sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Dora Diamant and her infant daughter in Berlin, 1934

«Que tenho eu em comum com os judeus?
 Mal chego a ter algo em comum comigo mesmo,
e deveria meter-me num canto, em completo silêncio,
contente por poder respirar. »


Franz Kafka
"There is always something unaccounted for."


--Franz Kafka, Conversations with Kafka

DORA'S PAPERS

Dora's cahier, or diary, missing for almost 50 years, was uncovered, along with 15 letters to Marthe Robert, Kafka's French translator, written between 1951-1952, in Paris. Two years later, a second diary was discovered by Klaus Wagenbach, which had laid forgotten in archive in Berlin. These diaries, written in the last year of her life, represent Dora's attempt to "say once what is necessary to say about Kafka. Everything. Without reservation." In January 2000, working with professional archival researchers, Dora's secret 35-page file from the Comintern in the Central Archives of the Communist Party in Moscow was obtained





Page 9 of Dora's cahier, her Kafka diary, begun on her birthday in 1951, when she learned she was dying. © Diamant Family

quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

A quem devo pedir a dívida deste meu severo destino?


Eu que sempre fiz das leis uma ameaça e das árvores o deslumbramento divino,
avanço para a coroa de espinhos com um travo amargo, que floresce dentro de mim,
em corroída nudez.

ekstasis


« (...) um termo comummente utilizado na Grécia antiga para descrever
estados mentais para além da razão (logos).»


Ned O’Gorman, 2004

um entusiasmo triste

Leonce - Oh, meu caro Valério! Não poderia eu também dizer: "Isto é uma floresta de moitas de plumas, com algumas rosas bem cheias, junto a meus pés..." Acho que eu o disse bem melancolicamente. Graças a Deus! Começo a descer junto com a melancolia. O ar já não está tão claro e frio, o céu desce sobre mim brilhando e caem pesadas gotas de chuva. Oh, esta voz: "Será tão longo o caminho?" Muitas vozes falam nesse mundo e nós pensamos que falam de outras coisas. Mas esta voz, eu a compreendi. Descansa sobre mim como o espírito, já que este pairava sobre as águas antes de ser feita a luz. Que fermentação nas profundezas, como se fazem as coisas dentro de mim, como a voz se derrama pelo espaço! Será tão longo o caminho? (Sai.)

Leonce - Pois seja. (Deita-se no gramado.) Impediste meu mais belo suicídio! Em toda minha vida jamais tornarei a encontrar momento tão adequado. E um clima tão excelente. Agora, já me passou a vontade. Com teu colete amarelo e tuas calças azul-celeste, estragastes tudo. Que o céu me conceda um sono bem sadio e pesado
 
 
Georg Büchner.Woyzeck e Leonce e Lena. Trad. De João Marschner. Rio de Janeiro: Ediouro, s/d.

a própria identidade se perde

Peter  - Quem sois?
Valério - Será que sei? (Vagarosamente, retira várias máscaras. uma após outra.) Sou esse? Ou este? Na realidade tenho medo de poder descascar-me ou desfolhar-me assim.


 Georg Büchner.Woyzeck e Leonce e Lena. Trad. De João Marschner. Rio de Janeiro: Ediouro, s/d.

quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Smoking

(...)

«Assim pensa sorrindo: « A ti, indestrutível, tem
De pôr-te à prova outra palavra», e di-la alto,
A jovem águia, olhando Germânica:
«És tu, eleita,
Tu que tudo amas, e para carregares um fardo
Pesado de ventura te fizeste forte,


Desde o tempo em que tu, escondida na floresta e ébria
De doce sono da papoila em flor, não atentavas
Em mim, muito antes que outros mais humildes
sentissem,
O orgulho da virgem e espantadas perguntassem de quem e
donde tu eras,
Mas tu mesma o não sabias. Eu é que te reconheci,
E em segredo, enquanto sonhavas, deixei-te
Ao partir ao meio-dia um sinal amigo,
A flor da boca, e sozinha te puseste a falar.
Mas expediste também profusão de palavras em ouro
Ó afortunada, com os rios, e eles correm inesgotáveis
Pra todas as regiões. Pois quase como o da Santa
Que é a mãe de tudo o traz ao abismo,
A quem os homens chamam a Oculta,
O teu peito está cheio
De amor e dor
E de presságios e de paz.»





