
por dez mil livros,
ensinada pela transmissão
de gestos pouco mutáveis
e juras tolas –


mas só aqui
iniciada no amor –


quando a lava descia
e o seu bafo nos tocava
no sopé do monte,


quando por fim a cratera exausta
revelou a chave
para estes corpos fechados –


Entrámos em quartos amaldiçoados
e iluminámos o escuro
com as pontas dos dedos.



Ingeborg Bachmann. O Tempo Aprazado. Edição bilingue. Selecção, tradução e introdução Judite Berkemeier e João Barrento. Assírio & Alvim, Lisboa, 1992., p. 85-87


‘’Ninguém me ama, nem por mim
acendeu uma candeia.’’




Ingeborg Bachmann. O Tempo Aprazado. Edição bilingue. Selecção, tradução e introdução Judite Berkemeier e João Barrento. Assírio & Alvim, Lisboa, 1992., p. 85

SOMBRAS ROSAS SOMBRAS



Sob um céu estranho
sombras rosas
sombras
numa terra estranha
entre rosas e sombras
numa água estranha
a minha sombra



Ingeborg Bachmann. O Tempo Aprazado. Edição bilingue. Selecção, tradução e introdução Judite Berkemeier e João Barrento. Assírio & Alvim, Lisboa, 1992., p. 81
*
Quando alguém parte, tem de deitar
ao mar o chapéu com as conchas
apanhadas ao longo do Verão,
e ir-se com o cabelo ao vento,
tem de lançar ao mar
a mesa que pôs para o seu amor,
tem de deitar ao mar
o resto de vinho que ficou  no copo,
tem de dar o seu pão aos peixes
e misturar no mar uma gota de sangue,
tem de espetar bem a faca nas ondas
e afundar o sapato,
coração, âncora e cruz,
e ir-se com o cabelo ao vento!
Depois, regressará,
Quando?
          Não perguntes.




Ingeborg Bachmann. O Tempo Aprazado. Edição bilingue. Selecção, tradução e introdução Judite Berkemeier e João Barrento. Assírio & Alvim, Lisboa, 1992., p. 75

4.

Coloca uma palavra
no vale da minha mudez
e planta florestas de ambos os lados,
para que a minha boca
fique toda à sombra.


 Ingeborg Bachmann. O Tempo Aprazado. Edição bilingue. Selecção, tradução e introdução Judite Berkemeier e João Barrento. Assírio & Alvim, Lisboa, 1992., p. 59

domingo, 10 de fevereiro de 2013


«Os carniceiros sustêm, enluvados,
a respiração dos despidos,
no umbral a lua cai ao chão.»



Ingeborg Bachmann. O Tempo Aprazado. Edição bilingue. Selecção, tradução e introdução Judite Berkemeier e João Barrento. Assírio & Alvim, Lisboa, 1992., p. 55

«Uma mão cheia de dor perde-se para lá da colina.»

Ingeborg Bachmann. O Tempo Aprazado. Edição bilingue. Selecção, tradução e introdução Judite Berkemeier e João Barrento. Assírio & Alvim, Lisboa, 1992., p. 51

«(...)           Nos campos
crescemos ou morremos ao Deus dará,
obedientes à chuva e por fim também à luz.»


Ingeborg Bachmann. O Tempo Aprazado. Edição bilingue. Selecção, tradução e introdução Judite Berkemeier e João Barrento. Assírio & Alvim, Lisboa, 1992., p. 43

DESPRENDE-TE, CORAÇÃO

Desprende-te, coração, da árvore do tempo,
soltai-vos, folhas, dos ramos esfriados,
outrora abraçados pelo sol,
soltai-vos como lágrimas de olhos largos de longes.

Esvoaça ainda a madeixa dias inteiros ao vento
na fronte tisnada do deus do campo,
sob a camisa aperta o punho
já a ferida aberta.

Por isso resiste, quando o dorso macio das nuvens
voltar a curvar-se para ti,
não te iludas se o Himeto te encher
de novo os favos.

De pouco vale o lavrador uma erva na seca,
de pouco um verão, face à nossa grande estirpe.

E que testemunha afinal o teu coração?
Entre ontem e amanhã balança,
silencioso e estranho,
e o seu bater
é já a sua queda para fora do tempo.



Ingeborg Bachmann. O Tempo Aprazado. Edição bilingue. Selecção, tradução e introdução Judite Berkemeier e João Barrento. Assírio & Alvim, Lisboa, 1992., p. 25

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

Há muitas viagens onde podemos nascer,
noutras, encostar o rosto numa noite de inverno e morrer.