segunda-feira, 20 de julho de 2009

O Material das Coisas mão

«As coisas tinham - Levy sentia-o - uma actividade voluntária, e tal amedronta: se o atrito ganha vontade própria o mundo humano treme e ele, Levy, era, naquele momento (completamente só, em casa) o representante do mundo humano - e perdia, estava a perder; e começava a ter medo.

(...)
Como que vivo, o atrito, emitia ruídos, interrompia a linguagem que o corpo de Levy se habituara a utilizar em conversa física com os móveis, com os pequenos objectos domésticos: copo, candeeiro, livro.
Levy sentiu tonturas - se ele não queria tremer, se ele não dera ordens para aquele desacerto entre os seus pés, a sua verticalidade e o chão, se aquilo não partia da sua vontade: quem mandava ali? E havia ainda a dor.
Porque as dores de cabeça eram mesmo na cabeça, Levy não tinha, digamos assim, qualquer dúvida geográfica - mas essas dores influenciavam tudo o resto: a dor localizada na cabeça interferia no modo de a sua mão agarrar nas coisas. E um copo caiu, partiu-se, um vidro saltou; não o atingiu; porém, ele desiquilibrou-se, colocou instintivamente a mão direita no chão, a mão entrou no vidro, e de repente ele era capaz de jurar que o vidro tinha sangue lá dentro.
Decidiu sentar-se no chão, num local seguro, observando os vidros partidos do copo e a sua mão, que sangrava incivilizadamente - como ele naquele momento pensou - e assim terão pensado, primeiro, alguns minutos, depois muitos, depois talvez horas - que pode fazer o homem que acabou de ser abandonado pela mulher, tem a mão direita a sangrar e em nenhum sítio consegue adormecer?.»

Gonçalo M. Tavares

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