Friedrich Hölderlin. Poemas. Prefácio, Selecção e trad. Paulo Quintela. Relógio D' Água, Lisboa, 1991, p. 393-395
«Porém insensato é
Perante o Destino o desejar.
Mas os mais cegos
São os filhos dos deuses. Pois o homem conhece
A sua casa, e ao animal foi dado saber onde
Deve construir a sua, mas àqueles coube-lhes
Na alma inocente o defeito
De não saberem para onde hão-de ir.»



Friedrich Hölderlin. Poemas. Prefácio, Selecção e trad. Paulo Quintela. Relógio D' Água, Lisboa, 1991, p. 373
(...)

Ó terra de Homero!
Debaixo da cerdeira purpúrea, ou quando
Na minha vinha os jovens pessegueiros,
Vindos de ti, reverdecem,
E a andorinha vem de longe e contando muitas coisas
Faz a casa nas minhas paredes, nos
Dias de Maio, também sob as estrelas
Eu penso em ti, ó Iónia! Mas os homens
Amam o que têm presente. Por isso eu
Vim ver-vos, ó Ilhas, e a vós,
Ó fozes dos rios, ó vós palácios de Tétis,
E a vós, ó bosques, e a vós, ó nuvens do Ida!

Mas não penso em ficar.
Descortês e difícil de conquistar é
A Mãe reservada que abandonei.
Dos filhos um, o Reno,
Quis à força atirar-se ao seu seio, e repelido,
Desapareceu na distância, ninguém sabe onde.
Mas eu não quereria partir dela assim,
E apenas pra vos convidar
Vim eu ter convosco, ó Graças da Grécia,
Ó filhas do céu,
Pra vos pedir, se a viagem não for longa de mais,
Que venhais a nossa casa, ó benignas!

Quando os ares sopram mais suaves,
E a manhã dispara sobre nós,
Pacientes de mais, setas de amor,
E nuvens leves florescem
Por sobre os nossos olhos tímidos,
Então diremos: Como é que vós,
Ó Cárites, vindes ter c 'os bárbaros?
Mas as servas do céu
São caprichosas
Como tudo o que nasce dos deuses.
Faz-se sonho àquele que queira
Apoderar-se dele com astúcia, e castiga aquele
Que à força se lhe queira igualar;
Muitas vezes surpreende aquele
Que nele mal tinha pensado.






Friedrich Hölderlin. Poemas. Prefácio, Selecção e trad. Paulo Quintela. Relógio D' Água, Lisboa, 1991, p. 367-369
«BENV. - (...) Mais vale morrer de dor, que viver desonrado.


Christopher Marlowe. Doutor Fausto. Edição Bilingue. Publicações Europa-América, 2003., p.113
« BENV.- Será a minha honra. Espada, sê certeira!
É a cabeça dele pelos cornos que me pôs.

Entra Fausto com uma cabeça postiça.

MARTINO- Aí vem ele! Aí vem ele!
BENV.- Silêncio! Um só golpe, e pronto!
O corpo cai na terra e a alma no Inferno.»



Christopher Marlowe. Doutor Fausto. Edição Bilingue. Publicações Europa-América, 2003., p.107
«BENV.- Pesa-me agora menos a cabeça,
Mas tenho mais oprimido o coração,»



Christopher Marlowe. Doutor Fausto. Edição Bilingue. Publicações Europa-América, 2003., p.107

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

New York (Boys Fighting on Door Frame), 1942 early 1950s

Olhai, Alteza, que animal esquisito ali está com a cabeça
fora da janela.
IMPER. - Oh, que cena espantosa, Duque de Saxónia!
Vede. Um estranho par de cornos espetado
Na cabeça do jovem Benvolio.
DUQUE DA SAX. - Mas ele está morto ou a dormir?
IMPER. - Que belo divertimento! Vamos acordá-lo.
Eh, Benvolio!
BENVOL. - Diabos vos levem! Deixai-me dormir.
IMPER. - Não te censuro por dormires tanto; com uma cabeça
dessas...
DUQUE DA SAX. - Levanta os olhos, Benvolio, é o Imperador
quem te chama.
BENVOL. - Imperador? Onde? Oh, raios me partam, a minha cabeça!
IMPER.- Deixa lá a cabeça, segura mas é nos cornos, que a
cabeça está bem armada.
FAUSTO. - Então e agora, senhor cavaleiro, pendurado pelos
cornos, não é? Que coisa feia! Uma vergonha! Metei a cabeça
para dentro, senão vai toda a gente ficar pasmada a olhar para vós.
BENVOL. - Raios vos partam, doutor! Esta patifaria é vossa?
FAUSTO.- Não digais tal, senhor, que o doutor não tem saber,
Nem arte, nem engenho, para brindar estes nobres,
Ou para trazer à presença do Imperador
O poderoso rei, o bravo Alexandre.
Fausto conseguiu-o. E vós o quisestes:
Transformar-vos, como Acteon, em veado;



Christopher Marlowe. Doutor Fausto. Edição Bilingue. Publicações Europa-América, 2003., p.103

segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Diz-me muito mal de Deus.
Diz que ele é um velho estúpido e doente,
Sempre a escarrar no chão
E a dizer indecências. [...]
Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.
Diz-me que Deus não percebe nada
Das coisas que criou –
“Se é que ele as criou, do que duvido”



Alberto Caeiro, no poema VIII de O Guardador de Rebanhos

concepção pessimista

«Julgada na perspectiva judaico-cristã, a religião grega parece constituir-se sob o signo do pessimismo: a existência humana é, por definição, efêmera e sobrecarregada de preocupações.[...] Essa concepção pessimista impôs-se irremediavelmente quando o grego tomou consciência da precariedade da condição humana.»


Mircea Eliade. História das Crenças e das Idéias Religiosas; Tomo I, Da Idade da Pedra aos Mistérios de Eleusis, Volume 2, pp. 91e 94.

Exortação por uma voz feminina, O Trovão – Intelecto Perfeito

Pois eu sou a primeira: e a última
Sou eu a venerada: e a desprezada.
Sou eu a meretriz: e a santa.
Sou eu a esposa: e a virgem.
Sou eu a mãe: e a filha.
Eu sou os membros de minha mãe.
Sou eu a estéril: e a que tem muitos filhos.
Sou eu aquela cujo casamento é magnífico; e a que não se casou.
Sou eu a parteira: e a que não dá à luz;
Sou consolação: de meu próprio trabalho.
Sou eu a noiva: e o noivo.
E o meu marido é quem me gerou.
Sou eu a mãe do meu pai: e a irmã do meu marido.
É ele que é minha prole. [...]
Sou seu silêncio incompreensível:
E pensamento posterior, cuja memória é tão grande.
Sou eu a voz cujos sons são tão numerosos:
E o discurso cujas imagens são tão numerosas.
Sou eu a fala: de meu próprio nome


Layton. As Escrituras Gnósticas. pgs. 96/97.

'O velho mito germânico de Migdar'

« Tudo isso é Migdar e o reconhecimento de Migdar como essência da realidade, chama-se Heterodoxia. Ou traduzindo o mito, heterodoxia é a convicção de que o real não é apenas a cabeça mordendo sem hesitações nem a cauda devorada sem resistência, mas o inteiro movimento de morder e ser mordido, a paixão circular da vida por si mesma. O movimento da cabeça devorando com a certeza de existir um só caminho, pode receber o nome de Ortodoxia, assim como a convicção inversa de não existir caminho algum pode designar-se por Niilismo.»



Eduardo Lourenço. Escrita e Morte in Heterodoxia I e II. Assírio & Alvim, Lisboa, 1987

domingo, 26 de dezembro de 2010

«Como a leoa, tu te queixaste,
Ó Mãe, quando tu,
Natureza, os perdeste, os filhos.
Pois tos roubou, ó Amantíssima,
O teu inimigo, quando o recebeste
Quase como os próprios filhos,
E a sátiros associaste os deuses.
Assim construíste muita coisa,
E muita coisa enterraste,
Pois te odeia
O que tu, ó Vigorosíssima,
Deste à luz antes do tempo.
Agora o conheces, agora desistes disto;
Pois de bom grado repousa, insensível,
Até que amadurece, lá em baixo o que actua medroso.»



Friedrich Hölderlin. Poemas. Prefácio, Selecção e trad. Paulo Quintela. Relógio D' Água, Lisboa, 1991, p. 359
«Brisas de hálito leve
Vos anunciam já,
Anuncia-vos o vale fumegante
E o solo que ainda ressoa da tempestade,
Mas a Esperança enrubesce as faces,
E em frente da porta da casa
Está sentada a mãe com o filho,
E contempla a Paz
E poucos parecem morrer;
Um presságio detém a alma,
Enviada pela luz de ouro
Uma promessa detém os mais velhos.»



Friedrich Hölderlin. Poemas. Prefácio, Selecção e trad. Paulo Quintela. Relógio D' Água, Lisboa, 1991, p. 375

Os mortos

Um dia fugaz eu vivi e cresci entre os meus,
   Um após outro já me adormece e vai fugindo pra longe.
E no entanto, vós que dormis, 'stais-me acordados cá dentro do
[peito,
Na alma parente repousa a vossa imagem que foge.
E mais vivos vós ali, onde a alegria do espírito
Divino a todos os que envelhecem, a todos os mortos
                                                                         [rejuvenesce.

Friedrich Hölderlin. Poemas. Prefácio, Selecção e trad. Paulo Quintela. Relógio D' Água, Lisboa, 1991, p. 293
«Porque aqueles que nos dão o fogo celeste,
Os deuses, também nos dão a dor sagrada.
Por isso esta fique. Filho da terra
Pareço eu: feito para amar, para sofrer.»



Friedrich Hölderlin. Poemas. Prefácio, Selecção e trad. Paulo Quintela. Relógio D' Água, Lisboa, 1991, p. 177
«Tal como os deuses andam com pés de lã
Antes de punirem os homens com mãos de ferro,
Assim acorda agora nossa vingança adormecida
Para condenar à morte teus execráveis actos.»



Christopher Marlowe. Doutor Fausto. Edição Bilingue. Publicações Europa-América, 2003., p.81
«FAUSTO:  - Mas tu tens dores, tu, que outros atormentas?
MEFIST.     - Dores tão grandes como as almas dos homens.
       Mas diz-me, Fausto, dás-me a tua alma?
       Se ma deres, serei um escravo ao teu serviço,
       E dar-te-ei mais do que o teu engenho saberá pedir.»

Christopher Marlowe. Doutor Fausto. Edição Bilingue. Publicações Europa-América, 2003., p.55

Secret lives, 1937

   « E Natália esqueceu-se de mim desde então. Eu sei como lhe brilhavam antes os olhos como se fossem charcos alumiados pela lua.»



Juan Rulfo. O Llano em chamas in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 191

'Eu já sabia de antes o que havia dentro de Natália...'

«Eu já sabia de antes o que havia dentro de Natália. Algo conhecia dela. Sabia, por exemplo, que as suas pernas redondas, duras e quentes como pedras ao sol do meio-dia, estavam sós há algum tempo. Eu já conhecia isso. Tínhamos estado juntos muitas vezes; mas sempre nos separava a sombra de Tanilo: sentíamos que as suas mãos empoladas se metiam entre nós e levavam Natália para que o continuasse a cuidar. E sempre assim seria enquanto ele estivesse vivo.»



Juan Rulfo. O Llano em chamas in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 189

Talpa

«Nem depois, nem no regresso, quando viemos caminhando de noite sem conhecer o sossego, andando às apalpadelas como adormecidos e pisando com passos que pareciam pancadas sobre a sepultura de Tanilo. Nessa altura, Natália parecia estar endurecida e trazer o coração apertado para não o sentir ferver dentro dela. Mas dos seus olhos não saiu nem uma lágrima.»



Juan Rulfo. O Llano em chamas in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 187

O homem

«(...) Esperei-te um mês, acordado de dia e de noite, sabendo que chegarias de rastos, escondido como uma víbora venenosa. E chegaste tarde. E eu também cheguei tarde. Cheguei atrás de ti. Entreteve-me o enterro do recém-nascido. Agora percebo porque é que me murcharam as flores na mão.»
   «Não devia tê-los matado a todos», ia pensando o homem. «Não valia a pena pôr esse fardo tão pesado nas minhas costas. Os mortos pesam mais do que os vivos; esmagam-nos. Devia tê-los tenteado um por um até dar com ele; tê-lo-ia conhecido pelo bigode; embora estivesse escuro, teria sabido onde lhe bater antes que se levantasse...No fim de contas, é melhor assim: ninguém os chorará e eu viverei em paz. A questão é encontrar a passagem para sair daqui antes que me agarre a noite.»




Juan Rulfo. O Llano em chamas in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 173
«Caminharei mais para baixo. Aqui o rio tem um remoinho e pode devolver-me onde não quero regressar.»
«Nunca ninguém te fará mal, filho. Estou aqui para te proteger. Por isso nasci antes de ti e os meus ossos endureceram antes dos teus.»



Juan Rulfo. O Llano em chamas in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 172

O homem

«Não devia tê-los matado a todos; ter-me-ia conformado com aquele que tinha de matar; mas estava escuro e os vultos eram iguais...No fim de contas, sendo tantos custar-lhes-á menos o enterro.»


Juan Rulfo. O Llano em chamas in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 172

sábado, 25 de dezembro de 2010

«Falhada ou triunfante, toda a escrita é um exercício de imortalidade. Mas ninguém sabe o que o perde ou o que o salva.»


Eduardo Lourenço. Escrita e Morte in Heterodoxia I e II. Assírio & Alvim, Lisboa, 1987

«Não sabíamos então que a futura sobrevivência seria também partilhada entre a nostalgia sem redenção da pouca vida humanamente respirável dos nossos jovens anos e a decepção que espera sempre que acordam tarde sobre sonhos precocemente sonhados. É neste lugar de um crepúsculo que se esvai como um rio entre a decepção de outrora carregada de sonho e o sonho de hoje sonhado pela memória dessa decepção que vêm reinscrever-se páginas que porventura melhor conviria deixar no seu tempo próprio, aquele em que a agonia mesma nos sabia a vida.»


Eduardo Lourenço. Escrita e Morte in Heterodoxia I e II. Assírio & Alvim, Lisboa, 1987

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

[xviii]

em tempo de narcisos ( que sabem
 o sentido da vida é crescer)
esquecendo porquê, recorda como

em tempo de lilases que proclamam
o desígnio da vigília é sonhar,
recorda assim (esquecendo parece)

em tempo de rosas (que assombram
o nosso agora e aqui com o paraíso)
esquecendo se, recorda sim

em tempo de todas as doçuras para além
do que quer que a mente possa entender,
recorda busca (esquecendo acha)

e num mistério a haver
(quando o tempo do tempo nos livrar)
esquecendo-me, recorda-me



e.e. cummings. XIX poemas. Edição bilingue. Selecção, tradução e notas Jorge Fazenda Lourenço. Assírio & Alvim, 1991, p.65

[i]

pode nem sempre ser assim; e eu digo
que se os teus lábios, que amei, tocarem
os de outro, e os teus dedos fortes e meigos cingirem
o seu coração, como o meu em tempos não muito distantes;
se na face do outro os teus suaves cabelos repousarem
nesse silêncio que eu sei, ou nessas
palavras sublimes e estremecidas que, dizendo demasiado
ficaram desamparadamente diante do espírito vozeando;

se assim for, eu digo se assim for...
tu do meu coração, manda-me um recado;
que eu posso ir junto dele, e tomar as suas mãos,
dizendo, Aceita toda a felicidade de mim.
Hei-de então voltar a cara, e ouvir um pássaro
cantar terrivelmente longe nas terras perdidas.



e.e. cummings. XIX poemas. Edição bilingue. Selecção, tradução e notas Jorge Fazenda Lourenço. Assírio & Alvim, 1991, p.25

Smoking in Bed

Na sua introdução aos Collected Poems (1938), o poeta escreve:

« The poems to come are for you and for me and are not
for mostpeople

...You and I are human beings; mostpeople are
snobs.»



e.e. cummings. XIX poemas. Edição bilingue. Selecção, tradução e notas Jorge Fazenda Lourenço. Assírio & Alvim, 1991, p.14
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